Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Se você mora em Berlim ou está com uma visita à capital alemã nos planos, não deixe de acompanhar o meu guia cultural semanal: The Next Day Berlin.
Trilha sonora para essa edição: "Selected AmbientWorks Volume II", Aphex Twin
No primeiro ano morando na Alemanha, me vi afundada em uma tristeza descomunal — logo eu, a pessoa que estava sempre vestida de felicidade. Três meses após a mudança, meus planos naufragaram por conta da pandemia. A falta do que fazer trouxe o tédio para a minha vida, e eu passava o dia todo sonolenta, sem vontade de sair de casa, me debatendo em um mar de melancolia.
Assim que as coisas reabriram no primeiro verão pandêmico, meu marido e eu fomos em busca de um médico de família — algo obrigatório na Alemanha. Foi assim que conhecemos a Dra. Uta, uma médica alemã simpática que fala português e hoje guarda meu pequeno histórico de saúde desses cinco anos em Berlim, incluindo uma mordida de cachorro em uma festa de Halloween.
Arrastei a mala de tristeza até o consultório para essa primeira consulta e, de coração aberto, disse a ela que algo não ia bem.
"Está trabalhando?"
"Não, estou sem trabalho."
"Tem ido para a natureza?"
"Não, não saio muito de casa."
"Tem feito exercício físico?"
"Não."
"Então, trate de passear na natureza. Aproveite que não está trabalhando e vá todos os dias. Se exercite também. Como as academias estão fechadas, recomendo aulas online ou correr na rua. Se não melhorar em três meses, volte aqui."
Obedeci ao conselho e não precisei voltar. Aos poucos, a energia retornou, e, em um desses passeios pela floresta, surgiu a ideia de criar a Espiral, que nasceu a partir de uma recomendação médica.
Voltei outras vezes ao consultório, mas sempre fui atendida por outras médicas. Recentemente, fui fazer um check-up e a própria Dra. Uta me atendeu. Ela logo cobrou meu alemão; afinal, morando aqui há tanto tempo, como ainda não falo este idioma tão ‘simples’? Depois da bronca, olhou meu histórico e perguntou:
"Continua passeando na natureza?"
"Menos do que gostaria."
"Hmmm… mas tem se sentido bem? Tem feito exercício físico?"
"Sim para os dois."
Pediu para eu sentar na maca ao lado:
"Vamos ver se está se exercitando mesmo."
Ela me examinou e me parabenizou por não ter mentido, mas alertou que meu pescoço parece o de uma pessoa de setenta anos. A lombar também não anda boa.
***
Um amigo recorre a pílulas para dormir há anos para driblar a insônia, mas decidiu parar. Morando em Berlim, confiou na fama do Charité, um dos maiores e mais antigos complexos hospitalares da Europa. Fundado em 1710, é referência em medicina e pesquisa, com uma área toda dedicada ao sono. Como não buscar tratamento em um lugar tão especializado?
Foram seis meses de espera pela consulta enquanto ele tentava "desmamar" aos poucos do remédio que garantia suas noites de sono. O aguardado dia chegou! Lá foi meu amigo, esperançoso em se livrar do sedativo-hipnótico. Quando o encontrei, ele estava devastado com o tratamento proposto:
"A médica pediu para eu andar na floresta todos os dias à noite por pelo menos vinte minutos. E nada mais."
Diga-se de passagem, meu amigo, morando nos arredores de Berlim, tinha a natureza servida de bandeja em qualquer direção que olhasse. Ele é do tipo que acorda, medita, faz yoga, dá uma volta no parque e, se o tempo permitir, mergulha no lago. Ou seja, já estava em tratamento há anos, mas a insônia persistia.
Em um almoço, ele contou a história para outro amigo que estava conosco. Rimos sobre as consultas médicas na Alemanha, onde as sugestões de tratamento geralmente são duas: voltar para casa com uma receita de chá e/ou incluir "das Waldbaden" (o banho de floresta) na rotina. Waldbaden, que significa literalmente "banho de floresta", é a prática de imersão na natureza, geralmente caminhando ou passando tempo em uma floresta para experimentar seus efeitos calmantes e restauradores.
Recentemente, o segundo amigo me contou que compartilhou a história para o namorado médico. Especialista em medicina do sono, ele garantiu que a proposta da médica do Charité está correta. Segundo ele, é comprovado de que caminhar diariamente na natureza por pelo menos vinte minutos à noite ajuda a combater a insônia.
Será que o ineficiência é porque meu amigo faz suas caminhadas pela manhã?
***
Na última terça-feira, chegou o dia de uma aguardada consulta ginecológica. Foi um ano tentando encontrar uma médica que fala inglês e aceita novas pacientes pelo sistema público. Mal dormi à noite de tanta ansiedade.
