Espiral #59: O Berghain e sua influência na cena da música eletrônica
E afinal, o club vai fechar ainda este ano ou não?
Trilha sonora para essa newsletter: Panorama Bar Playlist 11
Agosto 2017
O domingo amanheceu ensolarado com uma temperatura bem agradável. Seria um ótimo dia para bater perna em Berlim, passear pelos seus canais ou improvisar um piquenique à beira de um lago. Dias assim no Hemisfério Norte são feitos para estar na rua, a céu aberto, com o sol batendo na cara, mas às 11h da manhã, eu, o Ola e um amigo entrávamos na fila para (tentar) participar da missa dominical, como ficou conhecido o domingo no Berghain.
Para o nosso azar, era um dos dias mais disputados do ano, quando se celebrava o aniversário do selo Ostgut (extinto em 2021) e o club então abria uma pista extra, o Halle, além do Garten, uma pista a céu aberto que funciona durante todo o verão.
Era 2017 e eu não imaginava que um dia moraria aqui. Eu estava passando uma temporada na cidade, pois eu já tinha uma queda por Berlim que sempre me trazia de volta pra cá.
Essa não era a minha estreia no famoso templo do techno. A primeira empreitada tinha sido dez anos antes, em 2007, quando visitei Berlim pela segunda vez - também após dez anos desde a primeira visita.
Diferentemente do domingo de 2017, eu me aventurei por lá numa sexta-feira gelada de novembro. Sem programação planejada, eu acabei aceitando o convite de um amigo para ir à uma festa no Panorama Bar - a pista secundária do club dedicada ao house e à disco music. Na época eu mal sabia o que era o Berghain. Chegamos, esperamos cerca de 20 minutos na fila e entramos.
Foi nesta viagem que eu me apaixonei e selei o compromisso de um dia morar na capital alemã. Escrevi um postal com a promessa, colei um selo internacional e o despachei pelo correio para o endereço da casa dos meus pais: “Berlim é demais, um dia eu vou morar aqui.”
Quando voltei em 2017 eu já sabia tudo sobre o Berghain e suas histórias. Eu andava numa fase bem autoconfiante, então eu tinha certeza de que não ouviria o famoso “Not today”, que me faria rodopiar no calcanhar, abaixar a cabeça e sair da fila toda vestida de raiva. Ficamos 2 horas esperando e levamos um não bem grandão, que me tirou uma gargalhada alta de tão chateada que fiquei.
Na semana seguinte eu voltei com o Ola e um outro amigo frequentador do Berghain. Eram 13h, o dia estava tão lindo como o domingo anterior, mas decidimos novamente (tentar) trocar todo aquele sol por uma caixa escura. O meu crush pop, a Robyn, tocaria na pista do Panorama Bar e eu queria muito vê-la. Praticamente escorregamos para dentro quando chegou a nossa vez. Parecia ser nosso dia de sorte.
Entramos, largamos a metade da roupa, que já era pouca por conta do calor, na chapelaria e subimos para o Berghain. Agora que a lenda estava totalmente construída na minha cabeça, entrar lá ressoou de uma maneira única.
A pista principal, no 1º andar, é um salão escuro com um pé direito de 18 metros de altura. Thomas Karsten, um dos arquitetos responsáveis pela renovação do prédio em 2004, conta que concebeu o clube para que realmente se parecesse com uma igreja da Idade Média.
Entrei já reverenciando a música, que saía de uma estrutura tão impressionante quanto o lugar, onde 4 Funktion-One Dance Stacks que, somadas à mais uma parafernália, entregam o melhor soundsystem do mundo. Benedikt Koch, o responsável pela instalação técnica, disse numa entrevista à Rolling Stone que, ainda assim, a capacidade utilizada é de 10 a 20% dos equipamentos, fazendo com que o som limpo mantenha as pessoas mais descansadas durante as maratonas de festa. Se utilizassem toda a capacidade, “seria como receber uma massagem em todos os nervos do seu corpo”.
O resultado é praticamente uma experiência espiritual. Todos os apelidos, como missa dominical ou templo do techno, são pertinentes.
Fiquei por um tempo na pista principal embasbacada com sua imponência a ponto de perder metade da live da Robyn, que já rolava no Panorama Bar. Diferentemente da pista Berghain, o Panorama é mais solar, tanto no estilo musical quanto por suas grandes janelas laterais que, mesmo fechadas, deixam feixes de luz entrarem ao longo do dia. Às vezes elas se abrem causando um delírio coletivo antes de serem fechadas novamente. Empolgada como eu estava, me pendurei no parapeito de uma delas para reverenciar a minha diva e ter uma tarde memorável que me fez sair de lá de alma lavada.
