Espiral #70: As comunidades e o tempo
Parte 2/2 do especial sobre comunidades com o Gustavo Nogueira, da Torus
Trilha sonora 1: SXSW Music 2023 que estou fazendo com os artistas que quero ver no SXSW
Uma das comunidades que se tornou meu porto seguro no meio da pandemia foi o Sandglass, no WhatsApp, formada por um grupo de brasileiros muito diverso das mais diferentes áreas de atuação. Por lá, eu aprendi muito, conheci pessoas que eu não teria conhecido de outra maneira e treinei meu lado crítico dada às ricas discussões que rolavam. Falo no passado, porque num momento de limpa de grupos, eu acabei saindo da comunidade por acreditar que ela tinha feito o seu devido papel na minha vida.
Foi nessa comunidade que eu me reconectei com meu amigo do tempo, que eu sempre menciono por aqui, o Gustavo Nogueira.
Quando eu escolhi “comunidades” como tema para a Espiral, o Gustavo logo me veio à mente pela maestria que tem em construir conexões, reunir pessoas e inspirá-las. Batemos um papo maravilhoso e no fim eu decidi convidá-lo a escrever a parte 2 sobre este tema tão rico. Além de ter ótimas referências, ele me trouxe ótimos insights e reflexões sobre o assunto.
Comunidade é um assunto que rende muito e que deu início à muitas conversas boas no meu email, inclusive um dos pontos discutidos foi o fato de que nem todo mundo tem a habilidade de criar comunidades. Acredito que cada um de nós tem um papel diferente, seja construindo, conectando, convidando pessoas ou participando. Por fim, quem não tem uma comunidade para se apoiar, provavelmente terá mais dificuldades com a solidão que a falta dela traz.
Deixo aqui as palavras com o Gustavo, meu primeiro escritor convidado da Espiral, para falar sobre seus projetos com comunidades e outras comunidades que fazem seus olhos brilharem.
Compartilhar um propósito comum: Construir o nosso legado no tempo
Trilha sonora recomendada para esta newsletter: Música e arte para quem navega o tempo
Saudações, viajante.
Meu nome é Gustavo Nogueira de Menezes. Meus amigos me chamam de Gust e eu sou um viajante do tempo. Deixa eu explicar: Eu pesquiso temporalidades como narrativas e sistemas sobre o tempo que nos ajudam a mudar a nossa relação com o mundo, com os outros e conosco mesmos. Como estamos nos conectando, vou contar resumidamente sobre essa trajetória de vida e trabalho ao longo de mais de uma década:
O tempo e eu
Sou brasileiro, da região Amazônica, e vivo em Amsterdã desde 2017. Fundei uma consultoria para empresas chamada Torus e um Laboratório de Temporalidade. Sou membro de uma rede chamada Time Machine, que busca perceber novas dimensões da história europeia por meio de projetos de pesquisa em tecnologia e inovação. Coordeno um projeto dentro desta rede sobre heranças culturais e educação na Universidade de Jena, na Alemanha.
Já realizei projetos de educação para o mercado com as principais empresas e veículos líderes na América Latina - Globo, Google, Netflix, Nubank, Santander, Spotify - abordando tópicos centrais ao meu trabalho, como o espírito do tempo, mudança, ancestralidade, futuro, design especulativo e decolonialidade. Eu trabalho com uma comunidade transdisciplinar ao redor do mundo que busca, a partir de uma perspectiva decolonial, estar em sincronia com as múltiplas temporalidades do nosso planeta.
Quero compartilhar com você a importância das comunidades no meu trabalho. Mas sei que abri uma aba de temas importantes com assuntos que podem soar complexos, então aqui vai um jogo rápido de explicações que também falam muito sobre mim: O que é mudança? É a essência da vida. O que é o tempo? É uma maneira de medirmos a mudança. Qual é o oposto de mudança? É a estagnação. O que é temporalidade? É um estado de existência no tempo. Uma forma de relacionamento com o tempo. Por exemplo: Como lidamos com a mudança. Como lidamos com a vida. Como vivemos. Como lidamos com o nascimento. Como lidamos com a morte, etc.
Temporal é a qualidade de tudo que está relacionado ao tempo. Segundo Osho, existimos no tempo, mas pertencemos à eternidade. Tudo é temporal. As forças não binárias da vida são temporárias e eternas ao mesmo tempo. Mas a temporalidade é o reconhecimento de um estado, de uma perspectiva. Que não há uma única verdade. Existem muitos estados percebidos diferentes. Muitas maneiras diferentes de se relacionar com o tempo. Nesse campo de estudos temporais, minha abordagem é inter e transdisciplinar. Entre arte, ciência e espiritualidade. É algo mais que, atravessando todas as disciplinas anteriores, sinto que ainda está por ser nomeado.
