Espiral #11: quando foi a última vez que você viu um avião?
Berlim anos 90, Agon, Berghain x Clubhouse, John Maeda, um presentinho do Dresden Dolls e outro do David Lynch (este último num easter egg)
É tanta nostalgia nesta newsletter que fui nos anos 30 buscar a trilha sonora para ela.
Estávamos na cozinha tomando café da manhã na última terça-feira. Atrás de mim um dia ensolarado e céu bem azul. De repente o Ola (o marido) grita animado: “Olha, um avião!”. Eu ri confusa, olhei pra trás e procurei algo diferente e então vi o avião muito longe, muito alto deixando aquele conhecido rastro branco para trás. Rimos juntos e soltamos: uau, um avião!
Não sei vocês, mas fazia muito tempo que eu não notava um avião. Até me acostumei a olhar para o céu e não vê-los mais. A cena me deixou nostálgica das férias que não virão, da viagem ao Brasil que eu não sei quando vai ser, da próxima vez em que vou ver o mundo de uma janelinha a 11 mil metros de altura. Agora só me vejo fechada aqui na minha nova morada, na cidade em que mal cheguei e fui colocada em quarentena sem ao menos conseguir explorá-la direito. Mas agora, aos poucos, estou voltando a redescobri-la.
A Berlim que eu conheci em 1997 no meu primeiro mochilão não existe mais. Quando retornei 10 anos depois já não a encontrei mesmo buscando por vestígios da minha primeira passagem. Mitte? Onde era esse Mitte que nada tinha a ver com o Mitte em que passeei na época? A recordação que tinha era de um canteirão de obra (não que ele não exista mais).
A primeira vez que vim pra cá foi num mês de setembro muito frio, cinzento e chuvoso. Ao redor muitos andaimes que continuam aqui, prédios destruídos, ocupações (os squats) e muitos escombros. Hospedei-me num hostel próximo ao zoológico, no bairro Charlottenburg, a Higienópolis berlinense. O primeiro passeio foi nos arredores do Portão de Brandemburgo onde lembro de ter caminhado por um terreno lamacento ao lado do que tinha sobrado do muro. Vendedores tentavam me empurrar pedacinhos dele por alguns marcos, que na época nem era euro, pra eu levar pra casa. Lembro-me tão perfeitamente desse dia, do guia apontando pro chão e dizendo com os olhos arregalados “foi aqui que o Hitler se suicidou” para onde hoje repousa uma placa azul que conta a história do Führerbunker.
Quando voltei em 2007 a cidade era outra. Berlim estava mais vibrante e o Mitte era o bairro da vez. O Berghain já existia e eu estreava em sua pista. Essa nova Berlim me deixou tão maravilhada que mandei um cartão-postal para os meus pais dizendo “Eu estou apaixonada por Berlim. Que cidade bonita! Decidi que um dia eu vou morar aqui”. Era novembro quando o outono nos traz dias feios, curtos e gelados, mas isso não foi um problema. Eu estava enamorada. Na volta comprei um curso de alemão em CD para iniciar meus planos de mudança. Mas eu só fui abri-lo agora na minha vinda pra cá.
Berlim esconde tantas coisas de mim incluindo lembranças que surgem afoitas de vez em quando. A última foi na semana passada durante um passeio de bicicleta pelo calçadão que corre junto com o Rio Spree, no Tiergarten. Eu nunca tinha voltado a esse lugar desde 1997. Reconheci o HKW quando o vi de fora, mas sem saber o que era o lugar (é um centro cultural). Sua arquitetura emblemática, um dos marcos da Berlim pós-guerra, é difícil esquecer. Mas fiquei mesmo foi boquiaberta com as construções modernas à beira rio com muito concreto e formas geométricas que juntas formam o Parlamento. Sempre que uma lembrança de outrora surge, algo novo se junta a ela. E assim Berlim vai dobrando de tamanho pra mim.
Eu vim várias vezes para cá antes de me mudar definitivamente e sempre me senti perdida na cidade. Ainda continuo tentando entendê-la, mas aos poucos esse grande quebra-cabeça, que Berlim é para mim, vai se juntando e fazendo sentido. Eu amo Berlim.
