Espiral #111: A loucura e a criatividade
E uma pequena homenagem à duas grandes divas: Liana e Magy ♡
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Trilha sonora: Contra Dança, do Noporn
Em dezembro caiu no meu colo um dos livros que mais mexeram comigo em 2023, não pela escrita e história, mas porque cutucou feridas. Me debrucei em lágrimas, fiz um monte de anotações sobre as fichas caídas e, ao reler, choro novamente.
De 2015 a 2022, passei por grandes provações pessoais e profissionais, tirando de mim a condição de chorona. Se na adolescência minha mãe vivia reclamando que eu era uma 'manteiga derretida', capaz de chorar até assistindo comercial de TV, nos últimos anos chorar se revelou uma dádiva.
Eu gosto do choro. Não o choro à toa, mas aquele que desentope nossas vias emocionais. Sai tanto nesse choro, que conter o desague é a causa do sufoco no peito.
Ali estava eu, sentada no meu chalé mágico nas montanhas, com um mundo tão bonito, cremoso e branco à minha frente, chorando. Senti sair 2023 inteiro de mim. Foi um choro gostoso como a sessão de sauna que me esperava ao lado.
É interessante notar como as obras ecoam diferente no outro. O livro que amamos não é quase mencionado, embora sabemos que muitas pessoas o leram. No entanto, não causou nenhum rebuliço a não ser em mim. O filme, oh, estão falando mais mal dele do que bem, mas você amou e quis passar dias falando a respeito. O álbum, a música, o meme, a notícia, a previsão… tudo ressoa diferente, porque tudo ecoa de acordo com o nosso repertório, a nossa vivência e, principalmente, o nosso momento.
‘O perigo de estar lúcida’, de Rosa Montero, foi a leitura que mais me tirou do eixo nos últimos meses, tanto que demorei para escrever sobre ela. Precisei digerir, reler alguns trechos e, até mesmo, ler algumas resenhas e sentimentos que esse livro causou por aí. Coincidentemente, uma amiga disse que não gostou por se tratar de um tema tão óbvio, a conexão entre a criatividade e a loucura. Já para mim, o tema foi apenas um fio condutor para contar tantas histórias boas em um mesmo livro.
Não foi uma leitura fácil, mas me envolveu o suficiente para não largá-la por três dias. Terminei-o com um caderninho cheio de anotações e lembranças de infância que tinham escapado de mim. Foi como uma sessão de Ayuhuasca em que lembranças manchadas, como uma foto já descolorida pelo tempo, surgem como um clarão.
Nunca pensei que alguns fatos familiares, alguns já distantes e outros recentes, tinham tido tanto impacto na minha vida. Montero esfregou na minha cara: A morte precoce da minha irmã mais nova em pleno ano novo, descobrir que a irmã mais velha era meia-irmã, essa mesma irmã ter engravidado aos 14 anos, o que a tirou de perto de mim para viver uma vida adulta na marra. Depois, já num momento mais recente, saber da existência de outra meia-irmã mais velha que surgiu de supetão na vida da minha família para não sair mais. Detalhe: Filha da minha mãe.
‘O perigo de estar lúcida’ explora como o processo criativo e a nossa mente funcionam. Gosto da maneira como Montero entrelaça memórias, ficção e histórias dos outros.
Ela fala sobre como a loucura tem um papel crucial na arte e na literatura, explorando memórias de diversos artistas, escritores e pensadores, neurociência, psicologia, além de sua experiência pessoal para buscar conexão entre a criatividade e a instabilidade mental. A primeira metade foi a que mais me pegou. Ela fala sobre a multidão que vive dentro da gente, de eventos familiares que nos transformam por inteiro e dos impostores que nos fascinam.
Comigo foi sempre assim. Eu tinha uma cidade inteira vivendo dentro mim até o fim da adolescência. Escrevia sobre eles em diários, que queimei, como se eles existissem. Lembro-me apenas da Aline, o meu alter-ego. Ela era tudo o que eu queria ser: Popular na escola, inteligente, descolada e bonita. Carrego comigo uma única tatuagem que resume tudo isso: "Je est un autre" (Arthur Rimbaud). Em tradução livre "eu sou um outro".
Convivi com muitos impostores, um deles era o meu melhor amigo com quem eu dividi um apartamento em São Paulo. A história que se revelou após quase dez anos de amizade era tão escabrosa que levei anos para superá-la. Se Ripley existiu, ele morou comigo. A Montero conviveu por décadas com uma impostora que se passava por ela mundo afora promovendo muita confusão e constrangimento em sua vida.
Não somos as únicas a serem fascinadas por eles, basta ver o sucesso de tantos impostores no mundo, desde a fascinante história de Martin Guerre, que em pleno século quinze sumiu e foi substituído por um impostor anos depois que convenceu a esposa que se tratava do ‘original’, até a Anna Delvey, que rendeu uma das séries mais assistidas da Netflix. Mesmo tendo sido descoberta, hoje ela tem um milhão de seguidores no Instagram, continua ganhando fãs e vendendo arte, a qual chega a custar vinte e cinco mil dólares, para pagar as contas. Ela segue em prisão domiciliar e teve o acesso às mídias sociais restringida.
Somos fascinadas por pessoas que conseguem viver vidas que não são a delas de maneira tão autêntica. Um paradoxo. São pessoas que nasceram para atuar, mas ao invés de escolher os palcos, escolheu a própria vida para se tornar outro.
Do livro da Montero eu levo que não é preciso ser louca para ser uma pessoa criativa, mas muitos artistas alcançaram o patamar de gênio ao conseguirem colocar para fora todo o mundo que vive dentro deles. A lista é grande, mas aí convido você a ler o livro.
