Espiral #14: A impermanência das coisas
As primeiras vezes, a arte poética de Lee Mingwei, a primeira viagem, como envelhecer e muita música
Imagem: Instalação de Lee Mingwei
Hoje o que não falta é trilha sonora maravilhosa para essa newsletter. São dois ótimos álbuns lançados na última sexta-feira: Rough and Rowdy Ways, do Bob Dylan; e Homegrown, do Neil Young, que ficou engavetado por 45 anos e é uma preciosidade só. Minha amiga Laura Damasceno fez uma playlist ótima com o Melhor da Música Brasileira, enquanto Songs of The Stonewall proporciona quase 3 horas de alegria com as músicas mais tocadas no verão de 1969 no jukebox do Stonewall Inn.
Estamos vivendo várias “primeiras vezes” de coisas que fazíamos diariamente antes da quarentena, mas que estavam quase todas no automático. Porém, quando nosso cotidiano nos foi negado, nós sentimos saudades de coisas simples que faziam parte do nosso dia-a-dia. Queremos comer fora, sentar no balcão da padoca pra comer pão na chapa, encontrar os amigos, abraçá-los, tomar um drink num bar abarrotado, fazer compras, ir numa exposição, trabalhar de um café, correr na rua, pedalar a esmo, dançar numa festa até o sol raiar, planejar viagens ou resolver viajar de uma hora para outra, fazer piquenique no parque ou um bate-volta pra praia. A lista é gigante.
Eu tenho gostado de (re)viver essas primeiras vezes, tanto que a segunda, a terceira, a quarta vez ainda chegam com sabor de novidade. Foram quase 3 meses com a vida suspensa e não temos ideia do que ainda vem pela frente. Isso mexe bastante com a gente. Ficarão resquícios talvez para sempre. Passamos dias vivendo um turbilhão de emoções com os quais a gente nem sabia que existiam.
Sentimos coisas que sabemos que não é “tristeza” nem “alegria” ou “ansiedade”. São muitas sensações novas como o desconforto que muita gente sentiu (ou ainda sente) que especialistas nos contaram ser um sentimento de “luto”. Eles tiveram que explicar porque a gente não sabia o que era esse tal incômodo. Assim seguimos lendo e pesquisando para entender esses novos sentimentos que surgem aos borbotões. Ficamos exaustos. Dormir para muitos virou uma tarefa difícil. Mas quando temos uma trégua…. aaaaaah!
Por aqui a trégua veio acompanhada de uma “alegria” gostosa. Joie de vivre define bem o momento. O otimismo veio de bônus (e sei que está difícil tê-lo). Estou sem trabalho e reavaliando a vida, mas não estou mais mal ou ansiosa com isso. Ao contrário, eu estou empolgada com as possibilidades que enxergo. A novidade é que depois de muito adiar, eu finalmente entrei num curso de muitas horas (o que não andou cabível por aqui antes da pandemia) de Music Business. Vamos ver onde isso vai dar.
“Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!” - Mário Quintana
Voltar à uma exposição foi uma experiência reconfortante e inspiradora. Nela eu fui arrebatada pelo trabalho sensível de Lee Mingwei, artista que mergulha justamente em memórias afetivas e em cenas cotidianas para criar suas obras. A exposição “Li, Gifts and Rituals” é sobre o ritual de dar e receber. O trabalho de Lee ganha sentido a partir da participação do outro. São cartas de despedidas, objetos que marcaram um momento da vida, interpretação de uma obra a partir de outros olhares, viagens colecionadas e contadas a partir de objetos, um jantar a dois e até mesmo uma apresentação de ópera exclusiva para você ali no meio do museu.
A obra mais emblemática desta exposição é “Guernica in Sand”, uma recriação da obra de Pablo Picasso feita com 28 toneladas de areia que levou mais de 2 meses para ficar pronta. “Guernica in Sand” chega em sua terceira fase com uma performance no próximo dia 4 de julho. A primeira fase é a construção, a segunda é a contemplação e a terceira, a dissolução. Ou seja, nesse dia o público é convidado a andar em cima da obra provocando uma reflexão sobre a impermanência e a transformação. Ali a obra acaba ou vira outra?
Lee fala sobre a beleza de cada história que vivemos e de como devemos estar sempre atentos à nossa volta nesse TED de 2016, pois para ele tudo que vivemos é especial e impermanente. Como Bob Dylan disse na canção “I Contain Multitudes”: “Durmo com a vida e a morte na mesma cama”.