Ah, mas agora uma ode aos meus amigos
O que mais tem me encantado nos últimos meses são os diversos projetos criativos que nascem em meio ao caos e, na maioria das vezes, no meio dessa solidão encaixotada por alguns metros quadrados.
Uma das coisas mais bonitas que vi nessa última semana foi “Agon”, projeto de dança criado pelo meu amigo super talentoso Manuel Nogueira. “Agon” surgiu a partir de uma inquietação causada pela frase do filósofo Emanuele Coccia: “Nada aqui foi feito para nós”, onde o autor fala “sobre nossa ilusão de protagonismo em relação à existência, um processo narcísico de achar que tudo é feito para o ser humano” (pah!). O filme nasceu junto com o renascimento da revista Elle que foi um dos meus presentes de quarentena.
Há alguns anos minha amiga Gaia indicou a leitura de “Tudo que é Belo”, livro que reúne 45 histórias reais escolhidas a dedo pelo projeto The Moth. A sua resenha me fisgou de jeito. Comprei o livro e o devorei em umas três sentadas. Com ele eu chorei, ri, senti raiva, me inspirei. Nessa semana eu vi essa thread no Twitter do Arthur Muhlenberg em que ele narra uma história fantástica vivida no Rio de Janeiro ao lado do Bob Dylan. Minha amiga que a enviou disse “poderia ser uma história contada no The Moth”. Eu não tenho dúvidas sobre isso e eu fiquei com uma invejinha de não ter participado dela.
O mundo é tão melhor quando estamos cercados de histórias bem contadas, não é?
Aqui na Europa muitos países começam a se preparar para o verão, para receber turistas de outros países e tentar colocar a economia pra rodar. A Espanha, por exemplo, isentará turistas internacionais da quarentena a partir de 1 de julho. Se essa pressa em ligar o mundo na tomada novamente vai dar certo, a gente não sabe, mas vamos acompanhar e torcer para quem sim. Por ora eu só entro num avião se for para ir pro Brasil, pois voar não é o exatamente um ato agradável no momento. A minha ideia para o verão é viajar de carro para algum lugar que seja possível chegar em no máximo 10 horas. É gente, nada como será antes mesmo.
Com o euro custando quase R$7 e o meu dinheiro ainda estar em Reais, vocês já devem prever que eu estou na lama. Ontem recebi um email sobre essa lindeza de ação: fotos de vários ícones da música que eu amo por US$ 150 tendo a grana arrecadada revertida para uma instituição. Fiquei toda animada, mas aí eu acordei pra minha realidade. Mas fica a dica para quem está podendo gastar uns dinheirinhos.
Eu ainda estou usando aquela máscara azul hospitalar horrorosa (se alguém quiser me dar uma bonitinha de presente, meu aniversário é na semana que vem). Eu fiquei bem tentada com essas máscaras que o Ai Wei Wei criou, especialmente porque elas têm um ato nobre por trás: a verba arrecadada será revertida para 3 ONGs. Mas eu só vou querer, porque 50 dólares não está rolando desembolsar (cerca de R$ 280 #socorro).
Revistas é uma das minhas paixões e já fui colecionadora de várias publicações. Nos últimos anos eu tenho tentado comprar as que me são essenciais e, uma vez ou outra, aquela bem bonita para me inspirar e enfeitar a minha mesa de centro da sala. Como já dava pra imaginar, o mercado de revista de música foi bem atingido pela pandemia, afinal não tem show, não tem bar, não tem festival e muitas publicações vivem de cobrir eventos e lugares. O The Guardian escreveu um ótimo artigo de como algumas revistas têm feito para sobreviverem ao coronavírus. Aproveitando, a Wired está com promoção de assinatura anual (digital) por US$ 5.
Eu sempre fui apaixonada por Paris. Visitei a cidade pelo menos 45 vezes em 20 anos, mas não sei porque raios eu nunca fui à livraria Shakespeare and Company. Logo ela que foi frequentada por tanta gente boníssima que tem me inspirado a vida toda. Desde sua fundação em 1919, a livraria se dedicou à venda de livros em inglês, que não eram tão fáceis de serem encontrados, especialmente num preço razoável. Para facilitar o acesso aos títulos, a livraria criou uma espécie de biblioteca em que era possível emprestar um livro com um valor de depósito. Graças a digitalização das fichas de empréstimos e compras da época é possível saber hoje o gosto literário de escritores como Gertrude Stein, James Joyce, Ernest Hemingway, Simone de Beauvoir, entre outros nobres frequentadores. Você conseguiria imaginar Gertrude Stein lendo romances de fantasia? Eu não.
