Espiral #31: A saga da volta pra Berlim
Futuro dos shows ao vivo, SOPHIE, Prince, buscando a felicidade na Grécia Antiga, Joan Didion, Enheduanna
Trilha sonora no mood Berlim feita pra Espiral pelo meu amigo Geremias Brawers: berline-se.
Feliz ano! Estou de volta. Espero encontrar todos vocês bem. :)
A volta para casa
Era quinta-feira, 21 de janeiro, quando recebi a mensagem de uma amiga dizendo que a Holanda baniria os voos vindos do Brasil a partir de 24 de janeiro.
Enquanto nela batia o desespero de não conseguir voltar pra Berlim, eu contemplava o dia ensolarado através da janela do meu quarto com um sorriso maroto.
Com uma quarentena prevista de dez dias, a temperatura beirando zero grau e a ausência do sol, a ideia de esticar a temporada em São Paulo soou tentadora. Mas como ali, na cidade em que nasci, minha vida seguia suspensa há 43 dias, eu caí na real deixando de lado essa tentação. Fiquei então pendurada 2h15 no telefone esperando a KLM me atender do outro lado da linha. Ela não atendeu. Desisti. Talvez eu devesse mesmo ficar, mas no dia seguinte a KLM me enviava uma oferta para eu embarcar no domingo num voo da Air France.
Achei sensato não desafiar o destino e aceitei então a mudança. A partir daí foi um deus nos acuda. O teste PCR marcado para sexta-feira já não valia mais. Eu precisava fazê-lo em até 48 horas antes da minha chegada em Berlim, ou seja, no sábado num laboratório que me entregasse o laudo em inglês em no máximo 24 horas. Depois de muita pesquisa e teste marcado, eu entrei numa correria que só terminou quando minha irmã me deixou com o coração aos pulos no aeroporto de Guarulhos.
Eu estava tão exausta que parecia que eu tinha saído de um voo de 12 horas na econômica sob efeito de algum hipnótico, mas essas 12 horas eu ainda encararia e não teria um sonífero pra me acudir.
A fila para despachar a bagagem era grande. Eu me senti nos anos 1990 enquanto observava a maioria das pessoas segurando uma pasta com muitos papéis e o passaporte nas mãos. Todos de máscara, dessa vez cirúrgica, já que as de tecido foram banidas pela Air France (e também de várias cidades europeias).
O mundo me pareceu mais austero e arriscado do que no voo de ida onde rostos desconhecidos estavam cobertos por tecidos coloridos, alguns deles brilhando cobertos de paetê ou com desenhos divertidos. Nesse retorno a moda não teve lugar para apaziguar a presença desse objeto que se tornou crucial no nosso dia-a-dia.
Já no guichê, eu entreguei meu passaporte, o teste PCR, dois comprovantes obrigatórios, um com meu endereço em Berlim e outro com meu visto de residência. Tudo foi analisado criteriosamente. Eu sentia um frio na espinha como o que senti todas as vezes em que fui interrogada sob um olhar acusador na imigração americana.
Estava tensa de que tinha esquecido algo, mas fui aceita. A sensação foi essa: ser aceita a entrar num país que não é o meu. O mundo globalizado, que outrora tanto explorei, não existe mais. Agora, para dar um passo, precisamos de um papel na mão para provar que podemos dá-lo.
Estar no Brasil em meio à uma pandemia não é para os fracos. Na Europa nós tivemos verão, o que deu um respiro pra muita gente incluindo eu. Já quem mora no Brasil não teve trégua. Ler as notícias diariamente do que está acontecendo com o nosso país é motivo para acessos de raiva e desânimo constante, além de aumentar a preocupação com as pessoas que amamos.
Enquanto na Alemanha o governo discute exaustivamente medidas para frear o espalhamento do coronavírus, no Brasil é cada um por si se cuidando como pode até hoje. Foi difícil relaxar, especialmente por ter ficado a maior parte do tempo com meus pais. Fiz pelo menos 4 testes de Covid no período, mesmo sem sintomas, apenas porque eu noiava.
