Espiral #29: Sustentabilidade e autoconhecimento
Wendy Carlos, Lil Nas & Roblox, Malía, Billie Eilish, trabalhar com o que ama (ou não), distopia e utopia
Trilhas sonoras para hoje: essa lindeza de show audiovisual do Max Cooper no AVA Festival feito dentro de uma igreja em Belfast e o álbum Heavy Doors, da australiana Harmony Byrne, que eu tive o prazer de conhecer no SXSW e me apaixonei por sua atuação visceral no palco.
O Ola chegou um dia em casa com vários pães diferentes nas mãos. Estranhei a quantidade até ele me contar que uma funcionária do nosso supermercado vizinho tinha dado para ele ao invés de descartá-los. Não entendi muito bem a história até o dia em que fui deixar umas coisas no lixo do meu prédio e me deparei com uma mulher muito bem vestida revirando a lixeira de biodegradáveis.
Ela olhou pra mim, abriu o sorrisão e soltou “fico indignada com esse desperdício todo, olha como esses legumes ainda estão ótimos”, enquanto me levantava uma abobrinha e a apontava para mim. Foi aí que soube que o supermercado vizinho descarta seus alimentos vencidos no meu prédio. Aproveitei e espiei também. Saí de lá com um avocado na mão que descobri quase em perfeito estado quando eu o parti ao meio na cozinha de casa.
Porém, o “dumpster diving”, aka revirar o lixo, é proibido na Alemanha. Recentemente, duas jovens alemãs foram condenadas a serviços comunitários e a pagar uma multa de 225 euros por terem “roubado” alimentos descartados por um supermercado. O desperdício de comida é um problema aqui como é em vários lugares do mundo. A Alemanha joga fora 18 milhões de toneladas de alimentos anualmente, o equivalente a 55 quilos de comida por habitante.
Algumas alternativas têm sido criadas para driblar o problema, como o Sirplus, uma rede de supermercados que vende produtos prestes a vencer ou vencidos, mas ainda possíveis de serem consumidos. Hoje já são seis lojas em Berlim.
Assim como o Brasil tem o Comida Invisível, aqui temos o Food Sharing para doação de alimentos, e o Too Good to Go, que reúne variados estabelecimentos, incluindo restaurantes, vendendo alimentos que seriam descartados.
Em Berlim, tem muita coisa para aprender sobre o lixo e sobre o descarte de coisas que não usamos mais. Eu tenho passado por uma reeducação de reciclagem desde que me mudei para cá.
Como turista eu não tinha reparado na quantidade de coisas que são deixadas nas ruas, mas morando aqui você se choca com a infinidade de roupas, móveis, brinquedos, eletrodomésticos, louças, livros, etc., que são deixados todos os dias por todos os lados. Regras existem, mas ainda estou aprendendo sobre elas. Há caçambas específicas para doar roupas, por exemplo, para ONGs (ou lojas “second hand”). São 1,6 milhão de toneladas de roupas doadas anualmente no país.
Passei a bisbilhotar essas caixas deixadas nas ruas. Com isso eu consegui meu jogo de seis taças de champagne na caixa original na entrada do meu prédio, um par de taças de cristais de licor dos anos 1970, potinhos de vidros para sobremesa, afinal nada que uma máquina de lavar com água a 70ºC não desinfete, além de bolsa, livros, revistas e um ventilador de pé novinho, que usei para presentear uma amiga que reclamava do calor.
Quer ver um pouco do que encontramos por aí? Espia o perfil dessas duas fashionistas que moram em Berlim e viraram notícia ao usarem somente roupas encontradas na rua.
Não é permitido deixar móveis, colchões, sofás, etc., por aí, mas as pessoas largam na calada da noite. Já vi de tudo, incluindo guarda-roupa e geladeiras com o aviso “está funcionando”. Tem até perfil no Instagram dedicado aos colchões, que estão em todos os lugares, mas esses raramente acabam na casa de alguém. Foi a partir desses móveis abandonados que nasceu o projeto “Benching Berlin”, por exemplo, que constrói mobiliário público a partir deles para ocupar espaços ociosos da cidade.
