Espiral #42: Histórias vividas na Hauptbanhof
Meu trabalho como voluntária com refugiados, a chegada da primavera, Röyksopp, SXSW, Oliver Stone
O álbum “Funeral”, do Arcade Fire, é a trilha para essa newsletter. Mais do que ser sobre doença e morte, ele é também sobre renovação.
“Eles não desceram”. - li na tela do Telegram.
O trem partiu de Berlim às 14h30 rumo à Basel, na Suíça. A previsão era chegar em Karlsruhe, uma cidade ao sul da Alemanha, às 19h58. Eu estava jogada no sofá olhando o Telegram a cada cinco minutos. Espiei o app da DB e descobri que o trem estava atrasado. Dei uma leve relaxada até receber a mensagem de que as pessoas que eu embarquei no trem não chegaram conforme previsto.
Oito horas antes, eu encontrei uma família formada por um casal - algo bem raro no momento -, uma adolescente e uma criança pequena na Estação Central de Berlim. Ao lado deles, duas malas e uma vida colocada em seis sacolas de supermercado. Estavam bem desorientados pedindo ajuda na estação. O olhar da mulher era de uma tristeza tão lacinante, que fez eu e uma amiga pararmos para ver se poderíamos ajudá-la. Como a maioria dos refugiados que chegam em Berlim, eles não tinham a menor ideia de para onde ir e o que fazer.
Demorou um pouco para a situação se desenrolar, porque precisamos recorrer aos voluntários que falam russo para entender como ajudá-los. A mulher disse que queria ficar em Berlim. Já o homem disse que queria ir para os Estados Unidos, o que me pareceu um devaneio no momento. Decidi então ficar com esta família até conseguir um lugar para irem. A situação na estação seguia caótica. Tinha menos voluntários do que o necessário, pouca informação disponível, trens chegando lotados com refugiados, falta de área para descanso e de moradia. Era cada um se virando do jeito que podia para ajudar.
A filha adolescente tomou as rédeas da situação, pois falava um mínimo de inglês. Fiquei umas 2 horas em grupos no Telegram tentando uma casa para eles ficarem em Berlim, mas acabei achando a melhor oferta em Karlsruhe, uma cidade pequena a 6 horas daqui, a qual eu nunca tinha ouvido a falar e não aprendi ainda a pronunciar o nome. Uma mulher surgiu como um anjo da guarda falando em nome de sua amiga, diretora do museu da cidade, que mora num apartamento grande e poderia receber até duas famílias. Bingo!
Fiz contato com a dona da casa, que me tranquilizou dizendo que os hospedaria até eles conseguirem um lugar para morar em “longo termo”, como chamamos aqui. Também disse que ajudaria no que precisassem para recomeçar a vida na cidade. Achei uma tradutora que me ajudou a convencê-los a continuarem a viagem começada há 5 dias. Por fim, eles toparam.
Levei-os para fazer teste de Covid, peguei passagens de trem para todos, escrevi as instruções num papel temendo que a bateria do celular da filha Steva acabasse e criei um grupo no Telegram com a host, a Steva e a amiga da host que estava comigo na estação.
Depois de embarcá-los, fiquei perdida nos meus delírios esperando ouvir sobre a chegada deles, a nova casa e finalmente, o recomeço. Mas a vida não é um filme. O trem chegou e eles não.
Bateu desespero de que eles pudessem parar na Suíça. Comunicamos com o trem, mas eles não estavam nele. Após quase um hora agonizando no sofá, recebi uma mensagem da Steva explicando que se confundiram e desceram antes. Estavam tão exaustos, que aceitaram a ajuda oferecida na estação e iriam passar a noite por lá. No dia seguinte, despertei cedo para entender os próximos capítulos, mas recebi uma mensagem dizendo que decidiram ficar na cidade onde estavam. Nessas horas eu sempre penso em destino. Fico imaginando conversas no futuro: “Mas como você foi parar nessa cidade?” E aí toda uma história pra contar.
Esse foi um dos três casos da quarta-feira retrasada que coloquei no meu colo e tratei como meus. No penúltimo sábado, eu agradeci uma amiga por ela ter conseguido um quarto por um mês para receber duas mulheres, que eu tinha hospedado temporariamente num apartamento em Berlim e que estavam prestes a ficar sem teto. Minha amiga foi reta e direta: “Lalai, você não tem que agradecer, isso não é sobre você”.
Foi um bom chacoalhão. Não é mesmo sobre mim, mas é difícil não se deixar envolver até o último fio de cabelo. O problema dessas pessoas, que cruzaram por acaso o meu caminho, virou o meu problema. Eu me vi responsável por elas e fiz o que pude para ajudá-las. O resultado foi que eu dei conta bem mais ou menos, pois desandei a chorar desconsoladamente no meio de um evento para arrecadar fundos para um grupo de ucranianas que trabalha buscando crianças perdidas na fronteira. As ucranianas segurando o rojão com discursos potentes e eu lá enxugando as minhas lágrimas que lavavam o chão.
