Espiral #19: FKK - a nudez alemã
Verão em Berlim, FKK, o fascinante azul, o Berghain como galeria de arte, os novos espaços de shows, a indústria de avatares
Apesar de soturna e contrastar com o verão, a trilha sonora de Dark é de uma beleza rara. E em homenagem ao Beirute, deixo esse momento feliz num Boiler Room com Habibi Funk.
Estamos na semana mais quente do ano em Berlim. Finalmente chegou o esperado verão. Temos dias de céu azul turquesa, sol escaldante, termômetro marcando 35 graus e o ar sofrendo de má circulação.
O fim do dia cai, a temperatura sobe. O ar-condicionado é considerado item de luxo, assim como o ventilador, o qual já providenciamos um em casa para mantermos o bom humor e o casamento em ordem. Também aderimos ao FKK, Freikörperkultur ou cultura do corpo livre aka nudismo, caseiro, porque são 35 graus lá fora e aqui dentro.
Como comentou uma amiga enquanto nos abanávamos numa mesa de um restaurante: “Em dias quentes em Berlim ou você está no lago ou você está no Rewe”, a grande rede alemã de supermercados, um dos poucos lugares na cidade com ar-condicionado. Entendi então o que leva pessoas a trabalharem de um café no supermercado.
Sinto-me num curso intensivo “Como curtir o verão na Alemanha”. Tem toda uma técnica da qual sou leiga: Manter as cortinas e janelas fechadas durante o dia para o calor não entrar, mudar algumas plantas de lugar para que elas sobrevivam, abrir as cortinas e as janelas quando o sol baixar. Soma-se a isso passar o dia fugindo de abelhas e não esquecer de fechar a boca enquanto pedala para não engolir mosquitos. Eu, que nasci com os dentes avantajados, já desisti de lutar a favor deles. Deixo-os morrerem dentro de mim.
Sou de São Paulo, onde os dias calorentos não são fáceis. Mas por lá, sempre tem um ar-condicionado nos esperando em algum lugar. Aqui não tem. Não estou reclamando, estou apenas assumindo o meu inesperado despreparo para algo que achei que tinha nascido pronta, o verão.
Preparar-se para um dia de sucesso em um lago distante da cidade é semelhante a fazer uma viagem em um feriado prolongado para uma praia isolada e pouco conhecida, o que envolve muitos preparativos. Um deles é transportar uma pequena casa nas costas para montá-la na areia ou no meio do mato.
Um profissional do lago carrega uma barraca de camping, uma boia grande, uma caixa de som (para qual eu torcia o nariz) e um cooler com almoço, lanchinho da tarde, frutas da estação, vinho branco, mais comum aqui do que a cerveja, e água. Se tiver cachorro, ele vai junto. No meu caso, ainda estou no nível um: Tenho apenas um mini cooler chinfrim que dá para carregar na bike. Os alemães são os farofeiros mais profissionais que já conheci. Ainda irei alcançá-los.
O último sábado chegou com os 36 graus prometidos. O meu WhatsApp, para decidir para qual lago iríamos (são cerca de 3 mil nas mediações de Berlim), estava mais concorrido do que em dia de eleição presidencial no Brasil.
Escolhemos um lago lindo de água verde esmeralda, apelidado por mim de “Tom Zé” (Tonsee é o nome em alemão), onde uma floresta em torno garante sombra e água fresca ao longo do dia. Cada um achou seu canto entre as árvores, esticou a canga e montou sua casinha temporária. Já no meio da tarde, de repente alguém puxou um violão, formou uma rodinha e aí ouvi:
”… Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí…”
Bateu um delírio tropical nesse momento que me fez ouvir alguém gritar de longe: “Ô mate, ô limão, ô biscoitoooooo”, mas aí lembrei que aqui os ambulantes não existem, apenas a saudade que tenho deles.
E fui ficando, o dia não ia embora, mais pessoas foram chegando, alguém levou vinho gelado, aceitei mais um pouco e fui ficando molinha, mergulhada num arrebatamento gostoso. Quis ver o pôr do sol, mas teria que esperar dar oito e meia da noite e ainda eram cinco horas da tarde. Enquanto decidia o que fazer, peguei carona num stand up paddle para conhecer uma prainha “caribenha” na outra margem do lago. A prancha deslizou suavemente pela água cristalina, eu sorri, molhei meus pés na água gelada enquanto esperava ansiosa chegar do outro lado.
Como disse Drummond: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.” Cá estou derretendo de calor, mas amando o verão e já sofrendo com seus dias contados.