Atravessei a cidade em uma fria manhã de outono para chegar ao consultório. Dois trens e quase uma hora depois, me vi dividindo a sala com cerca de dez mulheres, todas esperando sua vez de ser atendidas.
Quando a médica chamou “Frau Santos”, pulei tremendo da cadeira. Entrei na sala, sentei e esperei enquanto ela lia o questionário que preenchi na chegada. A Dra. Katrin perguntou quando tinha sido minha última consulta ginecológica. Não lembrava, então chutei dois anos. Desde então, tentei encontrar uma nova médica, já que a minha antiga se mudou de Berlim.
Para uma brasileira acostumada a fazer check-up ginecológico anualmente, ficar tanto tempo sem uma consulta parece um grande descuido. Para minha surpresa, a Dra. Katrin não deu bronca e respondeu:
"Então faremos o papanicolau no próximo ano, porque o plano de saúde só permite fazê-lo a cada três anos."
Três anos. Só se pode fazer o papanicolau na Alemanha sem pagar extra a cada três anos. A mamografia só é liberada ao completar cinquenta anos.
Tive vontade de chorar novamente; afinal, o sistema de saúde público me custa trezentos e setenta e oito euros por mês, e raramente consigo marcar uma consulta sem estresse.
Expliquei como os sintomas da pré-menopausa têm me afetado enquanto ela me examinava. Ela disse que são normais, o que eu já sabia, afinal, leio sobre o assunto, mas queria tratamento. Alguma luz! Após o exame, disse que está tudo bem comigo, melhor até do que parecia pelo que descrevi.
Propôs começarmos com uma reposição hormonal bem leve para ver como meu corpo reage e, em três meses, avaliaremos se será necessário um próximo passo.
Vesti-me ainda inconformada por não ter feito o papanicolau. Decidi verificar no aplicativo médico a última vez que estive em consulta ginecológica: 2021. Três anos. Mostrei triunfante para ela. Sei que deveria ter feito isso antes. Ela me olhou um pouco impaciente e pediu para eu tirar a roupa novamente para fazer o exame.
Saí do consultório me sentindo fragilizada engolindo o choro. Já na calçada, me deparei com um dia bonito e ensolarado, apesar dos dez graus no termômetro.
Senti uma necessidade urgente de escapar para uma floresta e me recompor. Para a minha sorte, uma das minhas florestas favoritas em Berlim estava a menos de três quilômetros dali.
***
A diferença cultural entre a medicina no Brasil e na Alemanha é enorme. Demorei para entender que, apesar de parecer o contrário, a medicina alemã é preventiva, e os tratamentos mais comuns são fitoterápicos. Nós, brasileiros, estamos acostumados a tratar tudo com remédios, que são facilmente acessíveis. Na Alemanha, por outro lado, é raro comprar medicamentos sem receita médica.
Banho de floresta, jardinagem, caminhadas, exercícios físicos, exposição ao sol e estâncias termais são as opções acessíveis para a prevenção de doenças comuns.
Admito que me sinto frustrada; embora o sistema de saúde alemão seja considerado altamente eficiente, raramente me sinto acolhida nas consultas quando consigo uma. Mas entendo que, talvez, essa sensação vem de ter tido um bom plano de saúde privado no Brasil nos últimos trinta anos.
O que também me causa frustração é perceber que o sistema parece funcionar bem apenas enquanto a pessoa não está doente, pois obter um diagnóstico aqui não é fácil. Tenho dois casos próximos.
Uma amiga passou o ano visitando médicos para entender suas dores e enjoos, que a impediam de se alimentar direito. A última médica sugeriu que ela exagerava os sintomas. Pouco depois, no Brasil, foi socorrida com um mal-estar. O diagnóstico: câncer no fígado, que a levou em poucos meses.
Outra amiga sentia dores nas articulações e dificuldade para andar. Após consultas sem diagnóstico, foi ao Brasil em cadeira de rodas. Lá, o primeiro médico que a atendeu diagnosticou artrite; com o tratamento, em poucos dias, ela já circulava no último Círio de Nazaré.
***
Após a minha consulta médica, decidi buscar uma cura para as inquietações que estava sentindo. Caminhei por quarenta minutos até um centro de arte em um bonito casarão de 1922. Cercado pela natureza, a casa tem um jardim com belas esculturas e fica à beira de um lago. Almocei ali, visitei a exposição e passei um tempo sentada no jardim, respirando o ar fresco, gelado e silencioso. Eu começava a me recompor.
