Espiral #54: O dia em que me mataram
Jocktrasp, Sigur Rós, Lauren Elkin, deepfake, a arte do meme
Random Access Memories, do Daft Punk, é a trilha sonora para essa newsletter
Estou num dos lugares mais bonitos que conheço. São 17:21, o sol segue alto, mas meio escondido atrás de uma bandeira sueca estendida num mastro. À minha frente, um mar muito calmo, que se disfarça de lago, com ilhas espalhadas como confete de carnaval. A trilha sonora são os cantos de pássaros, nem afinados, nem farfalhantes. Um barco estacionado soa convidativo para um passeio na água plácida ao seu redor. Mas eu fico aqui entregue a tantas histórias que vivi nesse canto tão lindo do planeta:
Há treze anos eu me sento nesse mesmo lugar para apreciar de olhos sempre arregalados essa mesma vista. Foi neste quintal, com vista para o mar, que fiz minha festa de pós-casamento ao lado de dezenas de amigos que vieram do Brasil para celebrar minha história de amor.
Lembro-me da primeira vez que viajei até aqui para conhecer a família do meu marido. Eu estava nervosíssima. Namorávamos há menos de um ano e ele já morava na minha casa, porém retornou pra Suécia pra uma longa temporada por falta de visto. Eu, saudosa que fiquei, fiz as malas e vim atrás dele com a desculpa de comemorarmos juntos o meu aniversário.
Era 2009, época em que eu produzia festas e estava colocando no mundo o meu primeiro negócio. Embarquei no dia 31 de maio, um domingo, para Paris. Na véspera, eu tinha feito a festa CREW, no finado Clube Glória, por isso a viagem me aguardava em pleno domingo e não numa sexta-feira como de costume.
Uma ressaca e cansaço me acompanhavam. Eu só pensava em entrar no voo, apagar e acordar na manhã seguinte, numa das minhas cidades favoritas do mundo, onde o meu futuro marido iria me encontrar. De fato, eu apaguei. Às 11:35 pousei no aeroporto Charles de Gaulle, às 13:30 eu descia na estação Denfert-Rochereau pra encontrar um amigo que nos receberia em sua casa. Ele estava pálido, agitado e nervoso. Quando me viu, correu na minha direção e me deu um abraço apertado como o que damos em despedidas. “Que alívio ver você.” Eu não entendi o comentário e perguntei o porquê. “Você não está sabendo?”
E então ele me contou com lágrimas nos olhos sobre o voo da Air France 447, vindo do Rio de Janeiro rumo à Paris, que tinha desaparecido no meio do caminho. Até aquele momento não havia muitas notícias a respeito. Como eu viajava muito com milhas, às vezes a opção de viagem era viajar via Rio. Não foi o caso neste dia, eu tinha viajado direto de São Paulo.
Tentei me comunicar com meus pais para avisá-los que tinha chegado bem pois, a essas alturas, a notícia tomava conta de todos os noticiários matutinos do Brasil (e do mundo). Na época, não tínhamos o WhatsApp e nem mesmo o Instagram, o que reinava era o Twitter. Para tentar contato com algum amigo no Brasil àquela hora da manhã, foi a ele que recorri. Quando fiz o login, eu me deparei com 6 mil novos seguidores que ganhei após alguém tuitar que eu tinha previsto a minha própria morte, porque antes de embarcar eu tuitei “Indo pro aeroporto numa baita ressaca. Vou morrer no avião hoje.” Claro que foi metaforicamente, mas levaram a cabo.
Fiquei assustadíssima com a repercussão e sofri um baque quando vi a notícia num grande portal anunciando “A Blogueira e DJ Lalai morre no voo da Air France 447”. Tudo de muito mal gosto acompanhado da velha história do jornalismo fuleiro: Eu dou o furo e depois checo se é verdade.
Levei algumas horas até conseguir falar com o meu pai, que mal conseguia balbuciar algo, enquanto minha mãe tinha perdido a fala de fato e estava no hospital. O Ola, o futuro marido, estava embarcando de Gotemburgo para Paris pra me encontrar. Amigos tentaram falar com ele, mas felizmente a comunicação ainda não era tão simples, então não conseguiram. Ele só soube o que estava acontecendo quando nos encontramos. Atendi o telefone “Estou viva!”, e ele “Que bom”, pois não tinha ideia do que estava rolando.