Agora uma rapidinha sobre a cultura FKK na Alemanha
Frequentando Berlim há mais de 2 décadas, aprendi que a frase “o ser humano realmente verdadeiro é o ser humano nu”, de Goethe, é levada ao pé da letra. Para nós latinos o corpo nu exposto em área pública é vista como crime e indecência.
O movimento FKK (Freikörperkultur ou Cultura do Corpo Livre) foi criado em 1898 na Alemanha justamente para desconstruir essa relação erótica que temos com o corpo. Em 1920 o país ganhava sua primeira praia FKK. A nudez é hoje permitida nos parques, lagos, saunas e praias. Chegar aqui despreparado pode chocar os mais conservadores, afinal a nudez em público é natural e banal no país. Não é atentado ao pudor como na maior parte do mundo.
É comum ter áreas FKK na maioria das praias (incluindo os lagos) e parques, mas você não precisa estar num cercadinho naturalista para se sentir à vontade e tirar a roupa. Para nós, que temos enraizado o pudor à nudez, é um exercício de desconstrução. No início eu estranhava, mas hoje já quase não me chama a atenção (só chama quando vejo alguém em algumas posições pirotécnicas de yoga, mas aí não é só a minha). Eu tenho trabalhado mentalmente para me sentir à vontade com a minha própria nudez em público. Mas o máximo que consegui até o momento foi um topless e trocar de roupa numa praia sem me esconder das pessoas. No fim das contas, a nudez é libertadora e tem o poder de trazer a sonhada paz com o nosso corpo independente de como ele é.
O azul…
Eu ando apaixonada pelo azul do céu de Berlim, que de tão azul “eu me sinto perdoada para sempre. Nem sei de quê”, parafraseando o Mario Quintana.
Li esse artigo sobre o “Maia Blue”, em que fala sobre a evidência do uso da cor azul no ano 600 a.C. pelo povo Maia. Não é uma notícia nova, mas ela me levou a mergulhar no azul profundo pela lembrança do quanto essa cor tem uma história tão fascinante quanto recente. A cor azul, apesar de ser a cor que ficou mais tempo na história sem um nome (e sem ser reconhecida) , é hoje a favorita de quase metade da população do mundo.
Passei uma manhã absorta lendo e assistindo vídeos sobre o azul. Como não poderia ser diferente, caí na arte invisível do Yves Klein marcada pelo seu azul IKB. Relembrei o filme poético “A liberdade é azul”, do Krzysztof Kieslowski, em que a cor azul dita seu tom nos lembrando que o mundo é algo real. O vídeo “Invenção do Azul” apresenta uma timeline interessante sobre a cor. Para quem não conhece muito sobre os mistérios do azul, vale muito a pena ver. O “Por que o azul é tão raro na natureza” traz também curiosidades da quase ausência do azul na natureza nos fazendo entender porque as pessoas não enxergavam o azul até os tempos modernos. Nós inventamos a cor do nosso planeta e isso mudou a forma como vemos a vida.
A música….
Os produtores de shows ao vivo estão tendo que ser bem criativos pra driblar a crise atual seguindo as regras de distanciamento social. Além do drive-in, o formato mais comum que tem rolado, temos os shows verticais, os shows feitos em bike-in na Itália (mais inclusivo e sustentável que o drive-in), tuk-tuk drive-ins na Tailândia, deck chair na Alemanha e agora o float-in, onde a platéia assiste os shows de um bote.
Aqui em Berlim tem sido comum amigos se reunindo para alugar barcos em grupo e fazer festas. Com o distanciamento social, o número de pessoas por barco é inferior à sua capacidade. Então a saída que tem rolado é alugar alguns barcos que atracam juntos em algum lugar no Rio Spree ou em algum canal. No barco principal (geralmente o maior) fica o deck onde os DJs tocam e nos demais, a galera curte a festinha enquanto toma sol. Eu presenciei uma festinha assim ao longe e achei a ideia ótima (tanto que estou querendo copiá-la).
O TikTok promoveu sua primeira investida musical com um show ao vivo do The Weeknd na plataforma oferecendo aos espectadores uma experiência imersiva de XR. Foram 2 milhões de visualizações únicas. A hashtag #TheWeekndEXP teve até o momento mais de 1,6 bilhões de visualizações. O show arrecadou 350 mil dólares para o Equal Justice Initiative com a venda de merchandise que está disponível por tempo limitado. Nesta quinta-feira o show será retransmitido no Youtube.
O Beatportal convidou a DJ Ash Lauryn para ser a editora do mês no portal. Seu pontapé inicial veio com a “Letter from the Editor”, em que Lauryn fala sobre a negligência de anos da indústria da música com os artistas negros. Vale demais a leitura.