Segui então para a floresta Grunewald, ao lado, para uma Waldtherapie — a terapia da floresta. Passei duas horas caminhando entre as árvores e ao redor de dois lagos, onde pessoas corajosas nadavam, desafiando as baixas temperaturas.
A natureza é espetacular nesta época do ano, e não pude deixar de comparar como aquele ambiente muda nas diferentes estações. No verão é comum ver ali corpos nus relaxando, lendo, conversando, nadando ou simplesmente curtindo o momento.
Voltei para casa me sentindo mais leve, relaxada e inspirada. A raiva e frustração tinham se dissipado.
Pensei no poder real que a natureza tem sobre nós, e mesmo assim, muitas vezes a ignoramos. Sei o quanto é um privilégio viver em uma cidade cosmopolita com uma natureza tão abundante quanto em Berlim, onde me sinto segura ao caminhar sozinha por florestas, mesmo quando estão quase desertas.
Não encontrei a pesquisa específica sobre caminhadas de vinte minutos na natureza para tratar insônia, mas me deparei com estudos que exaltam seu poder no tratamento de várias outras condições. Alguns chamam essa prática de "20-minute nature pill".
A maioria de nós reconhece o efeito calmante da natureza, mas, vivendo em um mundo capitalista, que nos exige alta performance o tempo todo, quando conseguimos espaço na agenda para esse exercício diário? A situação se agrava ainda mais em cidades como São Paulo, onde os parques nem sempre são acessíveis, além das questões de segurança.
Terminei o dia me sentindo uma baita privilegiada.
Meus favoritos de outubro
📚 Como se fosse um monstro, da Fabiane Guimarães, ainda ressoa por aqui. É um livro sobre maternidade, culpa e o direito de escolher;
🎬 A Substância, dirigido por Coralie Fargeat, é um soco no estômago. A estética, as atuações, o plot e todas as referências do cinema que Fargeat traz para o seu filme fazem dele um obra-prima;
📺 Atravessando a Ponte - O Som de Istambul (2005), filme em que o músico alemão Alexander Hacke explora a diversidade musical de Istambul, revelando como ela se divide entre Oriente e Ocidente, tradição e modernidade. É lindíssimo.
♫ Ritual, de Jon Hopkins. Fiquei na dúvida se falei sobre esse álbum, mas para mim é um dos mais bonitos do ano. Sigo com ele no repeat desde que foi lançado e tem sido ótima trilha para a meditação;
💥 Estive em dois festivais no fim do mês: o Jazzfest Berlin e o Tehran Contemporary Sounds, focado em música experimental. No Jazzfest, os shows do The Sun Ra Arkestra e de Goran Kajfes Tropiques: Tell Us foram os destaques. Já no segundo festival, a programação foi uma grande surpresa - vou escrever a respeito -, mas minha cabeça explodiu com o percussionista Naghib Shanbehzadeh, que promoveu uma festa linda e louca com seus tambores e arranjos eletrônicos orientais, e da Nazanin Noori, que fez um show arrebatador com seu sintetizador modular acompanhada do baterista Andrea Belfi;
🌟 E, uma das coisas mais legais do mês, foi colocar no mundo a Senda, meu novo empreendimento focado em experiências em Berlim. Escrevi sobre nesta nota no Linkedin. E, quem quiser saber mais, me dá alô para que eu possa apresentá-la. Além de atender empresas, eu e meu amado sócio Guima lançaremos em breve uma experiência focada em criatividade e conhecimento em Berlim para ‘pessoa física’.
Ao poucos vou voltando para cá, afinal a Espiral é também um canto terapêutico. Para fechar, deixo aqui um set ambient delicioso para acalmar um pouco a alma depois do resultado das eleições nos Estados Unidos.
Tchüss.
Olá!! Uma newsletter que sigo me indicou seu texto. Sou amiga de uma amiga sua (Monica) e te conheci lá no começo do milênio...rs. Que bom te "rever" e ver que está bem, pois está em busca, estar em busca é sempre um bom motivador de vida. No Brasil (SP) tbm já ouvi nos meus últimos exames de rotina q se o papanicolau tiver dois resultados bons consecutivos pode pular um ano pra fazer, mas sinceramente tbm estou condicionada e dependente (para ficar tranquila) em fazer exames anuais. Quanto à cura da natureza acredito que isso dependa de uma construção de sentido para que faça efeito... é um processo de reconhecimento e descoberta. Boa saúde pra ti!!
Adorei o texto, importante reflexão sobre as diferenças no sistema de saúde do Brasil e da Alemanha. Dói um pouco ver como estamos tratando as florestas e parques por aqui e como Alemanha mantém e preserva as suas. Não tenho conseguido me exercitar por problemas na coluna, mas certamente a natureza cura muitas coisas. Um abraço.