A mais nova investida em Berlim para dar conta do volume de objetos descartados foi a abertura da B-Wa(h)renhaus, um projeto temporário que ocupa um andar inteiro do shopping Karstadt, em Neukölln, vendendo somente produtos de segunda mão. Se o piloto der certo, serão abertos quatro novos espaços similares na cidade. O projeto faz parte do plano lançado pelo governo de Berlim, que visa zerar o desperdício na cidade até 2030 e do Re-Use, uma plataforma criada para promover workshops, discussões, concursos e divulgar projetos de economia de circular.
Seguindo o mesmo conceito, o NochMall é uma grande loja de departamentos que também só vende produtos de segunda mão. Dois terços de sua mercadoria vêm de pátios de reciclagens municipais (um deles fica atrás da minha casa e é surreal as filas diárias de carros para descarregarem materiais por lá) e um terço são doações.
Em Berlim, é possível viver somente à base de produtos de segunda mão e com paciência, você consegue até montar sua casa inteira sem gastar nada.
Um outro projeto que gosto é o Frea, um restaurante que não desperdiça absolutamente nada. Eles trabalham somente com produtos orgânicos de produtores locais que não usam embalagens plásticas. Tudo o que está no menu é produzido na casa, desde o pão caseiro feito com leite de avelã à kombucha e o chocolate. A sobra de alimentos é processada numa máquina de compostagem e devolvida para seus fornecedores.
A Ikea, como foi recentemente anunciado, está comprando móveis usados de terceiros (pagando em créditos para usar na própria loja) e vendendo produtos da marca em segunda mão por aqui. A H&M abriu em 2019 uma loja conceito no Mitte em que todos os produtos são selecionados a dedo, além de vender produtos, roupas e acessórios de marcas locais e veganas, conta com um pequeno brechó com ótima curadoria.
Além de todas essas iniciativas, não dá para deixar de mencionar os flohmarkts (mercado de pulgas), que acontecem em diversos lugares de Berlim no fim de semana, onde com muita paciência é possível encontrar pequenos tesouros de várias décadas do século XX (ou até anterior).
Hoje se me perguntarem qual é o estilo de moda de Berlim, eu responderia que é o “de brechó”. Antes quando eu pensava no estilo dos berlinenses, me vinha à cabeça todo mundo de preto, mas morando aqui a gente vê que não é bem assim. Tem o povo que só usa “preto e azul escuro” (monocromático sempre, não pode misturar), mas tem muita gente colorida e estilosa que só usa roupas de segunda mão. Eu tenho cada vez menos vontade de comprar roupa nova. Até faço meu rolê nas minhas lojas favoritas, mas só saio com algo nas mãos se estiver aquela promoção que não dá para dizer não e eu realmente amar a peça. Minha relação com o consumo está mudando radicalmente.
Morando aqui eu me dei conta da minha alienação em relação à sustentabilidade. A gente se preocupa, debate, mas nem sempre faz muita coisa pelo assunto. Por mais que em São Paulo eu achava que fazia a minha parte, agora eu percebo que não fazia praticamente nada.
Ao ler essa entrevista com a ativista e engenheira ambiental Aline Matulja sobre a sustentabilidade e o autoconhecimento, eu entendi finalmente porque falhei tanto: “A primeira coisa que falo é que a sustentabilidade não deve se tornar uma questão moral. Em vez disso, devemos procurar ter autoconhecimento, olhar dentro de nós mesmos, reconhecer a vulnerabilidade e agir a partir deste local.”
My love theme: Music
Wendy Carlos recentemente ganhou a mídia por conta da publicação de uma biografia sua não autorizada escrita por Amanda Sewell - e também porque finalmente estão colocando os holofotes nas mulheres pioneiras na música eletrônica. Depois de onze anos em silêncio, ela ressurgiu com uma nota em seu site alegando que ninguém a entrevistou e que a história contada não condiz com a sua.
Carlos está com 80 anos, é a pioneira no uso de sintetizadores, foi quem plugou Bach nas máquinas, além de ter assinado trilhas sonoras de filmes como Laranja Mecânica, O Iluminado e Tron (1982). Antes dos álbuns Zeit (1972), de Tangerine Dream, e Discreet Music (1976), de Brian Eno (1976), serem lançados marcando o início da música ambiente, Wendy Carlos lançou, ainda sob o nome Walter Carlos, Sonic Seasonings em 1972, que a coloca como pioneira no estilo.
Este artigo do Guardian traça um belo perfil dela e nos deixa com uma boa questão sobre como uma mulher pioneira da tecnologia tem resistido bravamente à era digital.
