Espiral #20: driblando a síndrome de impostora
Berlim é uma festa, SP-Arte digital, imaginando o futuro e muita, mas muita música
Senta que hoje tem terapia em grupo, então separei duas trilhas sonoras, o novo álbum do Moodyman e V.Acina vol. 2 , da Gop Tun, para contrastar um pouco com o assunto.
O domingo ensolarado pediu um almoço sem pressa numa mesinha ao ar livre num lugar bem gostoso. Escolhemos um dos nossos restaurantes favoritos do bairro, o Fischladen, uma peixaria que tem no menu um prato da culinária inglesa que eu amo, o Fish & Chips. O Fischladen oferece ele preparado de várias maneiras, incluindo uma opção trufada e outra com salmão, mas eu sempre escolho a tradicional com peixe kabeljau, também conhecido como bacalhau fresco. Ele sempre chega quentinho e crocante acompanhado de um pratinho com três molhos deliciosos que eu sempre tenho vontade de lamber com os dedos.
Nossa mesa era com vista para a Schönhauser Allee, a avenida desprovida de charme onde moro. Ela é cortada boa parte por um “minhocão berlinense” onde o metrô da linha U2, que sempre me lembra da banda do Bono Vox, passa.
Terminamos de almoçar e pedimos uma segunda taça de Chardonnay. A tarde estava gostosa, não tínhamos planos e a conversa estava boa. Eis que a taça chega, eu tomo o primeiro gole e inesperadamente desato a chorar. Assim do nada. Foi quando me dei conta de que eu não chorava há muito tempo. Logo eu que sempre chorei assistindo ao Jornal Nacional, mas desde a quarentena eu não chorava.
O Ola olhou para mim preocupado mostrando estar desacostumado com esse meu lado manteiga derretida. Estaria eu escondendo algum segredo? Segurei sua mão e o acalmei dizendo entre soluços: “Eu sou uma impostora”.
Pois bem…. quando a quarentena acabou eu entrei em pânico. Eu estava numa bolha confortável, pois de repente eu não precisava mais pensar no futuro e nem no que eu ia fazer no dia seguinte. Os planos tinham sido todos cancelados. Até o dinheiro era menos necessário, porque a gente só gastava com supermercado e as contas da casa.
Sem trabalho, eu mergulhei em um monte de tarefas para disfarçar o tempo livre e me manter ocupada. Os três meses trancafiados em casa voaram de tal forma que não dei conta de metade das coisas que me propus a fazer. Finalmente a porta de casa estava aberta para eu sair e curtir o verão, explorar Berlim e fazer a minha nova vida acontecer. Mas junto com a liberdade, veio a cobrança: E aí, o que você vai fazer? Vai trabalhar com o que? Vai voltar para o alemão? E o inglês, evoluiu? Conseguiu fechar algum projeto? Terminou o curso x que estava fazendo? Está meditando? Vai escalar? E a academia? Tem dinheiro na conta? Mas já está querendo viajar?
Nessa nova fase da minha vida, que chamo de capítulo 4, eu entrei numa espiral maluca que deu nome à essa newsletter. A minha mudança para Berlim me fez abrir mão de muita coisa incluindo uma vida bem confortável. Eu tive que fazer escolhas que não foram fáceis, mas aceitei o desafio de me reinventar, empacotei minha casa em seis malas e vim.
Um dos motivos que me trouxe para cá foi a minha atual busca por uma vida mais simples, mais saudável, mais devagar, mais conectada com a natureza e menos consumista. Para conquistar tudo isso eu estou num longo processo tentando virar um botão enorme do modo como vivi nos últimos anos. Vida social badalada, muito trabalho, dinheiro sempre entrando na conta, respirando muito monóxido de carbono, muitos bons drinks, muitas noites mal dormidas, muitas viagens pelo mundo e matando todas as plantas que tentei ter em casa resumem meus últimos anos. Passei os últimos 5 praticamente viajando enquanto realizava o meu sonho de rodar o mundo. Foram tantas as viagens emendadas uma na outra que eu me vi exausta. Aquietar um pouco numa cidade que amo e voltar a ter rotina só poderia ser uma boa ideia.
O Ola me acalmou depois de eu chorar um bocado. Sendo uma pessoa de exatas, ele é sempre bem prático em seus conselhos. Por que seria eu uma impostora? Listou todos meus feitos e conquistas que não foram poucos. No fim tirou de mim até um sorriso tímido, mas contente.
Desde então eu comecei a ler e a ouvir sobre a síndrome de impostora, que afeta tanto as mulheres (muito mais do que homens) nos impedindo de seguir em frente. Ouvindo esse bate-papo da Cris Naumovs com a Dani Arrais caiu a minha ficha de que eu realmente andei me sabotando. O assunto é tão comum que foi criado até um podcast só para discutir o assunto, o Chá com Impostora.
