Espiral #24: Berghain, o "pivot" do ano
Arte, Raquel Fedato e Pornceptual, Burning Man, Rita Lee, acid house, Inhotim e o dilema das redes sociais
Deixo uma música para acompanhar newsletter: “Life Guarding”, do Wolfgang Tillmans, trilha da instalação que fecha a expo Studio Berlin e um set de house chiquérrimo da África do Sul feito pelo Amapiano (fica de olho nesse nome) e Mr. JazziQ
Visitando o Studio Berlin no Berghain
Quando a pandemia foi anunciada e o mundo entrou em quarentena sem data para sair, muita gente teve que rever os seus negócios para que eles sobrevivessem a tempos tão incertos. Uma das palavras de 2020 para quem empreende foi “pivotar”, ou seja, girar o negócio em outra direção para que ele se mantenha em pé. São vários os exemplos e o Berghain é um deles.
Enquanto sua pista de dança não volta a nos abduzir para longos finais de semana, ela dá lugar a um espaço expositivo surpreendente. Primeiro abrigou uma instalação audiovisual que pedia paciência com suas longas filas na porta do club para visitá-la. Para muitos, a fila não deixou de ser um jeito de matar saudades de um dos clubs favoritos do mundo onde a fila é parte da experiência. E então foi anunciada a nova exposição numa parceria inédita entre o Berghain e o Boros Collection, a Studio Berlin, com participação de 115 artistas incluindo Tacita Dean, Olafur Eliasson, Cyprien Gaillard, Elmgreen & Dragset, Katharina Grosse, Alicja Kwade, Danh Vō e Wolfgang Tillmans. O ponto em comum entre eles é que todos têm residência em Berlim.
Diferentemente do que muita gente achou, as obras não são do acervo da coleção do Boros. São na maioria obras inéditas com 90% delas produzidas este ano durante a quarentena.
Visitei-a logo que abriu. A pergunta que mais ouço desde então é se vale a pena pagar 20 euros de entrada para conhecê-la. Sim, para mim valeu por toda a experiência que ela me proporcionou.
Todos os espaços do prédio foram ocupados, desde as pistas Säule, Berghain, Panorama Bar, Halle, Lab.Oratory, até os banheiros, os bares, a sorveteria, os dark rooms e os corredores que conectam tudo.
Fomos recebidos por um simpático bouncer que dessa vez não tem a possibilidade de olhar pra você e dizer com gosto “not today”. Não teve coração tremendo e alívio por ter sido aceita ao atravessar a porta. Entramos da maneira mais descomplicada possível. Ingressos na mão, horário marcado, sem fila e uma pulseirinha com meu nome gravado me esperando no caixa.
Encontramos nossa guia na frente da chapelaria. Ela, apesar de esbanjar simpatia e sorrisos, não mostrou muito conhecimento além do que pareceu ter decorado para nos contar durante nossa visita guiada de 1h30 (que é pouco para o tamanho da exposição).
Foi uma experiência única estar no Berghain num outro contexto com a luz clara do dia invadindo as pistas vazias e limpas, ver corpos nus somente nas fotos ou pinturas, ter arte ocupando espaços impregnados de histórias e perceber os olhares nostálgicos das pessoas à sua volta. Eu me vi em alguns cantos enquanto observava um piano tocando sozinho no banheiro, atravessava os corredores e mal reconhecia alguns lugares porque eu nunca os vi vazios (ou não tinha visto mesmo).
As artes mais emblemáticas são aquelas que visivelmente traduz uma conexão do artista com o Berghain e são várias delas. O dia estava ensolarado e os raios de luzes atravessavam as grandes janelas da pista do Panorama Bar. Foi impossível não mergulhar em memórias da última vez em que estive lá e dancei com a Robyn pendurada na beirada da janela.
Foi ali que encontrei algumas das obras das quais mais gostei. Uma delas, da artista surda Christine Sun Kim, que criou um mapa que mostra seus movimentos pela pista feitos a partir das vibrações sonoras que sentia quando estava lá. Em frente a cabine do DJ, uma flor marmeleiro-do-Japão gigante simboliza a história do casal de artistas Pettit Halilaj e Alvaro Urbano que se conheceram ali e agora são casados.
No Halle, os espelhos (proibidos em todo o club) do Olafur Eliasson foram liberados. Na saída, a única foto autorizada a ser tirada, a obra do artista tailandês Rirkrit Tiravanija instalada no topo do Berghain, “Amanhã é a questão”, nos lembra sobre a incerteza do futuro.