Meu amigo Mané Brasil escreveu sobre músicas que falam a real sobre o amor sem idealizá-lo em “Música Incomum no Tópico mais Comum”.
Arte…..
Frame do vídeo “Mãe”, de Ava Rocha, da expo CC:WORD
O HKW (Casa de Cultura), em Berlim, abriu a exposição online CC:WORD com obras de artistas e pesquisadores de vários lugares do mundo que escreveram uma carta expressando sua visão sobre esse momento em que o coronavírus amplifica nossas rachaduras sociais. O racismo, as injustiças sociais e a desigualdade têm aumentado, mas ao mesmo tempo tem surgido novos laços de solidariedade na nossa sociedade. Como continuamos? O que queremos além da sobrevivência? A mostra conta com vídeos, cartas, música e fotos. Um dos trabalhos é da brasileira Ava Rocha que, aliás, é lindíssimo.
Berlim anda com a cena artística bem movimentada e concorrida. O Berghain está usando seu espaço como galeria de arte enquanto retomam sua programação habitual. A primeira exposição que rolou foi a instalação sonora “Eleven Songs”. Foi tão concorrida que não consegui vê-la. Nos últimos dias as filas eram as típicas do clube, com 3 horas de espera. A diferença é que ninguém é barrado na porta.
O Berghain fez uma nova parceria com o colecionador Christian Boros (do Boros Collection) para promover uma nova exposição interdisciplinar intitulada “Studio Berlin”. Olafur Eliasson, Wolfgang Tillmans, Tacita Dean, Anne Imhof e Cyprien Gaillard são alguns dos artistas participantes. A exposição estreia no dia 9 de setembro ocupando os salões Berghain, Panorama Bar, Säule e Halle. Dessa vez serão vendidos tickets online. Ufa!
O Antônio “Tó” Araújo (Teatro da Vertigem) e o artista plástico Nuno Ramos criaram a performance “A Marcha a Ré”, comissionada pela Bienal de Berlim. A performance aconteceria aqui na capital alemã, mas com a impossibilidade dos dois viajarem por conta da pandemia, eles realizaram a performance na Avenida Paulista. Participaram 120 carros dirigindo a ré por 2,4k, da esquina da Pamplona até o Cemitério da Consolação, numa “procissão antifascista, pela liberdade de expressão e o livre pensamento”.
Estou fascinada pelo trabalho da artista plástica e quadrinista Ing Lee. Ela é mineira e tem uma história familiar peculiar. Seu pai nasceu na Coreia do Norte e fugiu de lá aos 3 anos de idade, o que a levou a pesquisar temas como identidade, memória e geopolítica leste-asiática para criar suas narrativas gráficas.
Livros….
Nicole Tersigni é autora do livro “Men to Avoid in Art and Life,” em que explica sobre o mansplaining com a ajuda da arte produzida no século 17. Vamos dar de presente para os amigos e conhecidos que insistem nessa prática?
Terminei de ler “Canção de Ninar”, de Leïla Slimani, que não é apenas um suspense sobre a babá que matou as crianças (não é spoiler, a cena é a introdução do livro). O livro é um romance sobre as tensões de classe, raça e gênero instaladas em nossa sociedade, além de retratar o papel da mulher e a maternidade de uma maneira perturbadora. Li numa sentada.
Já na literatura de “auto-ajuda”, em que ando empenhada, eu estou lendo “Hábitos Atômicos”, de James Clear, sobre como criar novos hábitos. Diferentemente do “Poder do Hábito”, Clear é mais prático dando o passo a passo de como podemos fazer mudanças em nossos hábitos. Gosto de sua visão de que mudar um hábito muda também a nossa personalidade. Para ele, não importam as metas e sim os sistemas que criamos para mudar um hábito ou criar um novo. Se você estabelece meta, você ganha o jogo quando a alcança correndo o risco de abandonar esse novo hábito adquirido. Mas se você constrói um novo sistema, você continua no jogo e mantém o hábito. O ResumoCast fez um episódio sobre o livro, mas super indico a leitura do livro para quem está precisando promover algumas mudanças na rotina.
“A pandemia nos mostra que continuamos a ser apenas uma espécie a mais sobre a Terra, dependente de uma intrincada teia de relações, que temos um corpo frágil e mortal e que nossas possibilidades são limitadas. Tenho a impressão de que está de volta a máxima Memento Mori, tão popular na formação cultural do Barroco europeu, quando o ser humano se viu obrigado a enfrentar epidemias, guerras e forças cruéis, inconcebíveis. É o retorno a uma visão do mundo como mistério, a uma busca do significado da existência humana na Terra, a indagar sobre a natureza do homem e a presença do mal. Esta pode ser uma época interessante.” -por Olga Tokarczuk nesta matéria do El País.