Vários apresentadores de programas brasileiros sensacionalistas conseguiram o meu contato e me pediam entrevistas pra falar “como era ter sobrevivido”. Oi? Sim, foi o que eu li em diversos emails e tweets que recebi pedindo por entrevistas. A produção do Datena, sei lá como, conseguiu o telefone da casa do meu amigo onde eu estava hospedada. Não atendi.
Foi um dos piores dias da minha vida. Lembrei desesperada de um amigo que estaria neste voo, mas a boa sorte o levou a cancelar sua volta pra França de última hora. Mal me lembro da comemoração do meu aniversário. Na real, eu não sei se teve. Eu só me lembro de ter passado muito mal e de ter tido diarreia. Só saí da casa no dia seguinte à minha chegada. Fui direto para a Catedral de Notre-Dame e quando cheguei lá me deparei com uma missa acontecendo para os mortos no voo que, a essas alturas, já tinha lista de nomes com fotos ao lado divulgada nos jornais. A igreja estava lotada de funcionários da Air France trajados em seus uniformes. Chorei copiosamente como se de fato a sorte estivesse ao meu lado e eu fosse uma sobrevivente dessa queda.
Uma semana depois, pousávamos em Gotemburgo pra eu ver essa vista à minha frente pela primeira vez. Eu estava tão nervosa por estar aqui e por ter sido colocada numa tragédia que nada tinha a ver comigo, que bebi mais do que deveria e apaguei no meio do jantar numa ida ao banheiro.
Provavelmente, causei a pior impressão na família, mas eu estava em frangalhos e não conseguia parar de pensar que eu teria que encarar dois voos pra voltar para o Brasil. O medo me dominava. Foram nove dias aqui em Ljungskile com essa natureza apolínea, acompanhada de pores-do-sol majestosos tardios, que não deixam a noite chegar, tentando me acalmar.
Aos poucos me restabeleci. Não foi fácil voltar sozinha para o Brasil, pois pela primeira vez eu tive medo de voar e precisei de remedinhos pra apagar entre o voo de Paris e São Paulo. Passei uns dois anos com medo de viajar, não só de avião, mas também passei a ter pânico da estrada. Aos poucos voltei a ser a destemida de sempre.
Enquanto volto o meu olhar para o caminho de luz que o sol vai abrindo no mar à minha frente, eu penso na coleção de histórias boas e ruins que todos nós temos. Não sei exatamente o que me trouxe essa história mórbida à tona, mas às vezes é bom ter consciência de nossa finitude. É ela quem nos empurra para frente e nos permite viver novas histórias, boas e ruins, e não apenas existir.
We let it in
“I love you Jennifer B”, álbum de estreia do duo pop eletrônico Jocktrasp, é surpreendentemente brilhante. A produção é impecável, com direito a acompanhamento de uma orquestra. É teatral do jeito que gosto e, de alguma forma, me levou para as ruas de uma Londres mais contemporânea do que a última que visitei. Infelizmente perdi o show da dupla no Primavera Sound. Alguém aí viu? Deixo aqui uma entrevista com a Georgia Ellery e Taylor Skye para conhecer um pouco mais de onde vem um trabalho tão consistente quanto este lançamento.
A rádio KEXP fez 50 anos e, para celebrar, lançou uma ótima compilação para tirar um sorriso de qualquer indie de plantão. Gosto muito da “cartinha” que costuma acompanhar os álbuns no Bandcamp. Nesse lançamento, a cartinha diz: “Música é sobre conexão. Compartilhamos os sons que nos fazem sentir vivos e celebrar o papel que a música desempenha em nossas vidas.”, que é o meu mote e o que me faz sempre escolher a dedo cada música que compartilho aqui na Espiral.
A meditação passou a fazer parte do meu dia-a-dia durante a pandemia. Não é diária, mas busco conforto nela quando algo me aflige. Eu já fiz várias sessões de meditação ouvindo Sigur Rós, uma das minhas bandas favoritas, por isso o sorriso se espalhou pelo meu rosto quando me deparei com essa lindeza de meditação guiada de 33 minutos, feita pela banda islandesa com texto do filósofo Alan Watts. Dica: O Sigur Rós toca em Berlim no próximo dia 11 de outubro.
Estou adorando os novos estilos musicais surgindo no continente africano. Um dos mais novos (em alta) é o cruise ou freebeat vindo da Nigéria. Este mix do DJ Cora publicado pela Crack Magazine tá puro rebolation.