Para retomar o fôlego, fomos tomar uma cerveja bem gelada acompanhada de fritas no biergarten arrumadinho ao lado que mal parece fazer parte do Berghain.
Ainda sobre arte & Berlim….
Berlin Biennale: Pedro Moraleida (aos fundos) e Young-ju Tak
Setembro está sendo um mês bem intenso em Berlim para quem gosta de artes. Rolaram a Gallery Weekend e a Berlin Art Week com uma agenda extensa incluindo uma feira e o Berliner Festspiele, este último com uma série de apresentações experimentais no Planetário incluindo uma da compositora Caterina Barbieri com o artista visual Ruben Spini, numa live full dome (que eu perdi). Para quem quiser explorar um pouco o que rolou na semana, pode acessar o conteúdo digital do evento aqui. Para quem está em Berlim se lamentando por ter perdido, muitas exposições ainda seguem até fim de outubro.
O vento me levou para outros lugares, mas visitei o Wilhelm Hallen, uma antiga fundição, para ver K60, exposição que reuniu 7 galerias de arte e 23 artistas. O lugar chamou tanta atenção quanto algumas obras, em especial por ter ocupado também áreas que ainda não foram renovadas e seguem detonadas. Os trabalhos dos alemães Ferdinand Kriwet, com sua poesia concreta e visual dos anos 70, e as do Wolfgang Ganter, que trabalha com bactérias expostas em filmes fotográficos para desenvolver suas obras, foram as que mais gostei muito pelo impacto visual que me provocaram.
Já o KINDL, instituição de arte localizada em Neukölln, está com 4 exposições incluindo Schizo Sonics de Nik Nowak, que conta com duas esculturas sonoras poderosas, uma delas remetendo ao soundystem jamaicano num formato de um tanque de guerra. Na obra de áudio, o artista usa o som como arma e meio de propaganda. É bem impactante. Tem até uma raposa empalhada em que o artista diz que depois da queda do muro, elas não ousaram atravessar para o lado Ocidental. Sim, é comum ver raposa por aqui.
A Berlin Biennale também abriu suas portas e segue até novembro. Por enquanto eu visitei apenas uma das venues, a KW, que tem como título “The Antichurch”. Nela há a participação de artistas brasileiros, como Flávio de Carvalho, com a obra “O Bailado do Deus Morto” (1933), que inspirou a performance “Marcha a Ré”, do Teatro da Vertigem, e me deixou de coração apertado. O mineiro Pedro Moraleida foi outro artista que fez meu coração chorar com sua obra tão potente. Eu não conhecia seu trabalho que traz uma visão muito crítica e ácida do mundo. Seu trabalho é um grito de desespero, tanto que o artista se suicidou aos 22 anos deixando 1450 desenhos, 450 pinturas e 250 textos.
Enfim, Berlin is burning e eu mal estou dando conta.
Minas que eu admiro: Raquel Fedato, a dona do rolê
Eu conheci a Raquel Fedato em 2009 no saudoso Vegas, em São Paulo numa festa que eu produzia. Ela me abordou, falamos rapidamente e eu não a perdi mais de vista. A Raquel tinha então 16 anos e já estava dando pinta na pista.
Não demorou muito para ela se mudar para Berlim onde se juntou com outro brasileiro, o artista Chris Phillips, criador do Tumblr Pornceptual dedicado à pornografia queer. A Raquel, que tinha expertise em mídias sociais, se ofereceu para ajudá-lo a aumentar o alcance da plataforma, o que fez com sucesso.
Não demorou para serem convidados para fazerem uma festa do site num bar em Berlim. Era 2013 e desde então não pararam mais. O lado visionário e empreendedor da Raquel fez a Pornceptual decolar e se transformar numa plataforma queer com o objetivo de explorar através da música e das artes visuais questões relacionadas à sexualidade.
Considerando que a Raquel é uma mulher cis heteronormativa, eu admiro o alcance que ela conseguiu para a Pornceptual nesse universo. Com seu alemão impecável, ela é quem está à frente dos contratos, do financeiro e também dos bookings de artistas.
A Pornceptual é uma das festas mais concorridas e conhecidas de Berlim, reunindo cerca de 2.500 pessoas a cada edição bimestral. Nos intervalos, o calendário é preenchido com convites para edições locais em diversas cidades do mundo, como NY, Londres, SP, Estocolmo.