Eu já me senti impostora em alguns momentos ao longo da minha vida, mas foram poucas as vezes. Então, por que a esta altura da vida eu permiti que essa voz traiçoeira cochichasse no meu ouvido que não sou boa o bastante nas coisas que eu faço? Por que empaquei? Bora investigar.
Chamei minhas super amigas para uma conversa franca que colocou minha auto-estima pra cima. O estopim de tudo foi ao tentar fazer um currículo! O que eu sou? O que eu quero? Quero mesmo essa vaga porque estou insegura de que não posso conseguir algo melhor ou realmente a quero?
Aí caí nesse texto da Ana Holanda que ela escreveu pra mim mesmo não sabendo disso: “O que eu vou fazer quando crescer” me jogou na cara a mesma pergunta que minha amiga mulher-maravilha me fez: Lalai, de qual vazio você está fugindo? O que conversa com a sua alma? Eu não soube responder e estou aqui fazendo uma lição de casa para chegar em respostas.
Para mim, tudo isso se conecta de alguma forma com a teoria sobre o “Essencialismo”, de Greg McKeown. Eu sou péssima em dizer não, estou sempre abraçando o mundo e dizendo sim pra tudo que me pedem. Para quem não o leu, o essencialismo é basicamente investir em coisas essenciais e deixar as triviais de lado. Para McKeown, o essencialista não faz as coisas em menos tempo, ele apenas faz as coisas certas.
Não é fácil definir o que é essencial, porque muitas vezes a nossa insegurança e auto-estima baixa dificultam esse processo. Quem ainda não leu o livro, eu recomendo bastante. Ele me mostrou como eu desperdiço tempo fazendo coisas as quais eu não acredito e não me acrescentam nada. Como se permitir ser essencialista se nos sentimos uma impostora? Você abraça o que não quer, porque não se acha capaz de fazer o que quer.
Aproveitando o tema “terapia”, me sugeriram a plataforma Zenklub dedicada ao assunto para eu dar mais uma chance para ela. Quem está atrás de um(a) terapeuta para chamar de seu/sua, só colar aqui.
Mas se preferir mesmo ficar sem fazer nada e ainda ganhar por isso, a Universidade de Belas Artes de Hamburgo está oferecendo uma bolsa de € 1.600 para quem topar investir na ociosidade de uma maneira ativa. Será possível? Eu acho difícil demais não fazer nada.
Mas bora para a pista que tem um monte de coisa mara rolando em Berlim!
About Blank
Dois terços dos 140 clubs correm o risco de fechar em Berlim. Está todo mundo se virando como pode.
Como falei na última newsletter, o Berghain se transformou temporariamente em galeria de arte lançando sua segunda exposição, o “Studio Berlin”. Mas do lado de fora, no Garden, as festinhas já estão acontecendo. No próximo domingo, por exemplo, tem Ben Clock comandando as pickups. O Kantine (uma das pistas do Berghain) está com a agenda confirmada de shows já para setembro. As apresentações especiais no Berghain que foram postergadas, como do Terry Riley e Gyan Riley, estão remarcadas para novembro.
O Clubcommission Berlin criou um checklist para eventos open air e tem auxiliado os clubs que não tem espaços abertos a encontrarem lugares para abrigarem seus eventos. Desde que os bares voltaram, os clubs que contam com área externa, montaram biergartens para receber DJs e fazer o caixa girar. O Wilde Renate também está usando suas pistas para abrigar exposições, enquanto seu jardim virou um bar com DJ. A cena de festas ao ar livre explodiu aqui, incluindo as ilegais que acontecem em lugares afastados da cidade e são avisadas via Telegram ou outras redes e no boca-a-boca. Qualquer lugar que você vai hoje em Berlim, você tem que deixar seus dados pessoais com data e horário em que esteve lá. Para facilitar, criaram um passe digital.
A agenda voltou a bombar. Neste fim de semana o Wilde Renate se junto com o Else Klub para fazer uma festa com um line-up mais robusto. Os ingressos para domingo, que tem a Ellen Allien no line-up, esgotaram tão logo foram colocados à venda. Estão rolando também picnics acompanhados de shows ou DJs. Mas a princípio, não se pode dançar (não quer dizer que as pessoas não dançam).
Berlim virou essa grande sala de estar com a vida privada ocupando o espaço público. É verão, os dias estão quentes e os lugares fechados causam 19 vezes mais riscos de contrair o coronavírus. Com o outono chegando, como será esse novo momento em que ficar ao ar livre não é algo tão agradável? Ainda não sabemos… mas existe a expectativa de uma vacina até lá. Hummmm, será?
De qualquer forma, eu estou animada em ver as coisas acontecerem. Isso traz esperança sobre esse futuro tão incerto. Eu me emocionei na primeira vez que pisei numa pista novamente depois de tanto tempo. Tudo agora tem gosto de primeira vez. É muito legal olhar os eventos no Facebook e ter neles endereço físico e não uma URL.