Mesmo hoje em dia quando vou ao Berghain, eu continuo me impressionando e me emocionando com toda a sua estrutura e a maneira como a música ecoa lá dentro. Sempre que rola oportunidade, eu vou lá reverenciar alguma lenda da música eletrônica, como na última vez que fui ver o DJ e produtor Robert Hood, fundador do Underground Resistance, que fez um dos sets mais bonitos que já presenciei.
Rumores sobre o fechamento definitivo do Berghain ainda este ano
O Berghain moldou a cena da música eletrônica mundial, em especial a do techno, a ponto das pessoas falarem “ah, esse som é bem Berghain”. O techno “Berghain” se espalhou pelo mundo, ganhou as pistas e tocar lá virou sonho de muitos DJs, assim como muita gente sonha em dançar por lá pelo menos uma vez na vida. Como contei, eu já fui barrada, muita gente que conheço já foi barrada e até o novo dono da rede social do passarinho azul já foi barrado.
Além do estilo musical, o Berghain dita também a moda em Berlim. Têm marcas conhecidas por criarem roupas “estilo Berghain” e você desconfia se alguém frequenta o club pelo corte de cabelo, pela altura da franja e pelo estilo da roupa. Gostando ou não de lá, não dá para negar a sua influência cultural localmente e mundo afora. As pessoas atravessam o oceano só para conhecer o Berghain e, muitas vezes, sequer conseguem entrar.
A história do Berghain vem de longa data, mas não é o club mais antigo de Berlim como muitos pensam. Tudo começou após a queda do muro sob o nome Ostgut, que virou posteriormente nome do selo e da agência de DJs. Só em 2004 é que o Berghain surgiu como o conhecemos. Ele fica numa antiga usina elétrica encravada entre os bairros KreuzBERG e FriedrichsHAIN, por isso o nome. Em 2016 foi reconhecido como uma instituição cultural após entrar com uma ação na corte alemã, o que fez cair sua taxação de imposto de 19% para 7%. Tal iniciativa levou os demais clubs à uma nova ação local, aprovada no ano passado, para dar a eles o mesmo status que só o Berghain possuía até então.
Sua famosa política de “quem entra ou é barrado” o levou à fama internacional, mesmo não sendo nada novo. Basta resgatar a história do Studio 54 para ver uma política parecida e em Berlim ela é regra em muitas festas e clubs mesmo que o ingresso tenha sido comprado com antecedência. No Berghain, ela ficou ainda mais famosa por ter sido personificada pelo fotógrafo Sven Marquardt, personagem singular que se tornou um dos bouncers mais famosos - se não o mais famoso, do mundo e que trabalha lá desde que o club abriu.
Nas diversas entrevistas que dá, Marquardt é sempre questionado sobre quais são as regras para decidir quem entra ou não, mas ele mesmo assume que é tudo muito subjetivo, não importa se a pessoa está toda vestida de preto ou se está super colorida, mas tem a ver com atitude. Pessoas que se montam demais costumam ouvir “tente menos da próxima vez”. Li numa entrevista (não achei o link) em que ele contou rindo que um dia resolveu ir todo vestido de branco e na semana seguinte várias pessoas na fila estavam vestidas de branco da cabeça aos pés.
Para ele, o objetivo da política praticada na porta é manter o Berghain um lugar seguro para quem o frequenta, mas há controvérsias. Recentemente foram acusados pela comunidade local de não prestar socorro à uma vítima que sofreu um ataque com “agulhas” nas suas dependências. Ao contrário, ela foi simplesmente colocada para fora. Após diversas críticas nas redes sociais, o Berghain lançou um manifesto de conscientização numa ação feita previamente pelos demais clubs e coletivos da cidade.
O Berghain é amado e odiado pelas pessoas provavelmente na mesma proporção. Muitos insinuam a prática de uma política racista e xenófoba na hora de decidir quem entra. Se um dia já foi mais claro sacar quem passaria pela porta, hoje em dia está mais difícil, já que para ser mais sustentável, é comum se deparar com um público que outrora não era visto por lá.
Não é também um lugar tão queer quanto foi no passado, mas sabiamente tem conseguido manter sua aura de lugar underground, inclusive fotografar lá dentro continua proibido (o que eu acho uma dádiva).
Há cerca de um mês eu fui marcada em diversas publicações por conta dos rumores de que o Berghain fechará suas portas até o fim deste ano. O famoso selo Ostgut encerrou suas atividades em dezembro de 2021 e recentemente foi anunciado o fechamento da agência de DJs, responsável pelo agenciamento de alguns dos maiores nomes da música eletrônica alemã, o que contribuiu para alimentar a fofoca.
Alguns amigos intimamente ligados ao club me garantiram que o Berghain não vai fechar e eu também acredito que isso seja pouco provável de acontecer tão cedo, mas eu acho que há planos para um futuro não tão distante. Recentemente, a DJ e produtora Honey Dijon ganhou residência no Panorama Bar, o que não faria sentido começar um novo projeto num lugar que fechará em poucos meses. Por aqui, nossos planos é passar o réveillon por lá.