Quando me sentei num restaurante do aeroporto, foi como se eu tirasse das costas uma mala muito pesada. Da caixa de som do restaurante saía Funeral, do Arcade Fire, álbum que evoca a doença e a morte, mas também a renovação. Funeral questiona como chegamos até aqui. Discorre sobre uma geração dominada pela frustração, inquietação, medo e tragédia. Fala sobre solidão. Funeral, apesar de ser de 2004, traduz muito bem o nosso último ano.
Enquanto aguardava o meu almoço e cantarolava “Wake Up”, eu deixei as lágrimas rolarem acompanhadas de um pesar tão grande que eu não sabia de onde saía. Senti saudades de casa, da nossa vida de outrora, dos encontros efusivos e também senti medo por achar que posso ter encontrado algumas pessoas pela última vez. Funeral tocou três vezes na íntegra como um lembrete sobre tudo que eu estava deixando ali e talvez não teria mais.
Voo cheio com provavelmente nenhum turista. Eram, na maioria, famílias voltando para suas casas. Contemplei São Paulo aos meus pés embalada pela trilha sonora repetitiva da Air France, Parade, do francês Rone, um convite para se debulhar em lágrimas de novo. Foi a primeira vez que parti do Brasil sem saber quando eu retornaria.
Jantei e apaguei. Despertei com o café da manhã sendo servido numa caixa de papelão com pão murcho, manteiga, suco de laranja, um potinho com frutas e um iogurte. Se os preços baixos das passagens estavam acabando com o serviço a bordo, a pandemia terminou de enterrá-lo.
Entre o café no avião e a minha chegada em casa, eu entrei num transe que tudo passou tão rápido que eu mal notei a vida acontecendo à minha volta. Logo já estava descendo de um trem em Prenzlauer Berg, o meu bairro. O vento gelado no rosto veio com alívio e finalmente eu me senti feliz, afinal eu estava de volta pra casa.
No sábado saí da primeira fase da quarentena após ter feito um novo teste de coronavírus. Os dias em Berlim estão bem gelados, mas têm sido ensolarados com céu azul clarinho e muita neve ao redor.
Agora sigo leve, esperançosa e torcendo por todos nós para que 2021 seja o início do fim mesmo que ele ainda não tenha dado esse sinal, mas para os que chegaram vivos até aqui, isso já é uma vitória.<3
Vamos ter festivais de música em 2021?
Foto que tirei no festival NOS Alive, em 2016.
Trilha sonora: Collapsed in Sunbeams, álbum de estreia da genial Arlo Parks
Estamos há um ano tentando desenhar vários futuros possíveis e entender o que passará a ser o novo normal. Erramos um tanto, mas continuamos na tentativa e erro. No último mês eu fiquei de pernas pro ar em São Paulo e praticamente só consumi conteúdo sobre análise do futuro da cena musical, seguem aí alguns achados:
O Primavera Sound promoveu uma noite de shows para testar o risco de transmissão de Covid-19 em eventos ao vivo. Seguiram todas as medidas de segurança, como teste antígeno na entrada, distribuição de máscara N95 de uso obrigatório e desinfecção das mãos. Distanciamento social não foi imposto, assim como era permitido dançar e cantar. Participaram 1.047 pessoas com idade entre 18-59 anos, sem comorbidades e que não tinham sido diagnosticadas com Covid nos últimos 14 dias.
O resultado foi positivo mostrando que participar de um show ao vivo seguindo uma série de medidas de segurança não aumenta o risco de infecções de Covid-19. A Alemanha fez o mesmo estudo com resultado bem similar e Luxemburgo fará um teste neste mês.
Quando os festivais voltarão a acontecer ao vivo a gente não sabe, mas quando eventos como o Glastonbury e o Coachella cancelam suas edições 2021, é motivo para ficarmos atentos.
Na contramão, o Primavera Sound, o Sónar Barcelona, o Iceland Airwaves, Dekmantel, Lollapalooza, Rock in Rio e o Exit (Sérvia) são alguns dos vários festivais confirmados para 2021, mas se eles de irão de fato rolar é uma aposta. A Espanha, por exemplo, tem a intenção de barrar o turismo até o fim do próximo verão. Ou seja, se o Primavera e o Sónar seguirem o cronograma, a edição física contará apenas com presença de público local.