Trust yourself. :)
Eis meu mantra da quarentena, afinal quem aí não sofre de síndrome de impostor@ de vez em quando? Conforta-me saber que pelo menos, além de não estar sozinha nessa, há com tirar vantagens da situação.
É, de acordo com o John Maeda, a internet se tornou exatamente o que David Bowie previu em 1999.
A saga do álbum AmarElo vai longe. Depois do “Filme Invisível”, agora é a vez de “Prisma”, um podcast dividido em 4 temas: paz, clareza, compaixão e coragem. O primeiro episódio já está no ar e o Emicida fala nele sobre a relação entre paz e o corpo. Lindíssimo como sempre! Um telecurso como disse alguém num comentário.
Mais difícil do que entrar no Berghain, é entrar no novo social app sensação, o Clubhouse, mistura de podcast e festa, um Houseparty sem vídeo. O app está em beta com 5 mil usuários convidados a dedo (celebridades e artistas, tais como Jared Leto, Ashton Kutcher, Fab 5 Freddy, MC Hammer, E40, e também a grande mídia). A empresa Andreessen Horowitz investiu US$ 10 milhões no aplicativo e mais US$ 2 milhões para comprar ações dos acionistas existentes. Detalhe: ele mal foi lançado, tem apenas dois funcionários e já está avaliado em US$ 100 milhões. E assim nasce um candidato potencial a unicórnio.
Falando no Berghain, o bouncer mais conhecido do planeta, Sven Marquardt lançou em abril o curta Isolation e deu recentemente uma ótima entrevista para o Artnet. Quando cheguei por aqui estava rolando uma das expos mais incríveis que vi nos últimos tempos, No Photo on the Dance Floor!, que contava os 30 anos de história dos clubs e festas de Berlim. Foi nela que eu conheci o ótimo trabalho do Marquardt como fotógrafo. É tanta sensibilidade nas obras que até perdi um cadinho de medo dele.
Todo mundo está louco para voltar para uma pista e algumas já estão rolando. Münster, na Alemanha, foi a primeira a promover uma festa com o DJ Gerd Janson com ingressos vendidos a 70 euros (incluindo drinks e comida) para 100 pessoas num local com capacidade para 2 mil. Os poucos ingressos foram vendidos em minutos. As pessoas estão loucas para voltar para a pista ou não?
Tem muita gente criticando o drive-in pelo impacto negativo que o carro causa ao planeta. O italiano Fulvio De Rosa respondeu à crítica com uma solução, o Bike-In. A Pitchfork questiona se existe um distanciamento seguro nos shows ao vivo. Será que nosso futuro próximo será restrito aos clubs virtuais?
Com essa baixa no turismo, incluindo o de música, está rolando um evento para discutir como reinventar o Turismo dos Festivais (está no fim, mas dá para acessar o que já rolou).
Minha sugestão de uma playlist esquisitona para o finde, a In the Absence Thereof, que o Thom Yorke criou para a Sonos. Ou as pílulas de alegria de Domesticated, o novo álbum do Sébastien Tellier.
Chega porque a tendinite gritou aqui (e você deve estar cansad@ se chegou até aqui), mas deixo a sugestão de 3 das minhas newsletters favoritas: Vibra, a newsletter do site Deep Beep, escrita pela Larissa Marques que mora em Lisboa traz notícias quentinhas da música; MargemM, do jornalista Thiago Ney, traz um apanhadão de tudo e dá vontade de clicar em tudo; Trabalho Sujo, do também jornalista Alexandre Matias, sobre música, divagações e divulgações dos projetos dele.
I'm going to go back there someday.
(Dresden Dolls dando uma canja neste cover delicioso do filme Muppet)
Nos vemos na pista neste finde?
Byeeee! Bom finde pra vocês.
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