“I'm screaming that I'm gonna be living on till the end of time
Forever
The sky splits open to a dull red skull
And my head hangs low 'cause it's all over now” (Never Get Old, David Bowie)
Terminei de ler o livro “Como envelhecer”, da socióloga Anne Karpf, que fala sobre o nosso medo de envelhecer. Comprei-o no meu aniversário porque “me sentir mais jovem do que de fato sou” é um fardo na real para todo mundo. Eu me sinto ótima na minha idade, porque não me sentiria nela? A autora se debruça na História para explicar como envelhecer é encarado e tratado desde os primórdios da humanidade até a atualidade. Na maioria das vezes nunca foi bem visto e tem histórias escabrosas de como tem sido tratado. Uma leitura essencial para qualquer idade, pois “o envelhecimento é um processo que dura a vida toda, e não algo que acontece no final de nossas vidas”. A escravidão de querer se manter eternamente jovem é cara e desgastante. O livro tem passagens incríveis e inspiradoras, além de várias referências ótimas como Susan Sontag e Simone de Beauvoir. A conclusão é óbvia, pois a melhor forma de “envelhecer bem” acaba sendo a mesma de “viver bem”.
Para quem quer saber mais, a TPM entrevistou a Anne Karpf sobre o livro. Caso queira se inspirar um pouco mais sobre o assunto, eu indico assistir esse TED da Isabel Allende ou esse filme belíssimo “Acende a Luz” sobre a descoberta do sexo depois dos 60 anos.
Aliás, vários artistas, incluindo New Order, Moby, Daniel Avery e HAAi, se juntaram no álbum “The Longest Day” para arrecadar fundos para a Alzheimer’s Association. A compilação é lindíssima assim como a causa.
“Buscar um mundo novo
Vida nova
E ver, se dessa vez
Faço um final feliz” (Mundo Novo, Vida Nova - Elis Regina)
Fiz minha primeira viagem desde que me mudei para Berlim na última quinta-feira, por isso falhei na newsletter da semana passada (e acumulei alguns assuntos nessa). Fui para Hamburgo. Aproveitei o convite de uma amiga para ter um respiro e dá-lo também ao meu marido que ficou trancado meses a fio comigo. A melhor parte foi fazer a mala pequena de mão que me causou uma alegria desmedida. Fomos de ônibus e voltamos de trem. Os dois cheios, mas o segundo mais disputado. O trem, apesar de custar o triplo, é mais rápido, tem banheiros e restaurantes funcionando. O ônibus teve que parar na estrada para um banheiro emergencial e passamos 3h30 de máscara, enquanto no trem foram apenas 2h.
A população em Hamburgo parece levar mais à risca os protocolos de relaxamento pós-quarentena do que em Berlim. Muita gente de máscara na rua ao contrário daqui. Vi poucos restaurantes e bares com mesas disponíveis na área interna, muitos deles tinham proteção entre elas (um quadro de madeira com acrílico entre as mesas).
No hotel fomos recepcionadas mais alegremente do que o normal. Tinham 4 quartos ocupados durante nossa estadia. A limpeza impecável, álcool gel espalhado por diversos lugares, café da manhã suspenso, vidro de proteção na recepção eram algumas da medidas tomadas pelo hotel, mas nada além disso.
As fronteiras dos países europeus estão todas abrindo. Essa semana fui bombardeada por anúncios de companhia aéreas, a maioria low cost, vendendo passagens por tarifas baixíssimas! Se o turismo vai decolar de fato eu não sei, mas ele está se preparando para isso, afinal o turismo internacional teve uma queda de 97% em abril no mundo todo gerando uma perda superior a um trilhão de reais entre janeiro e abril.
Eu tenho mixed feelings a respeito dessa abertura geral e mantenho minha decisão de viajar apenas de modo terrestre, preferencialmente de carro, nos próximos meses. Como disse Brian Chesky (Airbnb) “voltaremos a nos movimentar, mas de um jeito diferente”. No alto do meu egoísmo, eu tenho gostado de explorar Berlim mais vazia.
E os eventos? A música ao vivo? As lives? Para onde estamos indo?
Os eventos ao vivo estão sendo retomados aos poucos. Na última sexta-feira aconteceu o Tous Ensemble pour la Musique reunindo 2 mil pessoas em Paris num local com capacidade para 20 mil. Já a Alemanha prorrogou a liberação de eventos de grande porte para novembro.
No próximo domingo eu vou no meu primeiro evento (pequeno) ligado à música desde início de março. Está aí uma nova “primeira vez”. Ele vai acontecer num dos lugares mais fascinantes de Berlim para quem gosta de música, o Monom (eu narrei aqui a história do dia em que dormi numa “balada” por lá).
Festivais como o Exit e Iceland Airwaves mantiveram suas edições de 2020. O Exit está com o line-up bem centrado na Europa (por motivos óbvios). Já o Iceland Airwaves, que acontece somente em novembro, tem por enquanto artistas islandeses dominando o line-up.
Mesmo com os eventos ao vivo retornando aos poucos, a discussão sobre “o futuro das lives” continua a todo vapor. A jornalista Kitty Empire conversou com vários produtores e promoters sobre o futuro da música, mas ninguém teve algo positivo para falar sobre o assunto. O mercado anda pessimista.