Aqui em Berlim o segundo lockdown está rolando desde novembro, mas ficou mais restrito em dezembro. Atualmente abrem somente estabelecimentos essenciais, como supermercado, farmácia, livraria e loja de bebidas (?), assim como não devemos ir além de 15km de nossas casas. O Berlin Club Commission está bem pessimista com a reabertura dos clubs, que para eles não reabrirão as portas antes de 2022.
A NME escreveu um longo artigo analisando a possibilidade dos festivais acontecerem ao vivo no próximo verão na Inglaterra. Um dos médicos entrevistados afirma que para ter alguma segurança o ideal é que 60% da população esteja vacinada, que por lá está previsto para acontecer até o final de setembro, ou seja, o verão já soa comprometido.
A Mixmag afirma que nas atuais circunstâncias de lockdown na Europa não será possível contar com festivais acontecendo esse ano. Eu concordo com o artigo.
Mas enquanto não há luz no fim do túnel, a busca por soluções alternativas continuam. O último lançamento é o projeto Teatro Vertical (UK), previsto para estar pronto ainda em 2021, com capacidade para até 2.400 pessoas, e também arenas construídas visando o distanciamento social em pods elevados. Além disso tudo, continuamos a ter uma evolução nos eventos online, como o show do Criolo em realidade estendida (que infelizmente eu perdi).
A Austrália, um dos países com o lockdown mais restrito e longo do mundo, teve quase 50% da população testada, 28.818 casos de infectados, 909 mortes e atualmente contam com 59 casos ativos. O Secretário da Saúde afirmou que o país não abrirá a fronteira para estrangeiros antes de 2022. O resultado é que a Austrália começa aos poucos a voltar ao “normal”. Uma colega, que mora lá, foi a um festival na semana passada que seguiu distanciamento social utilizando pods, ou seja, cada grupo de amigos ficou no seu quadrado e só saía para ir ao bar ou banheiro. Ela amou a experiência.
O relatório Future 100_2021 discorre sobre o futuro dos eventos ao vivo mostrando exemplos do que tem sido feito desde o início da pandemia, mas sem muita pista do que será de fato esse futuro. Não mencionam a vacina, mas a principal pergunta que temos hoje é justamente se a chegada da vacina é a resposta para o show continuar.
Uma coisa é certa: a pandemia acelerou a incursão da música ao vivo no meio digital como já sabemos. Mas como disse a Fabiane Batistela (SIM SP) nesse artigo sobre “O que será da música em 2021?”: "Pago ou de graça, o artista precisará oferecer uma experiência incrível para o consumidor."
Um pouco mais de música….
Foto: SOPHIE
Uma das notícias mais tristes desse fim de semana foi a morte trágica da SOPHIE. Ela era uma das artistas atuais mais visionárias e que redefiniu a música pop. Deixo aqui um vídeo em que ela discute sobre criatividade com uma inteligência artificial, a Sophia. R.I.P. SOPHIE.
Uma das últimas doces memórias que tenho de estar dançando feliz numa festa, era o Ricardo Villalobos quem comandava a pista. A música que marcou a noite pra mim foi o remix de “Smek” (Ÿuma) produzido pelo próprio Villalobos, que foi lançado há alguns dias e tem sido tocado aqui em casa como mantra. Lindíssimo!
A dupla Bicep lançou Isle, já um dos meus álbuns favoritos de 2021. Senti uma ode à dance music dos anos 1990 que tem me embalado por aqui.
O Resident Advisor, acusado de ser uma das mídias responsáveis pelo whitewashing da música eletrônica, fez sua mea-culpa e está trabalhando para reverter o dano causado. Lançou recentemente o Re-Record, uma série para apresentar 120 artistas negros essenciais na música eletrônica entre 2001-2020. As duas edições que saíram também dá o devido holofote às DJs/produtoras mulheres.