Para promover um reload pessoal….
O The Atlantic publicou o ótimo artigo “O que a Masterclass vende atualmente?” em que conta a história de seu fundador David Rogier, esmiuça o funcionamento da plataforma e entrevista algumas das celebridades que dão aula nela. De acordo com a jornalista, a Masterclass tem menos a ver com educação e mais com inspiração. Para o VP de conteúdo da plataforma, a Masterclass serve também como válvula de escape para quem a usa. Se você, assim como eu, tem curiosidade em experimentá-la, te dou a boa notícia que eles estão disponibilizando um teste gratuito de 30 dias. Corre lá!
A Oi Futuro promoveu um festival no fim de julho para discutir o mundo pós-pandemia. Foram convidados grandes nomes brasileiros e internacionais para compartilharem suas visões sobre o futuro a partir da perspectiva da inteligência artificial, da realidade virtual, da diversidade, da ética, da arte e da empatia. O conteúdo está todo disponível aqui e tem muito papo bom.
Pirei na programação caprichada desse curso sobre a “História da Contracultura”, com o Dodô Azevedo, mas não vou conseguir fazê-lo, pois me proibi de me matricular em qualquer curso até que eu termine todos os que estou fazendo.
Para refletir…
Dois artigos discutem sobre a nova onda estética e ativista no Instagram, onde as fotos do feed estão sendo substituídas por “slide shows” nos remetendo às apresentações de Power Point. Teve um momento nessa ainda curta história da internet em que discutíamos a orkutização do Facebook. A discussão agora é se estamos transformando o Instagram no novo Facebook. Seria o Instagram 2020 o Facebook de 2016?
Um belo ensaio escrito pelo psicanalista Leonardo Goldberg questionando o tempo “O tempo acidentado da pandemia e sua relação com o ‘normal’”: “O que me pergunto, porém, é se estamos efetivamente em um “tempo fora do tempo”. Essa noção de “tempo de pandemia” é problemática pois exclui seu par oposto, sua antinomia, a dizer, o “tempo cotidiano”, o “tempo normal” ou o “tempo da razão”, da determinação própria de um tempo acidentado.”
O último episódio do podcast Peixe Voador é sobre “Se a gente falasse menos”. Nele, a Patricia Palumbo está super bem-acompanhada de Cecília Meireles, Antonio Risério, Mia Couto, Maria Quintana. Tá bem inspirador e cheio de poesia.
Uma pequena entrevista com o artista Yoshi Sodeoka, a estrela da arte digital, que inspirou artistas com Beck e Tame Impala com seu estilo neo-psicodélico que, aliás, ele acha que não é.
A Elástica nos apresenta três influenciadores que melhoram a saúde mental da população negra e periférica.
A minha vizinha Peaches ressurgiu com o novo videoclipe “Flip This”, gravado no estúdio dela aqui em Berlim. Não gostei da música, mas gostei dela ter reaparecido.
A Forbes analisa nesse artigo o crescimento do D2A (“Direct-to-avatar”), que é a venda de produtos para avatares, como skin, por exemplo. Hoje a movimentação nos games com esse tipo de venda é bilionária. Em 2019 gerou US$ 20,6 bilhões. O League of Legends, um dos maiores, teve uma receita de US$1,5 bilhão com venda de skins. É esperado que esse mercado alcance US$ 50 bilhões em 2022. Continuo vendo um potencial enorme de um novo jeito dos artistas na música se remunerarem.
Amor no Espectro é a nova série do Netflix que mostra a busca de pessoas com autismo por um relacionamento amoroso. É tocante e tem muito a ensinar pra gente.
Opa… e por aqui me despeço num bailinho com o Pet Shop Boys.
Tchau :)
Adorei o texto sobre o verão alemão! Tô num misto de alívio e tristeza que já vai acabar. Tristeza pq apesar dos dias quentes, choveu demais!! Mas até que deu pra aproveitar pra ir farofar no rio e em alguns lagos aqui perto! Já me acostumei com os peladões, mas eu mesma ainda não tenho coragem de tirar a roupa toda. Quem sabe no próximo verão? É um processo rs. Tal qual se acostumar com a água sempre gelada do rio. O massa é que tem uma vibe praia mesmo, até pela quantidade de brasileiros. Churrasquinho, música latina, gente falando português… mas tá bom de calor né? te juro que hoje sonhei que NEVAVA. Não vejo a hora de acabar a temporada de insetos, com a casa que tem que ficar fechada pra não entrar o calor de fora e as malditas moscas. Um beijo!