Espiral #10: a melancolia pós-quarentena
A primeira ida ao restaurante, a ansiedade, a arte da quarentena para principiantes e a música como ansiolítico.
Aviso aos navegantes: essa newsletter é um reflexo de quem sou, então já deixo uma playlist bem alegrinha como contraponto à edição de hoje.
Na última quinta-feira recebi a confirmação da reserva num restaurante que gosto muito de ir por aqui, o Yafo, que é super animado, tem ótimos coquetéis e uma cozinha árabe deliciosa. O atendimento impecável é motivo de reclamação de um amigo que o acha brasileiro demais, mas os donos são israelenses. Ir a um restaurante no último fim de semana virou O programa para muita gente aqui em Berlim.
Passei o dia pensando com que roupa eu iria, afinal há mais de dois meses essa tarefa tão banal tinha deixado de existir. Optei por um macacão meia estação decotado e uma jaquetinha por cima sem atentar ao novo drama dos restaurantes: poucas mesas disponíveis, a maioria delas na rua. O termômetro marcava 13 graus e o aviso de que a temperatura cairia mais. Talvez eu teria me saído melhor se eu tivesse checado a previsão do tempo com o David Lynch, mas me deixei levar pelo sol que batia na minha janela. Senti-me a forasteira vinda dos trópicos que de fato sou. Éramos 4: eu, o marido despreparado como eu, uma amiga que se vestiu adequadamente para a ocasião, e um amigo, bem, um amigo que notoriamente estava precisando sair de casa, se montar, ver gente e brilhar. Ele chegou vestido numa kilt com uma bota de látex com 20 centímetros de plataforma com salto agulha que literalmente parou a rua. No pescoço, um lenço palestino como provocação ao restaurante israelense. Chamou tanta atenção que calor não lhe faltou. Somente o casal Persson passou a noite tremendo de frio o que tornou nosso jantar em algo como “acaba logo que eu quero ir embora”.
No sábado saímos novamente em busca do momento perfeito tão esperado num restaurante. Dessa vez a sorte piscou pra gente. Conseguimos uma mesa na calçada num simpático restaurante coreano com direito a sol na cara, uma praça florida esbanjando vida do outro lado da rua e uma garrafa de pró-seco para brindar um momento que já foi tão comum em nossas vidas, mas hoje ele é o motivo de celebração. Mas a experiência nos restaurantes já não é mais a mesma que tínhamos antes da pandemia.
Uma das coisas estranhas nesses encontros é cumprimentar os amigos apenas com sorrisos e aceno de mão à distância, mesmo dividindo a mesa depois. Aperto de mãos, abraços e beijos estão cancelados por tempo indeterminado. A Super Interessante fez um especial sobre o mundo pós-coronavírus afirmando que, como já sabemos e ninguém nos deixa esquecer, muita coisa não será como antes. Apesar do otimismo inicial da matéria afirmando que “a ciência reinará, as fake news serão esmagadas, a polarização deve diminuir”, o preço a pagar é que “seremos mais vigiados e controlados pelo governo” e não apertaremos a mão do outro tão cedo, gesto que praticamos no dia-a-dia desde o século 17. Agora temos que praticar “a arte da distância”.
Toda essa novidade resultou em algo inesperado comigo: a ansiedade acompanhada do desânimo. Esse casal que andou dormente no fundo da gaveta, voltou bem espalhafatoso para me atormentar. Uma amiga, que mora em Barcelona, também caiu nesse poço de desalento pós-quarentena e o meu marido teve a primeira insônia no domingo desde o início do isolamento. Mas o que exatamente está acontecendo com a gente? A dopamina está baixa? Esse sentimento já estava previsto nos anais do jornalismo, mas na animação de botar o pé na rua a gente não se preparou para ele.
Se eu sou para alguns o boletim do futuro, como assim eu chego com esse balde de água fria sem avisar? Pois é…. “a vida no momento está com gosto de soro caseiro”, como me disse um amigo.
Para lidar melhor com isso, eu fui buscar respostas. Li numa sentada o recém-lançado “A arte da quarentena para principiantes”, do psicanalista brasileiro Christian Dunker. O livro focado no cenário catastrófico do Brasil aborda desde a política bolsonarista (o que aumenta nossa angústia) aos transtornos psicológicos causados pela “peste”. Ele pode não trazer o afago esperado, mas nos faz entender porque estamos nos sentindo assim. Vi vários amigos e desconhecidos dizendo “eu já não saía de casa, para mim nada mudou com a quarentena”. Mudou sim. Mesmo que você não saia de casa, mas de repente decide ir comer fora ou visitar um amigo, por exemplo, você podia mas agora não pode mais. A sua liberdade de ir e vir está suspensa. Para Dunker “se você não está confuso neste momento, procure um psicanalista porque você tem um problema, e ele não é o coronavírus”. Eu estou confusa.
O NYTimes também foi buscar a resposta de como manter a alegria neste momento perguntando a 14 escritores o que eles têm feito pra mantê-la viva. O Vimeo fez uma minissérie contando a história de como algumas pessoas estão fazendo para manterem seus negócios em pé. É inspirador.
Mas quando sou abatida por uma tristeza profunda eu recorro à música.
Quando não há música nos meus ouvidos é porque as coisas não vão muito bem e andei imersa no silêncio. Então corri para dar play em músicas que ajudam a reduzir a ansiedade, ouvi uma ótima entrevista com a Fiona Apple sobre seu último álbum, voltei aos anos 70 com um dos primeiros shows do Kraftwerk, acalmei meu coração com um show do Nils Frahm, mergulhei no universo fantástico do Ryuichi Sakamoto na sua nova série Incomplete, dancei com as divertidas lives da Róisín Murphy e me emocionei (e muito!) com “The Life is not a Journey”, uma animação baseada no texto do filósofo Alan Watts, em que ele utiliza a música como analogia para explicar a nossa existência. Obrigada Gust pelo presente na hora certa!
“Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo
Um sorriso sincero, um abraço,
Para aliviar meu cansaço”
E essa semana foi bem especial para a música. No último dia 18 celebramos 40 anos da morte do Ian Curtis com várias homenagens à sua genialidade. “So this is Permanent” com Peter Hook & The Light’s, concerto de 2015 feito numa igreja, é uma delas e foi liberada na íntegra.
Até com o Bono eu me emocionei. Não sou fã do U2, mas já fui, inclusive o primeiro show que vi fora do Brasil foi justamente o deles, a Popmart Tour (1997), em Barcelona. O Bono completou recentemente 60 anos e listou 60 músicas que “salvaram sua vida”. A lista traz todas acompanhadas de um texto para o artista. Achei um gesto bonito, além de ser uma viagem gostosa pela história da música.
E as baladas? Como andam as pistas virtuais?
Uma amiga comentou ter se decepcionado ao entrar pela primeira vez numa balada online no Zoom e se deparar com o público sentado no sofá olhando para a tela com cara de nada. A festa era a Club Quarantine, uma das mais “badaladas” no momento. Afinal, essas festas online têm sido efetivas ou não? A resposta não é fácil e eu não tenho, mas tenho a certeza de que tem gente se divertindo com elas. Eu assisto muitas lives de clubs, mas a maioria não é interativa. Eu deixo a live rolando na TV, às vezes danço, tomo um drink e é isso. Já me senti meio patética em alguns momentos, mas aí desencano porque nesse momento qualquer alegria é bem-vinda. Muitas festas brasileiras tem feito edições no Zoom. Uma das vantagens de “ir” a uma festa que existia antes da quarentena é encontrar no virtual pessoas que você encontrava na pista. Rola uma aproximação mais rápida e traz uma sensação de aconchego. Foi assim que me senti na experiência que tive. Nesse dia fui transportada para um outro lugar que até ressaca de saldo rolou no dia seguinte.
Mas eu ainda vejo o universo dos games como um dos melhores lugares para ter uma experiência mais próxima de uma festa real (e ainda está longe disso). Ser um avatar, circular pelo ambiente da festa e conversar com as pessoas trazem uma sensação mais “real” mesmo que você continue sentado no sofá de casa. E você? Teve alguma experiência marcante em alguma festa virtual?
A dupla holandesa de EDM W&W fará a primeira transmissão online de uma festa em XR (realidade estendida) no próximo dia 23. Para a Alda Events, promoter da festa, essa será uma oportunidade de explorar um novo potencial para a indústria de eventos em tempos de quarentena. Eu vou dar uma espiada para ver qual é.
Os eventos em drive-in continuam surgindo em vários lugares do mundo, mas será que festa faz sentido nesse formato? A primeira rave foi na Alemanha, em Schüttorf e Dusseldorf, mas agora as festas em drive-in já rolam em Houston e Bristol. Pelo jeito tem bastante gente achando que faz.
Alguns clubs em Berlim estão reabrindo suas portas, porém há várias restrições: é necessário ter biegarten e servir comida (com licença para isso). Ou seja, ir a um club por aqui atualmente é para tomar cerveja ou drink, comer pizza e ouvir música, mas sentadinho porque dançar é proibido. Para quem tiver interesse em saber um pouco mais sobre a cena atual dos clubs em Berlim, a rádio BBC 4 fez um especial sobre o futuro da vida noturna da cidade conversando com muita gente interessante daqui.
O Resident Advisor atualizou sua lista de países que já tem datas previstas para abertura dos clubs.
O primeiro show ao vivo dos Estados Unidos pós-quarentena finalmente aconteceu no Arkansas depois de ter sido adiado. Esse artigo da Rolling Stone conta como foi. Aliás, será a máscara o ingresso do futuro? O designer francês Nicolas Olive acredita que deveríamos dar à máscara algum significado. Para mim ela é a lembrança de que o mundo mudou. Para o The Atlantic a máscara é uma ferramenta e não um símbolo.
É, hoje estou me sentindo “A mulher do fim do mundo”, mas ainda tenho um pouquinho pra compartilhar:
Deixo aqui algumas leituras e imagens da nova série “The Stand”, baseada no romance homônimo do Stephen King, e um artigo sobre “Holy Fire”, de Bruce Sterling, onde ele imagina uma gerintocracia pós-pandemia.
Para quem se interessa por temas relacionados ao futuro do turismo, o CityLab fez uma reflexão sobre os aeroportos e o NYTimes discute onde será melhor se hospedar no futuro, no Airbnb ou em hotéis.
E não é que a respiração está destruindo O Grito?
Quem estiver atrás de lista de filmes para ver, o Wes Anderson tem compartilhado o que anda assistindo na quarentena.
O Senac está com o ótimo projeto “Diversidades - Educação Antirracismo” disponível online para quem quer mergulhar no assunto. Essencial!
A próxima edição do Adobe 99U Conference acontecerá no próximo mês online e terá acesso gratuito.
De quinta (21) a domingo (24) rolará o festival “Na Janela”, da Companhia das Letras, com foco na literatura de não ficção com 12 escritores da casa. A programação está demais e pode ser conferida aqui.
Monique Malcher, escritora que você vai querer conhecer depois de ler “Coração Trevoso: conheça a Amazônia que anda de barco ouvindo Fiona Apple”.
Eu estou sempre indo embora, mas na semana que vem eu volto. Bye!
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