Eu até acho bonito quando um projeto é encerrado no seu auge. É assim que muitas lendas surgem, mas o Berghain já virou uma antes mesmo de suas portas fecharem.
Noite Berlim x São Paulo
Quando meus amigos visitaram Berlim no último verão, um deles ficou desapontado, pois concluiu que a noite de São Paulo é melhor do que a daqui. Eu não duvido. A noite de São Paulo é para mim uma das melhores do mundo, mas não há dúvidas de que a cena berlinense, em especial a do Berghain, inspira bastante as festas mais underground da capital paulistana.
Hoje, São Paulo tem a seu favor uma diversidade musical muito ampla, vide festivais e festas terem atualmente palcos dedicados ao funk, o batidão que de vez em quando invade de maneira improvável a pista do Berghain.
Por aqui, discutimos um pouco sobre o impacto que o fechamento do Berghain causaria na cena em Berlim. A maioria, que trabalha com a noite, acredita que seria positivo, especialmente pela dificuldade de conseguir bookar alguns DJs para outras festas da cidade por conta da política de exclusividade que o club exige. São 2 meses sem poder tocar em qualquer outro lugar, o que dificulta tanto a vida de promoters quanto a dos DJs que ficam restritos a uma gig na cidade dentro desse período. Às vezes é mais fácil eu ver um DJ que mora em Berlim tocando em São Paulo do que aqui.
Tudo que é bom e acaba, pode gerar frustração, mas sempre que algo ocupa um lugar muito grande numa cena, pode acabar prejudicando projetos menores.
Berlim é uma cidade com muito espaço para projetos novos e eles não faltam por aqui. Acabamos nos viciando em ir sempre no mesmo lugar (eu sou dessas), mas a cidade tem uma cena noturna enorme para explorar com muitas festas independentes boas e clubs dedicados às mais diferentes vertentes da música eletrônica.
Há uma lista interminável de clubs em Berlim, como o RSO Berlin, Oxi, Tresor, Ohm, Renate, Ost, ://about blank, Anomalie, ÆDEN, KitKat, Sisyphos, Kater Blau, Paloma, Golden Gate, só para citar alguns, além das centenas de festas independentes. Apesar do techno ser o estilo musical que rege a cidade, a cena é muito mais diversa que isso. Até o funk brasileiro tem atualmente uma festa com calendário fixo na cidade. Tem muita roubada? Opa, se tem, mas com tantas opções, impossível não ter.
Se o Berghain vai durar um ano ou mais, eu não sei! Mas é difícil discordar do papel importante que ele teve na cena cultural e, inclusive, no turismo local. Eu, que mal cheguei em Berlim, ainda torço para que ele sobreviva por algum tempo. Quem estiver pela cidade no natal, já pode conferir quem toca na festa natalina do club.
Run
O TED lançou uma área dedicada à cursos online, todos com duração de 4 semanas e custando US$ 49.
Taylor Swift transformou a cultura pop em uma caça ao tesouro.
Ótimo artigo sobre a evolução da inteligência artificial
Esse texto me fez sentir o cheirinho saudoso do pão de queijo.
Articles of Interest, Um podcast dedicado sobre as roupas que usamos.
Argentina 1985 um filme sobre a ditadura no país vizinho que todo brasileiro deveria assistir. Está na Amazon Prime.
O “The Summer Hunter” publicou um guia de como navegar no universo das newsletters com uma lista de newsletter bacana para assinar, incluindo a Espiral.<3
Quem quiser mergulhar no universo da Annie Ernaux além de seus livros, pode conferir essa lista de filmes baseados em suas obras.
FWB, a Soho House do mundo cripto.
Lembra da ilha que abrigaria o Fyre Festival? Ela está virando o paraíso para a elite do mundo cripto.
Hoje vou apenas de rapidinha porque extrapolei no conteúdo, mas aviso aos navegantes: na próxima semana eu lanço o primeiro “Download Espiral” com um compilado de tudo que cintilou por aqui. E, nessa pasta vocês poderão encontrar relatórios e estudos diversos que passaram pela minha tela.
Continua na semana que vem. Tchau. :)
*Se você é novo/nova por aqui, me dê um alô para contar como me achou, onde você está, deixe suas críticas, dicas e sugestões. E, se gosta da newsletter, envie ela para os amigos.
Adorei o texto! Vou para Berlim mês que vem e queria muito visitar o Berghain (mas topo qualquer indicação de balada boa que não corra o risco de ficar de fora).
Agora uma dúvida sincera: se vc compra o ticket e é barrada, eles devolvem o dinheiro??
Que demais essa história!
Não conhecia esse clube.
Adoro suas edições, sempre descubro coisas totalmente novas.