A plataforma tem hoje uma revista e também assina palcos em grandes festivais, como o Melt. A última grande empreitada foi a criação do Whole Festival há 3 anos que hoje reúne 5 mil pessoas em suas edições (2020 foi cancelado por motivos óbvios, mas já estava com ingressos esgotados).
Na semana passada eu fui tomar um drink com a Raquel. Fiquei como sempre impressionada com suas ideias, seu jeito firme e visionário de pensar nos negócios e a sua visão de futuro. Aproveitei para pegar algumas dicas:
Para ela, o set mais marcante de todos os tempos da festa foi da DJ Volvox, no Boiler Room feito para celebrar os 5 anos da Pornceptual. E o Jeff Mills é o DJ sonho de consumo para ter nas pickups da festa.
O Sammlung Hoffmann, uma coleção de arte privada no apartamento da Sra. Erika Hoffmann em que ela abre as portas semanalmente para visitação pública, é para a Raquel o lugar imperdível para quem vem à Berlim pela primeira vez.
A DJ para ficar de olho é a The Lady Machine e sua performer favorita é Olympia Bukkakis.
A Raquel tem apenas 27 anos, um mundo pra abraçar, e carrega com ela uma bagagem muito superior ao tempo em que está na estrada. Para conhecê-la melhor é só se jogar aqui e aqui. Se você fala alemão, pode ouvir esse podcast com ela feito pelo Electronic Beats.
Burning Man
Eu ainda não tive o privilégio de ir ao Burning Man. Fui em dois Afrikaburn, edição regional que reúne anualmente 15 mil pessoas num deserto a algumas horas de Cape Town, e posso afirmar que participar do evento é “life-changing”.
Sou fascinada em como o Burning Man tem moldado o mundo em vários aspectos, como na arte e na cultura, desde seu surgimento em 1986 onde uma comunidade experimental, distópica e temporária se forma no meio do deserto reunindo hoje 80 mil pessoas.
Mas crescer tem seu preço. O Burning Man tem levantado várias questões, desde o problema de sustentabilidade com as queimas que promovem até sua essência arraigada na contracultura que muitos consideram ter sido ameaçada nos últimos anos após ter a “invasão” por bilionários e influencers, que passaram a frequentar a Black Rock City.
O novo documentário “Burning Man: Art on Fire” resgata essa essência ao apresentar alguns dos artistas que anualmente dedicam seu tempo para, voluntariamente, criar megas instalações de arte para o festival. O documentário foi gravado em 2018 após a morte repentina de um de seus fundadores, o Larry Harvey, e foi produzido como uma grande homenagem ao legado que deixou. Vale muito a pena assisti-lo.
O jornalista e escritor Neil Shister, autor do livro “Radical Ritual: How Burning Man Changed the World”, fez uma ótima análise sobre a última edição virtual do BM. Ele é bem otimista sobre o futuro em que o avanço das tecnologias possibilitará simular as sensações únicas que temos no Burning Man. São elas que nos causam as maiores transformações pessoais após participar do evento: a vulnerabilidade, o desconforto e a gratidão. Para ele, a edição Multiverse foi o primeiro passo para levar a magia da playa no deserto para o mainstream, mas ainda tem bastante chão para chegar lá.
Caso queira se aprofundar no novo universo virtual do Burning Man, eles criaram a plataforma Kindling, que está com vários eventos planejados incluindo lançamento de um novo documentário, o Mirage.
Aliás, quem aí lembra do Sasha (DJ)? Pois é, eu não ouvia falar dele há muito tempo até ver esse set que fez no Multiverse, do último Burning Man.
Um pouco mais de música & arte
Rita Lee para a revista Claudia. Foto: Guilherme Samora
Sabe qual foi a diva pop que mais vendeu álbum nos últimos 25 anos? Pois é, a Britney! Tombou todas… a segunda, Adele, ainda passa um pouco longe para alcançá-la.
Já no Brasil, Rita Lee é uma das artistas que mais venderam discos no país. Foram 55 milhões de cópias! Ela está divina na capa da nova Cláudia e na entrevista que deu à revista em que fala sobre sua paixão pela jardinagem e pelos animais, sobre ter abandonado os palcos, mas nunca a música, inclusive afirma ter material suficiente para lançar uns 3 álbuns, mas a preguiça não deixa, e seu luxo atual: tirar uma soneca toda tarde.