Deixo um ótimo texto sobre o mesmo livro escrito pela
.Baile de Peruas
O mês de março foi um mês de perdas. Duas pessoas que eu gostava muito partiram. Duas mulheres criativas de gerações diferentes, mas não tão distantes. Duas mulheres que brilharam em tudo que fizeram, viveram a vida do jeito que queriam, inspiraram toda uma geração, ou duas, ou três. Deixaram suas marcas e legado.
Amo vocês Liana e Magy.
Liana Padilha foi um meteoro carregado de poesia e criatividade que passou pela Terra. Conheci o Noporn na minha fase clubber em São Paulo, onde a Liana serviu como ícone de toda uma geração da cena underground paulistana e de outras cidades. Nos conhecemos na pista anos depois quando eu já produzia festas. Conversamos pela primeira vez no Vegas, mas rolou uma aproximação maior quando nos encontramos em Berlim. No ano passado, eu tive o privilégio em assisti-la no WHOLE, onde ela deu tudo o que tinha naquele palco fazendo o show mais bonito que vi do duo. Saí tão impactada e emocionada naquela noite, que será essa imagem dela que carregarei comigo.
Já a artista plástica Magy Imoberdorf foi peça-chave na publicidade brasileira, especialmente considerando o período em que atuou ativamente à frente da Lage'Magy. Era uma mulher desempenhando papéis de Diretora de Criação e Presidente em uma indústria predominantemente masculina. Foi ela quem criou os famosos slogans "Uma boa ideia" para a 51 e "Incomodada ficava a sua avó" para a Tampax.
Eu a conheci já morando em Berlim. Além de ser minha vizinha, era também mãe da minha amiga Nic. Generosa, ofereceu-me espaço em seu estúdio quando comentei que não aguentava mais trabalhar em casa. Lá, eu adorava vê-la trabalhar em suas belas criações em tecido, que coleciono em um livro de registro que ela me deu.
Quando nos aproximamos, eu a via como a mãe que deixei no Brasil, até mesmo com direito às broncas que ela adorava me dar. Cheguei a ficar um pouco viciada em sua companhia. No entanto, a máquina de costura sempre ligada acabou não sendo uma boa companheira para as minhas intermináveis reuniões (e vice-versa). Voltei para a solidão da minha escrivaninha em casa.
Acabamos nos afastando aos poucos, talvez também porque nessa mesma época eu tenha me afundado em uma bolha de tristeza. Quando a bolha estourou, era tarde demais.
Fiquei arrasada com essas duas partidas tão prematuras e inesperadas. No entanto, parafraseando Bertolt Brecht, "temam menos a morte e mais a vida insuficiente". Essas duas viveram vidas plenas.
Morar no estrangeiro tem isso, nos aproxima de nossos ídolos de um jeito mais fácil, pois estamos em terras distantes morrendo de saudades do que um dia chamamos de lar. Encontrá-los nos lembra quanta beleza e potência criativa tem em nossa terra natal.
Celebro a vida da Liana e da Magy e ao quanto as duas nos inspiraram e brilharam nesse planeta chamado Terra. Descansem em paz, minhas amigas. ♥︎
Running
📚 Lendo "Middlesex", de Jeffrey Eugenides, e amando!! É um tijolo, mas logo logo falo sobre ele;
📚 O marido terminou de ler "Morrer sozinho em Berlim", de Hans Fallada, que também é um tijolo (640 páginas), mas é uma leitura bem fácil e envolvente. O livro é baseado na história real de um casal que perde o único filho na guerra lutando ao lado dos nazistas e se volta contra o regime. Soube que o autor estava debilitado e internado quando escreveu o livro. Ele datilografava trinta páginas por dia e o concluiu em trinta dias, mas morreu antes de vê-lo publicado.
📺 Terminei de assistir "Constelação", na Apple, e tive que recorrer à explicação.
🎧 Estou com dois episódios de podcasts (em inglês) para ouvir relacionados à amizade. Ambos têm Rhaina Cohen como convidada, autora do livro "The Other Significant Others", que conta a história de pessoas que colocam uma amizade como o relacionamento central em suas vidas — compartilhando casas, criando filhos juntos ou cuidando um do outro por décadas. Assim como casais românticos, esses amigos formam um "nós". A primeira conversa é com o Ezra Klein (tem transcrição no site, então quem não ouve podcast em inglês, pode ler e/ou traduzir o texto) e a segunda, na Vox.
🔈 Ouvindo o álbum "The Carnegie Hall Concert (Live)", da Alice Coltrane, que acabou de ser lançado. Lindo! Lindo!
✨ "Evidence: Patti Smith e Soundwalk Colective", exposição em cartaz no MAC/CCBB, em Lisboa. Adorei esse texto sobre a mostra.
🎢 Você já ouviu falar sobre o Vale da Baunilha? Caso trabalhe com experiência de marca, cola no texto!
Por hoje é isso! Desejo a todos uma ótima páscoa e um bom feriado! Por aqui, são quatro dias de puro deleite em meio à uma primavera que está chegando bonita e quentinha.
é tão bonita a forma como você escreve sobre as pessoas que marcaram sua vida, Lalai. sinto muito pelas perdas precoces e por aquilo que não deu tempo de (re)fazer, mas sinto também a beleza nas amizades que existiram entre vocês.
saio daqui com uma frase para levar para o sempre -- "temam menos a morte e mais a vida insuficiente" -- e com um livro adicionado à lista de leitura.
esse foi o livro que mais me impactou esse ano também, Lalai... me abraça! alias, abraça forte aqui, sinto tanto pela perda dessas mulheres incriveis. beijo na alma. <3