A música é milagreira e mágica mesmo. A maioria de vocês deve ter visto o vídeo dessa bailarina com Alzheimer reagindo ao tema de Cisne Negro. Marta, a senhora em questão, faleceu em 2019 e o vídeo viralizou após ter sido publicado pela organização “Música para Despertar”. De acordo com Grace Meadowns, do Music for Dementia, “a memória auditiva pode ser a última coisa que nos deixa porque é uma das primeiras coisas que desenvolvemos, por volta de 18 semanas no útero.” Além de liberar dopamina e nos deixar felizes, a música é uma das poucas armas para lidar com o avanço do Alzheimer e tem sido elemento fundamental para lidar com o confinamento. Para quem se interessar pelo assunto, eu recomendo o livro “Alucinações Musicais”, de Oliver Sacks, que estou devorando por aqui.
Eu não conhecia a Malía, de quem primeiro me apaixonei por conta de sua entrevista e depois pela sua música. A cantora pop tem 21 anos, nasceu na Cidade de Deus, tem bastante coisa para falar e “quer voar alto, mas se preocupa em saber sempre onde está o chão.”
Sua fala sobre racismo e empoderamento foi cirúrgica e me trouxe reflexões: “Esse lance todo de empoderamento acho um pouco cansativo. Não gosto dessa palavra ‘empoderar’, que significa dar poder. Eu acho isso um pouco papo de colonizador. ‘Sua música empodera’. Minha música não empodera. Quem sou eu para dar poder às pessoas? Minha música conscientiza as pessoas de que o poder está com elas e existem ferramentas.”
Quem me emocionou também com numa entrevista foi a Ludmilla, que nasceu na Baixada Fluminense, se inspirou em Beyoncé e Rihanna para chegar onde chegou, foi a primeira cantora negra da América Latina a alcançar a marca de 1 bilhão de streams só no Spotify e está conquistando o mundo. Voa, Ludmilla!
A grande live sensação de 2020 foi o Travis Scott, no Fortnite, que eu e todo mundo já falou exaustivamente a respeito. Ninguém tinha chegado perto até o Lil Nas estrear no game Roblox. Foram 4 shows num final de semana reunindo 33 milhões de visualizações (Scott teve 45,8 milhões em 5 shows). Esse foi, assim como o de Travis Scott, um dos shows que exploraram todas as possibilidades no universo dos games. Um dos pontos interessantes é que a cada música, os jogadores eram transportados para um ambiente totalmente diferente, todos em cenário faroeste. Para ter um gostinho de como foi, eu recomendo esse vídeo.
Quem quiser estar por dentro do que está rolando de novidades musicais, o FFW lançou a coluna semanal Supernova dedicada aos lançamentos, clipes e novos artistas.
Incrível esse vídeo infinito da Billie Eilish, criado após “bad guy” ter 1 bilhão de visualizações. O vídeo começa com o clipe original e vai trazendo os quinze mil covers feitos por fãs. Sempre que você entrar você terá uma nova edição.
A fofura do dia é o encontro da Nandi Bushell com seu ídolo Dave Grohl.
Work it
Para se inspirar um pouco, eu recomendo a entrevista com a Aretha, que mesmo diante de todas as adversidades que teve na vida, conseguiu se formar em Educação Física, descobriu a paixão pelo montanhismo, trabalha numa empresa especializada em escaladas e decidiu em março que vai escalar o Everest. O custo para a expedição são US$ 70 mil, algo fora da realidade dela, mas ela está tão determinada que está catando lixo reciclável para conseguir dinheiro extra para realizar seu sonho. <3
Este artigo da Refinery29 faz uma excelente reflexão sobre o emprego dos sonhos, que já no título afirma estar morto. Eu persegui por muito tempo o “trabalhe com o que você ama” e esse artigo desconstrói essa visão. Crise vai, crise vem, hoje eu me vejo um pouco livre dessa busca, mas não totalmente porque a gente vira escrava dela. Essa cobrança é cruel demais. Podemos fazer melhor o que amamos, mas será que só é possível ser feliz dessa maneira? Ou será que isso nos deixa mais ansiosos e insatisfeitos mesmo fazendo algo bem e sendo bem pago por isso?