Eu nunca parei para avaliar se eu tinha condições emocionais de ajudar, porque pra mim qualquer coisa nessa história que possa me afetar, será muito menor que o trauma de guerra que está afetando essas pessoas. Eu volto para casa, deito no colo do meu marido ou de amigos e choro. Mas eu tenho uma casa para voltar e pessoas para me darem colo. Elas não têm mais nada.
Tirei o domingo de folga e não deixei o assunto “guerra” entrar na conversa. Eu me alianei e entrei numa máquina do tempo que me levou, veja bem a ironia, para tomar um brunch numa mesa ensolarada de um restaurante russo. Mas aqui em Berlim a gente não parou de comer estrogonofe porque é um prato inventado na Rússia. Na verdade, acho que o estrogonofe nem chegou em Berlim. Nós continuamos frequentando os restaurantes e cafés russos, que tiveram que estender a bandeira ucraniana para deixar claro de que lado estão, e não queimei meus livros escritos por autores russos, mas cancelei a isentona Nina Kraviz.
De volta pra Estação Central
Na semana passada eu trabalhei alguns dias na estação. A estrutura está bem mais organizada contando com mais voluntários do que precisam na maior parte do tempo. Surgiram coordenadores, treinamentos são dados a cada meia-hora para os voluntários que chegam, disponibilizaram psicólogos pra gente, lançaram plataformas para hosts que querem hospedar refugiados, incrementaram o manual de ajuda, a Vodafone se mexeu e virou a doadora oficial de SIM cards, criaram uma área específica para receber quem quer ficar em Berlim, colocaram ônibus para levar as pessoas para ficarem nos campos de refugiados até que eles consigam uma casa, a área para crianças conta com pedagogos, etc…
Tais melhorias fizeram o meu trabalho ser mais pontual. Levei as pessoas das plataformas do trem para algumas das áreas da estação que tem o que elas precisam e foi mais ou menos isso. Muitos dos refugiados que recebi nestes últimos dias chegaram com mais informações em mãos e a maioria seguiu para outras cidades alemãs.
A chegada da primavera
O último finde chegou acompanhado de uma dor de cabeça que há muito eu não sentia. O Ola (o marido) está viajando, o que foi providencial, pois eu estava precisando muuuito ter a casa só pra mim. Após uma sexta-feira tomada por trabalho voluntário, reuniões e um festival de música estranha para fechar a noite, eu me entreguei à faxina no sábado, algo que me cai bem quando me dou folga, porque ela não só promove a limpeza física da casa, como também faz uma boa limpeza mental.
No fim do dia ousei e fui pular carnaval com meu amigo showman Rodrigo da Matta. Gritei #ForaBolsonaro, dancei várias marchinhas e terminei a noite comendo um pastel de feira enquanto babava na lua cheia que estava quase entrando no quintal da festa.
No domingo acordei cedo, fiz um café da manhã daqueles que fora de casa custam 20 euros, tirei a roupa mais colorida do armário e fui pedalar com a cara no sol até uma praça-parque que gosto muito. Por lá, eu deitei debaixo da única árvore florida para abraçar o equinócio de primavera e me entreti com um livro que estou lendo sobre “Ecosofia”. O termômetro marcava 13 graus. No céu nenhuma nuvem, apenas o azul que todos os dias me parece novo e mais azul.
Pensei bastante sobre solidariedade e nas bolhas em que vivemos nas cidades, pois no parque em que eu estava a guerra pareceu algo muito distante. Mas se eu pedalasse 15 minutos, eu me depararia com uma realidade dura e doída, onde a esperança está despedaçada, os olhos vazios e a primavera está muito longe de chegar.
O desafio, para quem está do lado de cá de cima da linha do privilégio como eu e muito provavelmente você, é entender os vários mundos em que vivemos e saber como transitar entre eles de maneira não alienada.
Como não me sentir culpada quando me jogo na grama para tomar sol e apenas existir?
Eu voltei para casa carregando o por-do-sol nas costas, um café recém-moído cheiroso na mochila e cantando “I can change”, do LCD Soundsystem, a plenos pulmões. Pensei no pouquinho que consegui ajudar um pequeno grupo de pessoas, no dia gostoso que tive no domingo, nas coisas que andam acontecendo na minha vida e me senti bem. Sentei no sofá, abri o Instagram e me deparei com esse recadinho do Krenak que tá sempre dando um tapa de acorda na nossa cara:
Eu ouvi o episódio “Millenials, geração Z e o medo do fim do mundo”, do Café da Manhã, em que a psicanalista Vera Iaconelli diz que “a ética começa no individual, pois cada um de nós precisa decidir de que lado da conversa está.” É sobre isso.
