Espiral #108: O carnaval de todos nós
A maior catarse coletiva do mundo e como ela vira a gente do avesso
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Trilha sonora: "Macetando", Ivete Sangalo e Ludmilla, por aqui sigo macetada.
Quando estou no meio de um bloco de carnaval, cantando, dançando e com um sorriso que ocupa um quintal inteiro, eu me pergunto como demorei tanto para gostar dele.
Todos os anos, era a mesma coisa: O carnaval sempre era o momento de fazer as malas e fugir para bem longe. Quando comecei a namorar o Ola, passamos a fugir juntos para esquiar, até uma vez em que ficamos em São Paulo por alguma razão que não lembro. Foi exatamente na época em que virou uma chavinha no carnaval paulistano e ele entrou definitivamente no calendário dos foliões.
A partir daí, nos tornamos um casal carnavalesco. Trocamos as pistas largas de esqui pelas ruas apertadas, quentes, sujas e cheias de suor de São Paulo. Acordávamos às 7h da manhã para pegar os primeiros blocos do dia, rodávamos a cidade de metrô com trajes mínimos e passamos a colecionar ótimas histórias até o dia em que nos mudamos para Berlim.
A história já é conhecida. A pandemia chegou praticamente conosco na capital alemã, levando o carnaval a ser cancelado por dois anos seguidos. Quando tudo parecia voltar ao normal, o Ola comprou passagens e seguiu sem mim para o carnaval do Rio de Janeiro. Eu, atolada num momento de angústia, decidi ficar em Berlim. O máximo de carnaval que tive naquele ano foi um baile carnavalesco para matar à distância as saudades de casa, numa noite regada a samba, marchinhas e muito confete.
Para 2024, não titubeei. Veja bem, não foi vingança, mas embarquei sozinha para o Brasil com o carnaval incluído na temporada. A cidade escolhida foi o Rio de Janeiro, onde os amigos foliões estariam. E, eu queria aliar o carnaval à praia, o que o Rio faz tão bem.
O carnaval brasileiro é algo que pouco se compara a qualquer outra grande festividade no mundo. Se eu tinha sido fisgada pelo carnaval paulistano, não é preciso dizer o que aconteceu comigo no Rio de Janeiro. Voltei de quatro para São Paulo. Ver a Cidade Maravilhosa tomada por pessoas seminuas, coloridas, pulando para todos os lados é de deixar qualquer pessoa de queijo caído. Tem perrengue, mas ele se torna o menor dos problemas.
Não lembro de ter sentido tamanha energia. Passaram-se tantas coisas pela cabeça. Textos ganharam forma para tentar traduzir o que cada passeio em um bloco me proporcionou. É impossível. Haja poesia!
Foram dias mágicos como eles sempre são. Entramos em outro tempo e espaço, envoltos em tamanha felicidade que nos faz esquecer todas as mazelas do mundo.
Viramos o Rio de Janeiro de ponta cabeça, do beco ao túnel, do morro à avenida. O calor, o suor, o perrengue, a lotação, a cerveja quente, o aperto - nada parece atrapalhar essa alegria que emana de todos os cantos, lotando ruas e provocando a maior catarse coletiva do mundo.
Segui as recomendações da cartilha carioca para me proteger no carnaval: Tirei a aproximação do cartão de crédito ou débito, marquei-o com algo para evitar trocas (o meu segue com um band-aid), deletei o aplicativo do banco, usei doleira por dentro da roupa, evitei andar sozinha por lugares ermos, usei pouco o celular, entre outras coisas. Deu tudo certo. Voltei sã e salva, sem qualquer prejuízo.
Acordávamos às 6h da manhã, às 7h já estávamos em um táxi a caminho de um bloco do outro lado da cidade, onde passávamos o dia subindo e descendo morro. No início da noite, assim que o sol se põe debaixo de aplausos no Arpoador, seguíamos para casa para um banho gelado e dormir cedo para repetir tudo no dia seguinte.
A minha temporada no Rio teve início numa quinta-feira no tradicional Bip Bip, bar em Copacabana conhecido por sua roda de samba. É proibido aplaudir ou cantar, conforme me contaram. Na véspera do carnaval, a rua fechou devido à quantidade de pessoas que foram conferir essa fama ao vivo.
A banda toca baixinho, as pessoas se reúnem em torno da pequena porta do bar, e lá de fora, quase não se ouve nada. Parece um ritual de tão lindo. Sotaques de todos os lados misturam-se ao inglês, alemão, espanhol e italiano que ouço aqui e ali.
À meia-noite, depois de esvaziarmos o estoque gelado de cerveja do Bip e dos bares vizinhos, a banda sai para a calçada. Todos seguem em um cortejo. Vamos até a esquina e voltamos em direção à praia, avançando devagar, cantando, até alcançarmos o mar. Ali, junto com os demais, lavo a alma na água gelada e serena. Um banho que esperava há dois anos. Saio renovada. Parece Réveillon, com todo o ritual, a fila de pessoas, as risadas altas e o calor que não dá trégua.