Enquanto muitas pessoas vivem e trabalham apenas em fragmentos do mundo, meu lugar sempre esteve em busca de significado e completude. Foi nesse campo dinâmico das relações com o tempo e em como navegamos por mudanças que descobri as temporalidades como uma ponte para outras visões, sentidos e formas de viver. Desde os estudos de física até a comunicação, e entre o ativismo social e, sim, as comunidades digitais, eu encontrei minha própria narrativa para navegar em nosso tempo.
O que emerge no nosso tempo?
Compartilho aqui um exemplo pessoal de como uma comunidade pode nascer e se desenvolver de maneira orgânica e poderosa.
O Sandglass surgiu como um dos artefatos da minha experimentação temporal. Uma ampulheta é um instrumento que só nos conta o tempo se for manuseado por seus guardiões que viram o tempo, sem eles o artefato perde significado. Foi assim que convidei pessoas importantes da minha vida para compartilhar seus aprendizados em sessões online que carregam esse nome - a biblioteca de aulas mais incrível que já tive a oportunidade de curar.
Junto às sessões, abri um grupo no WhatsApp onde as pessoas poderiam trocar ideias entre si e a cada nova sessão chegava uma nova pessoa, até chegarmos ao limite da plataforma de 260 pessoas. Para muitos, o grupo se tornou um espaço de visibilidade em um mercado criativo que não é tão horizontal assim, e isso foi ótimo. Mas, em um determinado momento, percebi que esse elemento “mercado” do grupo no WhatsApp estava se tornando mais importante do que a lente de ser um “espaço seguro para aprendermos sobre o que emerge no tempo” que as sessões tinham originalmente.
Para muitas questões, os participantes me viam como o centro do grupo, mas em um momento de muitas mudanças internas, percebi que esse espaço vivo para o mercado poderia seguir sem mim - e segue, hoje sob a tutela do meu amigo Gab Gomes, ex- Shoot The Shit e hoje diretor na Purpose Brasil, dois exemplos distintos de empresas com colaboração no centro.
Esse exemplo mostra como é importante estar atento às dinâmicas das comunidades e não ter medo de se afastar quando necessário para que o grupo possa continuar a florescer. Quando as conexões são genuínas e as relações são construídas em um espaço seguro e colaborativo, as possibilidades de crescimento e aprendizado são infinitas.
Comunidades que me compõe
Eu troco com muita gente, de muitas áreas diferentes. E ao escrever refleti sobre aprendizados sobre comunidades com quem estive e me fizeram chegar no passo da caminhada que estou hoje:
Perestroika:
A Perestroika abriu sua metodologia de experiências e se tornou régua para o que estava sendo feito em educação até então. No auge, a escola criativa me proporcionou um espaço tanto como aluno quanto como professor, com oportunidades de conexão e troca em que conheci o saudoso mestre Oswaldo Oliveira, ícone de horizontalidade e autogestão em organizações da economia colaborativa. Ele, assim como Lala Deheinzelin, já ensinavam sobre redes descentralizadas muito antes de ouvirmos falar sobre DAOs.
Na época, livros como "O que é meu é seu" e "Empreendedorismo Criativo" eram e seguem fontes de inspiração para pensar e agir em rede. Aliás, foi lá que conheci meu amigo Franklin Costa, que tem uma excelente comunidade para curadores de eventos e experiências chamada OCLB. Essas ideias tiveram um papel importante na criação do meu curso com a Peres sobre o espírito do tempo "Fractal", que convidou novos protagonistas da comunicação para viajar por diversas capitais do Brasil e que hoje tem um compilado dos principais aprendizados em formato online.
Youpix:
Criada pela minha amiga Bia Granja, é uma comunidade que se reinventa e se mantém relevante ao longo do tempo. Ela já foi revista, festival, escola e consultoria, e agora se dedica a ajudar o público a se profissionalizar usando conteúdo e influência. É aí que está o pulo do gato do Youpix que sempre atende quem está entrando no mercado da influência. Lembro-me de ter ido à festa no Ibirapuera e de ter trabalhado em várias iniciativas com a Youpix. Mas foi no palco online do summit, durante a pandemia e já morando fora do país, que apresentei meus estudos sobre temporalidade e a importância de mudarmos os drivers da aceleração para a sincronicidade ao mercado brasileiro pela primeira vez. A própria Bia está em um excelente momento de estudo interno e recriação para o que virá a seguir.
IAM:
O IAM (Internet Age Media) significa "Era da Internet", mas o que eu amo é que o nome também pode ser interpretado como "Eu Sou". André Colmenares e Lucy Black Swan, que moram em Barcelona, são originalmente da Colômbia e trazem suas raízes latinas para este projeto, que reúne artistas, pesquisadores e futuristas em busca de novas maneiras de se conectar.