Eyes alive
Tô aqui emocionada demais, então vou apenas de rapidinhas:
Tá todo mundo falando e com razão: o videoclipe This is not America, do rapper portoriquenho Residente, com participação da dupla Ibeyi, é uma crítica muito bem-feita sobre as interferência dos Estados Unidos nos países da América Latina e Caribe. Claro que o Bolsonaro não escapou de suas críticas. Esta thread no Twitter traz várias referências usadas no video clipe.
Por que ouvimos músicas que não entendemos a letra (e gostamos delas) por estar em um idioma que não conhecemos? Tem explicação! Este texto é sobre o assunto e fala como ouvimos as “palavras” na música como “som” e não como “linguagem”.
O Röyksopp voltou mais pop do que nunca. Aliás, um dos shows que mais marcaram minha carreira como a “mina que tá sempre na plateia” é o “Do it Again”, do Röyksopp com a Robyn, que vi num longíquo Sónar.
Amei demais essa timeline de mais de 13 bilhões de anos da história da condição humana.
Boa reflexão neste texto sobre o que podemos dizer da dor dos refugiados de guerras, da Juliana de Albuquerque, que morou em Israel e conta como foi ter que se esconder num esconderijo antibomba durante épocas de conflitos que rolaram quando estava lá.
Um emocionante álbum com perfis de pessoas que moram em Kiev feito pelo NYTimes.
Eu e a Bia Pattoli, a pessoa dos melhores áudios que esse Whatsapp já ouviu, voltamos com nossa newsletter Mentaland. A última edição resgata o Napster para explicar os NFTs.
Incrível, mas o SXSW rolou em edição física. Os amigos que foram, contaram que a audiência era 50% do normal. Pelo que vi, metade brasileiros. :) Eu, que desprezo os Estados Unidos agora que moro em Berlim - #brinks, queria mas não queria ter ido. Acompanhei um pouco o que rolou e destaques não faltaram. Muita palestra sobre metaverso, NFT, descentralização de tudo, crise climática, AI, entre tantos outros temas emergentes, como “a arte do encontro”, esta que ficou em stand by por 2 anos. Destaco, porém, a frase da Amy Webb de que “o futuro é feito de escolhas, e toda escolha é uma chance de fazê-lo melhor.”
Tristan Harris, um dos criadores do “Dilema das Redes”, fez uma das palestras mais comentados do SXSW sobre como podemos ter uma tecnologia mais humanizada. Fechou com um convite para o curso (gratuito) Foundation of Humane Technology para formar tecnologistas centrados em tornar a tecnologia mais humana.
Alguns dos principais relatórios lançados no festival: o Tech Trends 2022, de Amy Webb; o Resilience Tech Report, do John Maed; e um dos mais comentados, o The New Rules of Gathering, da Priya Parker.
Uma excelente reflexão do Ian Black sobre como o metaverso está se formando a partir de uma lógica colonialista aplicada ao digital.
Jabazinho do dia: estou trabalhando na produção do NFT Week Berlin, que acontecerá entre os dias 25 e 27 de maio. Caso esteja aqui pela cidade, dê alô.
O Oliver Stone entrevistou o Vladimir Putin em 2017, que resultou num documentário de 4 capítulos de 1 hora cada. Vale a pena assistir para entender a cabeça (louca e narcisista) do Putin.
O Thiago Ney indicou numa de suas newsletters o Wilderness Land, uma verdadeira ode à internet com uma coleção de centenas de sites curiosos, muitos deles cheios de poesia, para se perder prazerosamente.
Para quem está em Berlim, fica essa dica (agora se vira pra conseguir ingresso) e também os shows da Duda Beat (13.04) e da Marina Sena (15.04), que rolam no Gretchen para alegrar ainda mais nossa primavera. E, em maio tem Hermeto Pascoal, também no Gretchen. Outro show que eu não vou perder, é HVOB, no dia 23.04.
Fecho com uma viagem sonora ao início dos anos 2000.
Tchau, que agora vou “dar uma deitchada”.
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A responsabilidade segundo Dona Haraway é a habilidade de responder de algum modo, gosto dessa ideia simples. Apesar de considerar que ela nem sempre é fácil de aplicar. A indignação e a ação são motores poderosos de transformação em uma sociedade marcada pela ausência da comunidade. Belo texto Lalá. Que façamos tempos novos.
“O desafio, para quem está do lado de cá de cima da linha do privilégio como eu e muito provavelmente você, é entender os vários mundos em que vivemos e saber como transitar entre eles de maneira não alienada.
Como não me sentir culpada quando me jogo na grama para tomar sol e apenas existir?”
Reflexão que faço todo dia. Mas só de refletir sobre isso significa que estamos despertas. E estar desperta é bom. Protege.