A coluna “Diary of a Song”, do NYTimes, trouxe a história por trás de “Sign “O” The Times”, do Prince, entrevistando várias pessoas que trabalharam com ele. A melhor parte é o fato que o Prince odiava falar alegando que precisava preservar a voz. O programa está divertido e mostra o porquê Prince é considerado um gênio da música pop.
Quem está precisando acalentar a alma, eu recomendo assistir o Tiny Desk Concert com o Max Ritcher e Tripping with Nils Frahm, no MUBI.
O festival A L’Arme, dedicado a filmes de concertos, está rolando online até dia 28 de fevereiro. Nessa edição um dos destaques é o novo concerto do Alva Noto e de Caspar Brötzmann Bass.
Algumas rapidinhas
A filósofa italiana Ilaria Gaspari resolveu seguir os ensinamentos da Grécia Antiga para encontrar a felicidade. Foram seis semanas vivendo de acordo com os preceitos de diferentes pensadores da época. Ela manteve um diário com a experiência que acabou virando o livro “Lições de Felicidade - Exercícios Filosóficos para o Bom Uso da Vida”. Nessa entrevista para a Gama ela conta um pouco sobre o processo e conclui que os gregos “tinham uma noção mais inclusiva de felicidade, porque a veem como um caminho que você traça para ir de um ponto ao outro. Você faz sua própria rota e essa rota é a felicidade. Essa ideia é muito libertadora.”
Estou terminando de ler “O ano do pensamento mágico”, de Joan Didion, em que a autora narra o luto pela morte do marido e também a doença de sua filha, que viria a falecer dois anos depois. É um livro triste, mas Didion escapa da auto-piedade numa narrativa envolvente sobre sua busca por um novo caminho para seguir vivendo sem o marido. Quem conhece pouco da autora, eu recomendo bastante o documentário “Joan Didion: The Center will not Hold”. Recentemente a Todavia lançou uma coletânea com 20 textos escritos nos anos 1960, “Rastejando até Belém”, que está na minha lista por aqui.
Já ouviu falar sobre a Enheduanna? Eu a desconhecia, mas ela era poeta e foi a primeira a escrever obras literárias na História da Humanidade. Fascinante descobri-la, especialmente por ser uma história de mais de 5 mil anos quando “a princesa, escritora e alta sacerdotisa Enheduanna viveu num tempo sem divisões tão claras de gênero, onde uma mulher poderia ser tão dotada de recursos e conhecimento quanto um homem, exercia o sacerdócio e assumia altas posições de poder.” Já fomos avançados um dia.
O Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em conjunto com a Boitempo está promovendo o curso Pensamento Crítico com uma lista de pensadores bem atual, como Angela Davis, Slavoj Žižek e Judith Butler. Os ingressos estão esgotados, mas as aulas estão sendo disponibilizadas posteriormente.
No último dia 29 de janeiro celebramos o Dia da Visibilidade Trans. A Elástica fez uma uma lista bem diversa traçando 21 perfis de pessoas trans para conhecer. O texto “Eu sou a travesti que posou na sua sopa”, de Leandrinha Du Art, é um soco no estômago, enquanto minha querida amiga Renata Bastos escreveu um belo manifesto sobre os desafios de ser trans nos deixando com questões para refletirmos. A maravilhosa Aretha Sadick contou uma fábula para questionar como a sociedade enxerga pessoas trans.
O FFW lançou uma nova plataforma de ensino, o FFW Aprender, com cursos voltados ao mercado da moda. O próximo curso é o “Coolhunting: Aprenda a identificar e analisar novas tendências de moda, beleza e comportamento.”
Ufa Demorei a voltar, mas aproveitei o computador quebrado pra ficar desconectada. Na próxima semana eu volto com a Amiga Genial apresentando minha saudosa amiga Carol Bueno. <3
Boa semana para vocês.
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essa sensação de "a ultima vez que eu vou ver algumas pessoas" foi uma das piores q ja senti na vida. ainda em recuperação desse sentimento e tentando abafar a auto piedade como a didion, obrigada mais uma vez <3