No dia 3 de setembro eu vou bater um papo com a Renata Alamy sobre o assunto no painel “O Futuro do Entretenimento”, no Minas Eventos Expo, que vai acontecer no IGTV às 16h (horário Brasília). Apareçam para me dar um “oi”.
Eita, mas e o futuro, como fica?
“Não existe solução mágica ou previsão ousada que possa consertar o mundo. É um processo contínuo, onde você cria o futuro que gostaria de viver em uma base diária. É da nossa natureza evoluir e progredir”, diz Anne Lise Kjaer nesta matéria ótima com “Previsões para um futuro incerto”, na Revista Gama.
O UOL publicou um especial caprichado sobre robôs questionando se haverá espaço entre criador e criatura no futuro?
Você já ouviu falar sobre “Monomass”? É o nome que a Dazed usou para descrever o hiperindividualismo e as tendências de massa coexistindo. Para eles, este é o fenômeno que estamos vivendo hoje: “Paradoxos estão extintos. A cultura está em tudo, a publicidade está dentro de nós, tudo está à venda. Mas, apesar de estar tudo bem à sua frente, a informação é mais escassa do que nunca. Esta é a era da monomass.” Quem quiser ir mais a fundo, pode baixar o relatório completo aqui.
A arte
HOA TOUR
O SP-Arte fará sua próxima edição online com o Viewing Room contando com a participação de 130 galerias de arte, incluindo a estreia da HOA TOUR fundada pela genial Igi Lola Ayedun. Inclusive, a HOA surge com uma agenda de cursos incríveis para quem se interessa por narrativas femininas na arte contemporânea brasileira e asiática.
O Instituto Moreira Salles lançou o projeto CONVIDA com participação de 125 artistas e coletivos que criaram obras a partir da quarentena, enquanto o Itaú Cultural está promovendo uma mostra online de filmes do cineasta brasileiro Eryk Rocha até 28 de agosto.
Leiturinhas e inspiração…mas já aviso que essa última semana eu estive imersa em leituras relacionadas à música
“Business techno matters” apresenta uma bela reflexão sobre quem está tentando lucrar com esta crise e como as conversas sobre a inserção de artistas negros continuam sendo evitadas nesses espaços.
O Cercle promoveu uma live do Disclosure em Plitvice Lakes, na Croácia, que vale a pena assistir por conta do visual lindíssimo do lugar.
Uma poesia e um bate-papo sobre o tempo com o Gustavo Nogueira. É, o tempo gerado tanta reflexão nos últimos meses.
A música é capaz de manter as plantas mais saudáveis? Ao ler esse artigo fantástico sobre “Música para Plantas” que especula que as plantas que temos dentro de casa têm algumas necessidades similares às nossas. Achei tão sensacional que fui pesquisar mais e descobri que o maestro e pianista brasileiro Alexei Lisounenko pesquisa de que maneira os vegetais evoluem a esse tipo de exposição sonora. Para testar eu coloquei o belíssimo álbum Glassforms do Max Cooper para ver se animo meu manjericão.
O Barack Obama é muito pop mesmo, basta ver os artistas escolhidos para a sua playlist de verão 2020.
Quem adora lista, vai curtir a listona indie feita pelo Brooklyn Vegan com os melhores álbuns lançados em 2020 até o momento.
O queixo da indústria da música caiu com a última aquisição milionária da Warner Music, o IMGN Media por US$ 85 milhões que é uma fábrica de memes. Um dos principais motivos foi o fato da IMGN ser totalmente conectada com a Geração Z, ou seja, um belo lugar para entender o comportamento dessa geração.
O TikTok continua investindo pesado em música. A rede social acabou de fechar um acordo com a UNITEDMASTERS que permitirá aos usuários a distribuição de músicas diretamente da plataforma.
O The Guardian publicou duas matérias sobre a cena musical brasileira. A primeira sobre a cena de artistas trans e negros, como a Jup do Bairro e Linn da Quebrada, que estão se esquivando do racismo, da transfobia e da resistência da indústria da música para contar suas próprias histórias. A segunda é uma entrevista com a Anitta.
Dois artigos ótimos sobre o funk brasileiro publicado internacionalmente, ambos analisando o funk e o impacto do coronavírus na cena e aonde esse momento vai dar.
A Netflix lançou a série GDLK com 6 episódios para contar a história do videogame. <3
Toparia viver 1 milhão de anos? Aqui as dores e delícias da quase imortalidade num divertido texto da Scientific American.
Ufa! Essa newsletter foi quase parida porque eu estava na UTI tratando a minha síndrome de impostora, mas saiu e eu estou bem! Também fechei dois projetos para os próximos meses o que me leva a cogitar ter a Espiral quinzenalmente, o que provavelmente faz mais sentido.
Tchau e um bom fim de semana. E obrigada a todos que me enviaram dicas incríveis no email… podem continuar enviando, porque adoro recebê-las.
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