O podcast Sounds, da BBC, lançou o programa “Ecstasy: The battle of rave” para contar a história da época em que o acid house tomou conta da Grã Bretanha mudando o destino de muita gente. Tem até uma mixtape maravilhosa só com os melhores hits do acid house anos 80 e 90 feito pelo DJ Graeme Park, considerado um dos fundadores da cena rave. Aliás, tem gente defendendo que a palavra “rave” está perdendo seu sentido, mas ela nunca esteve tão em alta nos últimos tempos como agora. Quem quiser conhecer um pouco mais a história das raves, eu recomendo esse documentário que me tirou umas lágrimas emocionadas, “Everybody in the Place: An Incomplete History of Britain 1982-1992”.
O Mutek Montreal acabou, mas as palestras do Fórum estão disponíveis online. Para quem se interessa pelo futuro da música pós-pandemia, a jornalista Cherie Hu fez um keynote sobre a mudança positiva que a pandemia trará para a indústria da música. Recomendo demais!
Inhotim ganhou uma série na Netflix com 13 episódios sobre o parque-museu, o processo curatorial, as obras, as galerias e os artistas. Um dos episódios é com o Rirkrit Tiravanija, artista que mencionei lá em cima que eu não lembrava ter visto sua obra em Inhotim.
A Grimes, a FKA Twigs e o J. Balvin são alguns dos convidados para a nova temporada do Art Zoom, programa educativo do Google Arts & Culture em que artistas pop dão discorrem sobre obras específicas. São aulinhas de no máximo 5 minutos cheias de curiosidades.
Peraí que as rapidinhas estão aqui:
Você já assistiu “The Social Dilemma”, na Netflix? O documentário joga na nossa cara o que a gente já sabe: O quanto as redes sociais nos manipulam e criam mecanismos cada vez mais sofisticados para ganhar nosso tempo e dados. Participam dele alguns dos principais nomes que contribuíram bastante para chegar onde chegamos com ela (e hoje se arrependem). Como disse Tristan Harris no doc: “50 programadores, todos homens brancos de 20 a 35 anos, tomam decisões que afetam 2 bilhões de pessoas em todo o mundo”. A vontade é sair de todas as redes enquanto os créditos sobem, mas seguimos nelas.
A Gama publicou o especial “Viu a minha mensagem” sobre conversas. Não há a menor dúvida que o WhatsApp mudou drasticamente a forma como conversamos, inclusive foi ele o app mais utilizado durante a pandemia. O WhatsApp aproximou todo mundo, quebrou barreiras e entrou em outras esferas sem pedir licença, até as pessoas mais avessas à tecnologia não vivem hoje sem o “zap”.
Nunca pensei em como os baralhos do tarô refletem uma visão branca, cis e patriarcal do mundo, mas finalmente ele está se tornando mais inclusivo.
Música em Casa é uma nova newsletter de música esbanjando afeto semanalmente na sua caixa de entrada.
Bem interessante essa análise sobre o impacto da pandemia de acordo com cada geração feita a partir de um compilado de vários estudos realizados nesse período. A minha geração, a X, pelo jeito é a mais preparada: “Essa geração aprendeu desde a infância a se ocupar nas horas após a escola, antes que seus pais voltassem do trabalho. Portanto, o gerenciamento de muitas demandas nesse momento é quase uma extensão do que sempre viveram: cuidados com si mesmos, o futuro incerto e a necessidade de adaptação no trabalho, bem como os cuidados os filhos e seus pais idosos.”
Saudades da moda dos anos 90? A Nylon listou os melhores filmes feitos na década para matar as saudades.
Quantas escritoras negras você conhece? A Elástica fez uma ótima lista para deixar nossas leituras mais diversas.
Anota aí: O Afropunk fará sua próxima edição online sob o tema “Planet Afropunk: Past, Present and Future is Black”, nos dias 23, 24 e 25 de outubro.
Para apaixonados pela new wave como eu, a NME fez uma lista caprichada com 15 álbuns que marcaram a época.
Andei bem entusiasmada com a nova fase do teatro que surgiu no Brasil durante a quarentena, mas a real é que ela não está se sustentando.
Já ouviu falar no meme da gentrificação da fonte? Eu não tinha ouvido, mas já tinha percebido a “tendência”.
Esse é O ano da minha musa Roísin Murphy. Ela foi uma das artistas que me entreteve bastante durante a minha quarentena. <3
Opa, desculpem-me o atraso, mas a última semana foi movimentada. Eu ainda estou me readaptando a trabalhar com vários projetos ao mesmo tempo, fazer a newsletter e, claro, explorar Berlim. <3
Tchau… :)
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