Uma das publicações mais populares da dupla fala sobre o fim das antigas fronteiras, a partir do conceito de “intercidadania”, que é o ponto de partida para a robusta iniciativa do Billion Seconds Institute, que reúne uma comunidade em torno de visões de longo prazo e uma programação pensada para durar pelo menos 31,5 anos (um bilhão de segundos). Eu tenho o prazer de fazer parte da comunidade e hoje sou amigo do casal. Foi assim que fui convidado para ministrar uma edição em Barcelona do meu workshop "Temporal", onde experimentamos diferentes perspectivas sobre temporalidade através de uma abordagem decolonial. Eu recomendo assinar meus emails para receber informações sobre próximas edições.
Time Machine:
O Time Machine Organization é um consórcio europeu composto por universidades, galerias, bibliotecas e museus, que vem desenvolvendo tecnologias relacionadas à memória e ao patrimônio imaterial. A sincronicidade me fez ver um cartaz de um de seus eventos em 2018 enquanto caminhava pelas ruas de Amsterdã, após um dia exaustivo de trabalho em uma conferência europeia. Decidi participar do evento e as ideias em torno de humanidades digitais e heranças culturais, que se misturam com conceitos temporais, mapas 4D e viagens no tempo por meio de mundos virtuais ainda fazem meus olhos brilharem. No ano passado, fui convidado a coordenar a criação de uma comunidade que conecta os desenvolvedores dessas tecnologias inovadoras às instituições culturais em uma iniciativa que é escola e mercado.
Essas comunidades são mais que redes de conexões. São alianças afetivas. Com elas tive oportunidade de aprender bastante e viajar bastante também. Atualmente, estou trabalhando entre Holanda, Alemanha e Áustria, onde estão localizados os parceiros que ajudam a concretizar uma das iniciativas que mencionei, ou para países onde me convidam para aulas e palestras. O que me faz querer reforçar que comunidades digitais e grupos em diferentes espaços territoriais tem muito a aprender quando em colaboração e não em competição.
Comunidades são espaços-sementes
Comunidades são espaços poderosos e transformadores, capazes de criar significado em um mundo que muitas vezes parece sem sentido. Acredito que elas serão fundamentais para a construção do que o autor Jamie Wheal chama de sentido 3.0 - um novo paradigma que nos permitirá experimentar diferentes formas de ser até encontrarmos aquela que mais nos ressoa como indivíduos.
Para alcançar esse objetivo, precisamos aprender com uma variedade de fontes, incluindo aí desde cultos até comunidades de estilos de vida. Embora ambas as práticas tenham suas falhas e desafios, elas nos ensinam muito sobre como formar tipos de pessoa e construir cultura. É por isso que fico animado em ver pessoas como a Laura Peña levando a sua oficina de design de rituais para crises existenciais a mais lugares do Brasil - essa é uma maneira de criar comunidades mais intencionais e significativas.
Obviamente, precisamos ser cuidadosos com as lideranças centralizadas e abusivas que frequentemente acompanham esses diferentes formatos. No entanto, isso não significa que não possamos aprender com as boas práticas que essas comunidades adotam. Um pesquisador que admiro criou um framework que gira em torno da formação de cultura - o que está no centro de qualquer culto - e essa é uma abordagem que acredito ser especialmente relevante para as comunidades que criamos. Mais que isso, para os tipos de pessoas que queremos nos tornar e que formamos junto conosco.
Em última análise, acredito que as comunidades serão as sementes que nos permitirão crescer e prosperar como indivíduos e como sociedade. Se aprendermos com nossos erros e construirmos com cuidado, poderemos criar algo verdadeiramente especial juntos.
Foi em um espaço de coworking na Vila Madalena que conheci a Lalai. Mais uma década se passou desde então até eu topar resumir alguns dos meus aprendizados e perspectivas sobre comunidades. Onde as suas comunidades e alianças afetivas de hoje vão te levar daqui a uma década?
Um beijo,
Gust
Amigo da Lalai - e agora também seu amigo - viajante do tempo.
Lalai de volta aqui: Obrigada por chegar até aqui e espero no futuro voltar a discutir comunidades. Estou de malas prontas para o SXSW, por isso na próxima semana eu enviarei uma newsletter um pouco mais simples focada na minha história com este festival, que faz parte da minha vida há mais de uma década.
CooCool
Deixo aqui algumas leituras interessantes que passaram por mim nos últimos dias:
Comunidade é sobre usufruir e contribuir, do
;Ganhei o “commonplace book” que traz o processo criativo que rolou durante a criação dos álbuns “Kid A” e “Amnesiac”, entre o Thom Yorke e o criador das capas, Stanley Donwood. Ainda escreverei mais a respeito, por enquanto estou aqui babando nele;
Entrei para a lista de pessoas que estão obcecadas com a série The Last of Us, na HBO.
Nos vemos em breve! Tchau :)