Por enquanto estamos num limbo e não sabemos quando sairemos dele. É perceptível a diminuição de público assistindo lives, mas elas continuarão existindo. Na semana passada a notícia que me deixou boquiaberta foi a banda de K-Pop BTS reunir mais de 750 mil pessoas para assistirem uma live de 1h30 com ingressos pagos. O resultado? 18 milhões de dólares de bilheteria! Foi a live stream mais bem paga da história.
O Global Citizens prepara a segunda edição de seu evento, agora com o nome Global Goal: Unite for Our Future — The Concert com uma lista de nomes estrelados. O Glastonbury terá uma edição online feita em parceria com a BBC Music transmitindo shows que rolaram em edições anteriores. Tem até a saudosa Amy Winehouse no line-up. O museu V&A, de Londres, lançou The Glastonbury Festival Archive, uma exposição online para contar os 50 anos de história do festival.
O Tomorrowland fará uma edição digital em 3D e som 8D com um line-up gigante e cheio de artistas consagrados. Esta eu quero ver, pois apesar de não gostar do estilo musical, tá aí um festival que não faz nada mais ou menos.
O entrave na continuidade das lives a longo prazo é a ausência do spatial thinking (ou pensamento espacial) que tem papel crucial na nossa experiência em shows e festivais. Eis o motivo do estrondoso sucesso da turnê do Travis Scott no Fortnite. As pessoas se movimentavam nela. Os pontos chaves de um evento ao vivo são presença, movimento e mapeamento, que são possíveis serem emulados em experiências imersivas. Por isso eu continuo apostando no aumento das produções de eventos dentro dos games. Hoje são 2,7 bilhões de jogadores no mundo, ou seja, 35% da população mundial. O Twitch, por exemplo, teve um incremento de 3,46 milhões de novos streamers entre janeiro e maio de 2020. É muita coisa.
Mas para mim o mais emblemático até o momento foi a reabertura da Ópera de Barcelona com um concerto feito para 2.300 plantas. Isso mesmo. Plantas. <3
“Around the world, around the world”
Vona é um coletivo com vários criativos experts em CBD que acabaram de lançar sua primeira linha de produto criada em colaboração com o Sigur Rós! Se você assim como eu gosta de tudo que envolve o Sigur Rós, não deixe de assistir o vídeo clipe belíssimo “In Light” da Julianna Barwick feat. Jónsi.
Você tem alguma pergunta para fazer para o Nick Cave? É só enviá-la aqui. Tem histórias incríveis e uma das últimas respostas tem uma lista com os 40 livros favoritos do Nick.
A Zumbido publicou um ótimo estudo sobre a presença feminina na indústria da música. Por que há poucas mulheres nela? A autora mergulha nos primórdios da música ainda na Idade Média resgatando a história da monja beneditina alemã Hildegarda até os dias atuais. O artigo termina com uma playlist cheia de artistas que provavelmente você nunca ouviu falar. Uma jóia rara. E aqui tem uma lista com os 100 álbuns mais emblemáticos de todos os tempos produzidos por artistas afro-americanas.
A TPM conversou com nove escritoras e poetas periféricas que usam a palavra como arma para transformar olhares e construir novas narrativas na literatura brasileira. Eu não conhecia nenhuma delas.
Essa lista vai arrepiar o pelinho do dedo do pé dos fãs de techno. É uma extensa pesquisa com entrevistas, documentários e artigos sobre o tema.
Eu não tinha visto essa série maravilhosa de vídeos “Híbridos, The Spirits of Brazil”, um estudo etnográfico sobre os cultos religiosos brasileiros. O projeto é encabeçado pelo Vincent Moon e Priscilla Telmon.
A revista Quatro Cinco Um publicou um texto brilhante do José Saramago sobre “os escritores perante o racismo”.
Os fãs de K-Pop trollaram o Trump em seu último comício em Tulsa. Eram esperados 1 milhão de pessoas e apareceram apenas 6.200. A série “Explicando”, do Netflix, tem um episódio curtinho explicando o fenômeno e o conceito do K-Pop. Vale a pena assistir!
Nos próximos dias 26 e 27 vai rolar o evento “Dialogues for Action” reunindo 270 pessoas ao redor do mundo para responderem a pergunta “"How can we shape a post-crisis scenario with a fresh narrative?". É de graça.
“Você só sonha com o que vê” foi uma frase da Fiamma Zarife, Diretora Geral do Twitte Brasil (aka presidenta) num episódio do podcast Freestyle que me tocou de maneira especial.
A Espanha conseguiu produzir mais um grande desastre na restauração de arte. Tsc, tsc, tsc.
Um Instagram para seguir @monachalabi e uma lista com 15 documentários sobre arte para assistir.
“Já deu pra sentir” que estou indo nessa.
Lembra do Air? Então…. fecho com eles hoje.
Tchau que eu vou ali tomar um sol e plantar um pouco de saudades.
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