Parece que eu e o Ola temos um bom gosto musical! Para saber, dê play na nossa playlist parzinho criada pelo Spotify.
Bookends
Estou terminando de ler “Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade”, de Lauren Elkin, que destrincha a cultura do “flanar”, andar por aí a esmo. A cada capítulo, a autora nos leva para passear por uma grande cidade ao lado de uma grande artista. São histórias envolventes que nos faz querer fazer a mala e ir para cada uma das cidades que ela menciona, assim como se debruçar na obra de cada artista retratada. O livro é também um ato político, que nos convida a ocupar mais as ruas, pois assim podemos reivindicar os espaços públicos do nosso jeito.
Pegando carona no assunto, eu recomendo a leitura de “Caminhar: Uma filosofia”, de Frédéric Gros, que esmiuça o poder da caminhada a partir da filosofia. Aqui, os andarilhos são homens.
O silêncio foi um dos temas que me interessou bastante no período de pandemia, ele que é tão simples, mas na maioria das vezes, raro. Li bastante acerca do assunto e, principalmente, me deixei embalar por longos momentos em sua companhia. A Revista Gama fez um especial sobre o assunto: Tá precisando de silêncio?
“Minha maior proeza foi conseguir encontrar o silêncio na vida cotidiana. Graças a isso, às vezes sou como o poeta William Blake: incapaz de distinguir a eternidade de um instante” - Erling Kagge, autor de “Silêncio: Na era do ruído”
Na minha lista de leituras entrou o livro muito bem recomendado “End of Love”, da socióloga Eva Illouz, que fala desse momento nem sempre fácil de identificar que é quando o amor acaba. Recomendo assistir essa entrevista que ela deu a um canal alemão sobre seu outro livro “Why love hurts”. Infelizmente os títulos ainda não têm tradução para o português (alô Ubu!)
Around the world
Eu tive momentos de pânico quando o mundo voltou a rodar, pois o retorno me fez lembrar que ele acontece fora da minha janela e eu não sabia mais lidar com isso. Por isso, este texto sobre a cultura do conforto, no Bits to Brands, traduziu perfeitamente o que ainda sinto muitas vezes desde então. O Google Arts & Culture fez um projeto focado no tema convidando artistas a compartilharem como encontram conforto na cultura.
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Alarmante a previsão de que 90% de todo conteúdo online será produzido sinteticamente até 2026. A deepfake tem tomado conta do TikTok, inclusive no caminho contrário com pessoas reais afirmando terem sido geradas por IA. Deepfakes são áudios e/ou vídeos sintetizados por computador que fazem parecer que as pessoas fizeram ou disseram coisas que nunca fizeram ou disseram. Deixo este deepfake do Tom Cruise no TikTok, que eu acho assustador.
Esse relatório traz um panorama global das deepfakes com menções ao Brasil e esta playlist mostra uma série de vídeos fakes.
É interessante também acompanhar as discussões em torno da inteligência artificial nas artes e na música, como a gerada pelo fato do designer de games Jason Allen ter ganhado uma competição de arte com uma obra feita inteiramente com IA.
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Em 2021, o artista visual brasileiro Von Ha surpreendeu a todos ao ocupar o perfil do Instagram do MAC com memes. Seria afinal o meme uma arte? A discussão é antiga e quem chamou Von Ha de criminoso provavelmente não está inserido na cultura pop. O @freeze_magazine foi lançado em 2019 pelo artista e curador Cem A., que este ano ganhou uma exposição para sua arte feita com memes no Barbican, em Londres, foi um dos artistas selecionados pra documenta15 e agora abre uma exposição amanhã numa renomada galeria de arte de Istambul.
Este artigo traz uma breve história do meme e suas principais plataformas e a newsletter Memeforum é dedicada ao assunto.
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Voltei com a newsletter Mentaland, que é focada no fantástico mundo da Web3, enquanto a fantástica revista Real Life, um dos sites mais bonitos dessa internet, anunciou o seu fim. :(
E, antes de ir, deixo esse ótimo texto da Vanessa Guedes sobre o A Morte do Imperialismo.
Could be more, mas estou indo e volto em breve.
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Nossa, que loucura ler o próprio obituário no jornal! Arrepiada com essa história
Obrigada, Lalai! Se puder enviar a sua playlist Spotfy criada com o Ola aqui, te agradeço. O link da news não funcionou. Bj