O que eu estou redescobrindo nesse momento da minha vida são os meus hobbies que eu deixei de lado para transformá-los em profissão. Tudo virou trabalho. Está tudo bem você não amar seu trabalho, mas como disse a entrevistada no artigo “Eu não tenho empregos no sonhos, porque eu não sonho em trabalhar”.
Já ouviu falar em “boreout”? É a síndrome do trabalhador entediado e pode ser tão prejudicial como o “burnout”. Pessoas que sofrem de tal síndrome tendem a tentar fugir dela se distraindo em redes sociais, além de ficar mais suscetível a desenvolver vícios, como beber, fumar ou comer demais. Aprenda a distinguir o que é um tédio passageiro e o que pode ser um tédio crônico, pois é possível evitá-lo.
Before you go
Para quem gosta de jogo de tabuleiros, foi lançado o Pandemic Game, em que o desafio é salvar o mundo de doenças.
Um bate-papo super sensível com a Estela May, filha de Fernanda Young, sobre como está sendo lidar com a perda da mãe.
Eu me apaixonei pelos textos do falecido jornalista Geraldo Mayrink quando o Gustavo, seu filho e meu amigo, compartilhou uma crônica sobre sua experiência de voar no Concorde em 1976, de Paris ao Rio de Janeiro. Foi puro deleite! O Gustavo anunciou recentemente o site que criou para homenagear a obra do jornalista com cerca de 900 artigos que são verdadeiras aulas de escrita e de jornalismo. Dá para passar horas por lá lendo seus textos bem humorados. Inclusive deixo como sugestão a entrevista feita com a Elis Regina.
Quem também ganhou um museu digital foi o Itamar Assumpção com sua discografia, exposições e muito material sobre sua vida e obra.
A Lidia Zuin, que estuda o futuro, escreveu sobre a saturação da distopia e o surgimento do “solarpunk, um novo tipo de ficção científica que apresenta tecnologias mais sustentáveis, diferentes das visões sombrias do cyberpunk” num momento em que o mundo parece precisar mais de utopia e menos distopia.
Na temática cyberpunk, foi anunciada a trilha sonora do game Cyberpunk 2077, que sai em dezembro, com uma lista de artistas que parecem saídos de filmes distópicos.
Coincidentemente hoje a newsletter The Brief trouxe uma análise sobre o Transumanismo e a Vida Eterna que se conecta com o texto da Lidia.
Adorei essa lista do NYTimes com os 25 melhores atores desse novo século, que está bem diversa incluindo a Sônia Braga nela.
O Brooklyn Vegan selecionou 25 filmes e/ou documentários sobre música para assistir na HBO e a New Yorker apresenta 62 filmes que modelaram a arte de filmar documentários.
Para quem gosta de listas, a Elena Ferrante compartilhou seus 50 livros favoritos que conta com Clarice Lispector, Rachel Cusk, Joan Didion, Toni Morrison e Sally Rooney.
A Balenciaga vai apresentar sua coleção Outono 2021 num video game, o Afterworld: The Age of Tomorrow com a coleção ambientada em 2031.
O texto é de 2015, mas continua atualíssimo esse perfil sobre a vida de Grace Jones, uma das artistas mais transgressoras dos anos 1980.
A Aza Njeri nos explica como os conhecimentos ancestrais impulsionam uma vida plena e mais respeitosa com o próximo e o nosso planeta. Para ela, “existimos gritando por liberdade, mas não queremos as responsabilidades de sermos livres.”
O meu amigo do tempo, o Gustavo Nogueira, vai fazer um experimento coletivo para repensar a nossa relação com o tempo no encontro “Nascer do Novo Tempo”, que acontecerá em dezembro em português e em inglês.
O Spotify lançou um podcast para celebrar Vidas Negras apresentado pelo Tiago Rogero. O primeiro episódio conta a história das escritoras Carolina Maria de Jesus e Eliana Alves Cruz. Apenas dê play porque é uma aula sobre a literatura brasileira que não nos ensinaram na escola.
Na minha lista de leitura tem três artigos sobre música para ler que parecem bem interessantes: Um artigo trazendo otimismo para a cena da música eletrônica; outro analisando se a vacina do coronavírus salvará a indústria da música ao vivo e por fim, uma análise sobre o Glitchcore, se é uma estética TikTok, um novo micro gênero ou apenas uma nova interação da arte Glitch?
Cansou? Cola aqui no especial sobre como descansar que a Gama fez.
Tchau e bom fim de semana!
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