Naquele momento, percebi que esse carnaval seria uma virada de página na minha vida, marcando um recomeço que ensaio há tempos. A energia ruim, que ainda restava em alguns cantos inalcançáveis do meu corpo, saiu todinha. Me senti magnífica. Renovada. Pronta para os próximos sete anos, pois gosto assim, do tempo quebrado. A pandemia atrapalhou o ciclo. Desarranjou o relógio. Foram dois anos suspensos. O 49 não virou. O 50 avisou que estava pronto. Essa virada a cada sete anos, que sempre traz na minha vida uma grande ou pequena revolução, tinha sido interrompida. Deu pane no sistema. Agora segue no eixo.
Os dias seguiram conforme planejado, comigo deslumbrada o tempo todo. O ápice veio com o Boi Tolo, o famoso bloco carioca que, por ser tão grande, são quatro, ou mais. Eu não sei ao certo, e ninguém parece saber também. O encontro de todos eles é uma celebração sem tamanho de tão gigante.
Lá, dentro da corda, porque sabe-se lá o que me fez cair para dentro dela, eu senti o Rio de Janeiro vibrando à minha volta. Foram umas cinco ou seis horas, a percepção do tempo se perde, dançando em um dos trechos mais bonitos do Rio de Janeiro, o Aterro. O mar de um lado, o aterro, as avenidas largas no meio, os prédios na outra ponta. Parece não ter fim. Gente para todo lado. A bateria. Um absurdo de tanta beleza.
Ali, eu senti essa catarse e nem entrei no famoso túnel. Não se pode ter tudo. O estômago não deixou. Disse que era hora de comer, sair debaixo daquele sol que derretia nossas cabeças. Mas o que eu fui buscar já tinha conseguido. O restante seria lucro. E foi... até o fim. No Baile da Arara, onde o calor e os pés já destruídos me empurravam para casa. Até eu ir. Para o fim. Esperando pelo próximo começo. 2025. Quero Rio de Janeiro. E o Ola comigo.
Foram dias de arrebatamento vivendo a vida em excesso. O tempo elástico. Um conto de fadas, uma doce vingança lambuzada de glitter. A vida em fantasia. A mais bonita delas.
Uma das coisas mais bonitas foi o tanto de gente que me parou porque lê a Espiral e me reconheceu. Como não ficar feliz com isso? Obrigada pela alegria proporcionada. ♡
Eu acho o Carnaval uma coisa curiosa, porque ela é uma festa, e eu já escrevi sobre isso, que não tem centro e sujeito, é um anacronismo, está fora de lugar. Eu não sei se vai continuar, porque antigamente a gente só podia fazer certas coisas no carnaval, hoje a gente pode fazer o ano inteiro. Não existe mais a mesma dimensão, de permitir a mesma licenciosidade, que havia no século passado quando, eu inclusive, escrevi "Carnavais, malandros e heróis". A potência carnavalesca diminuiu, porque ela pode se realizar agora. - Roberto DaMatta sobre o Carnaval
Aviso aos assinantes pagos: Devido à minha ausência causada pelo Carnaval, durante o qual abandonei tudo que não fosse ele, pausei um mês de pagamento para evitar que se sintam lesados. Caso haja alguma reclamação, por favor, entrar em contato com a gerência, que neste caso sou eu mesma. O dossiê janeiro se juntará ao de fevereiro.
Allah-la-ô
📕 Puro deleite e uma verdadeira masterclass o livro "A escrita como faca e outros textos", de Annie Ernaux, que abre com o discurso proferido ao receber o Prêmio Nobel e depois segue com uma conversa entre ela e o escritor francês Frédéric-Yves Jeannet.
📚 Entrei no ritmo da época e comecei a ler "Carnavais, malandros e heróis", de Roberto DaMatta, um verdadeiro tratado sociológico dos dilemas na cultura brasileira.
📺 Nos intervalos entre um bloco e outro, só se ouvia falar da série "Vale o Escrito", documentário sobre a história do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Faltam dois episódios para eu terminá-la. É o tipo de história que parece inverossímil de tão absurda. Recomendo para quem ainda não a descobriu.
🎬 "Drive my car" é um dos filmes mais bonitos que assisti nos últimos tempos. Filme lento, cheio de silêncios, em que a maior parte de suas 3 horas passa dentro de um carro Saab vermelho.
🍿 Terminei de ver a série "The Curse". Indigesta e genial, é uma comédia ácida constrangedora que transforma egoísmo e constrangimento cotidianos em algo comparável a um filme de horror. Com Nathan Fielder e Emma Stone.
🎹 "Places", de Büşra Kayıkçı, álbum lindíssimo para acalmar a alma.
💸 Golpes financeiros sofisticados pelo mundo afora: O meu queixo caiu com essa história. (Inglês)
🔮 Como o mundo será em 10 anos de acordo com especialistas. (Inglês)
Na próxima quarta-feira viajo de volta para Berlim com o coração saltando feliz do peito, então já antecipo que a próxima edição sairá ainda meio torta fora do tempo.
Beijos e boa semana! ˚♡˚₊‧⁺˖
Sim, eu quis dizer os próximos projetos dos dois. Pesquisei agora no IMDb e ambos estão envolvidos em um projeto Untitled, e vários outros outros separados.
Sou um carioca que sempre gostou de Carnaval off, tipo Berlin, com muito house e techno kkkk. The Curse é um absurdo. Curioso pra saber o que os irmãos Safdie, agora separados irão aprontar...