Espiral #30: A volta para São Paulo
Tzolkin, Couch Lessons + AI, Ian McEwan, Jocy Oliveira, Lido Pimienta, Clarice Lispector, Susi in Transe, documentários Favela é Moda e outro do Mapplethorpe.
Minha chegada em São Paulo às 18h no Aeroporto de Guarulhos
Meu amigo Geremias, amante da disco e do house, fez uma playlist cheia de felicidade para Espiral. Eu a deixo aqui para alegrar um pouco esse fim de ano tão difícil para todos e nos dar esperança de que 2021 nos traga um pouco da leveza que faltou em 2020.
A volta para o Brasil
Fiquei uma hora na fila para despachar a minha bagagem de Berlim para São Paulo em plena madrugada. Há 11 meses eu não entrava num avião, eu não via a minha família e alguns de meus melhores amigos, e não pisava no meu país. Mesmo tendo passado os últimos anos na estrada, eu nunca fiquei tanto tempo longe daqui.
Aeroporto, esse não lugar tão parecido em qualquer canto do mundo, sempre me causou entusiasmo. Meu coração sempre acelerava emocionado enquanto eu atravessava seu saguão. Eu sempre segui o sábio conselho do Mário Quintana em “A Verdadeira Arte de Viajar”:
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Mas dessa vez não foi assim que me senti. Eu me sentia confusa enquanto me perguntava se estava saindo ou voltando para casa. A ansiedade estava mais alta que o Burj Khalifa e eu me sentia exausta.
Lembrei-me do Alain de Botton, para quem “o aeroporto é um espaço onde temas atuais se encontram, como a passagem do tempo, a coletividade e até mesmo a mortalidade... É o lugar onde nos sentimos na presença da mente do gigante mundo moderno”. Nunca senti esses itens tão interligados e explícitos como naquela madrugada. Perceber tudo isso me deixou ainda mais vulnerável. Eu estava com medo.
Ver pessoas vestidas com roupas de proteção parecidas como as de filmes de ficção científica transitando pra lá e pra cá, me faz achar que o destino final de todos ali era o fim do mundo. E talvez era mesmo.
Atravessei o oceano com umas 400 pessoas coladinhas umas nas outras com a cia. aérea nos empanturrando carboidratos o suficiente para nos manter sonolentos durante nossas 11h20 de voo diurno.
Agora estou em São Paulo lidando com um sentimento ambíguo. Quero estar aqui. Tem sol, tem minha família e os amigos. Mas não quero estar porque aqui me traz à tona algumas coisas das quais eu tenho tentado fugir nos últimos tempos (mas está aí uma boa oportunidade para resolvê-las).
Wi-fi só o 4G do celular, mas como essa newsletter foi muito importante pra mim, tem gerado tanta conversa boa e trazido pessoas incríveis para a minha vida, eu estou driblando a mim mesma, o meu eu que é um outro, para agradecer a cada um(a) de vocês que passaram esses últimos meses comigo, aos que escreveram (rolou até um jantar em Berlim com uma nova amiga que se conectou comigo através da Espiral).
Aprendi bastante, muito sobre mim, porque “escrever a ‘nossa’ história é também um modo de nos livrarmos do passado.” A Espiral tem me ajudado a entender meus anseios e tem me mostrado novas possibilidades do que fazer num futuro breve. Chego hoje aqui melhor do que eu estava em março. Também resgatei temas que sempre gostei e andavam abandonados por aí, conheci novos projetos e me engajei com causas. Tudo brotando daqui.
Se há alguns meses eu me sentia esperando Godot, agora eu vivo o tempo mesmo se estou procrastinando. Sou o homem do relógio de Maarten Baas passando o meu tempo a limpo para vivê-lo diferente. Entendi rapidamente que agora a minha casa não é aqui. Talvez volte a ser um dia, mas hoje não é mais e está tudo bem. <3
O nascer de um novo tempo
Eu falo bastante sobre o Gustavo Nogueira, meu amigo e pesquisador que questiona nossa relação com o tempo, pois é com ele que eu tenho resgatado meu otimismo, aprendido muita coisa nova e encontrado resiliência para viver este ano.
Na última segunda-feira ele promoveu um encontro para começarmos em conjunto o novo ciclo do tzolkin, uma jornada de 260 dias da cosmologia maia. Foi o pontapé inicial de um experimento coletivo para discutir como mudar o agora com um conjunto de recursos (mentalidades e ferramentas) para descolonizar nossa temporalidade a fim de imaginar novas visões de longo prazo para a década. Para essa jornada, o Gust criou o Guilda. O convite para vocês participarem está aqui. Espero ver vocês por lá. :)
Inteligência Artificial
Para encerrar o interminável 2020, eu convido vocês para o European Couch Lessons, um encontro promovido pelo Goethe Institute com 30 sessões simultâneas sobre Inteligência Artificial em 2020. Cada uma delas terá um assunto como tema. O difícil está escolher alguns dos temas para explorar, mas na minha lista tem AI + Dreams, AI + Art, AI + Creativity, AI + Music. O evento acontece nessa sexta-feira, às 13h (horário Brasília e 17h - CET). É gratuito e a inscrição é aqui.
Para quem se interessa pelo assunto, eu recomendo o livro “Máquinas como eu”, de Ian McEwan, em que o autor especula quais seriam os efeitos da inteligência artificial no nosso dia-a-dia. Ao invés do mundo distópico, temos Londres dos anos 1980 e um ambiente doméstico comum nos remetendo ao estilo de Black Mirror. A Margaret Thatcher ainda está no poder, mas aqui ela perdeu a Guerra das Malvinas. Os Beatles estão vivos, assim como o Alan Turing, que é um dos personagens do livro. O tema que permeia o romance é a nossa consciência, a moral e “a ideia de que mentes computacionais deveriam se assemelhar a mentes humanas começa a parecer tão fatalmente arrogante quanto [antes de Galileu] foi a astronomia geocêntrica”. Leitura bem envolvente, ótima para dias de férias.
Rapidinhas e uma breve despedida
Coisas para compartilhar não faltam depois da minha longa ausência aqui, mas estou com um teclado que aparentemente quis me dar folga e desabilitou a letra “r”. Logo essa letra tão presente. Para escrever essa newsletter eu estou usando Ctrl C+Crtl V antes de levá-lo para a assistência técnica. Perdoem-me se faltar “r” em alguma palavra. Deixo dessa vez algumas das minhas últimas leituras e descobertas:
Se estivesse viva, Clarice Lispector teria completado 100 anos no último dia 10 de dezembro. Para celebrar a data, o IMS criou um site bem completo sobre a vida e obra de Clarice (pena que a navegação é bem chata), contando também com as ótimas aulas que o IMS promoveu sobre ela esse ano.
Morri de nostalgia e saudades dessa época com esta matéria sobre o Susi in Transe, provavelmente um dos clubs mais underground que São Paulo já viu. O Susi existiu no início dos anos 2000, recebeu alguns dos maiores DJs do país e até a Ellen Allien animou a pista desse saudoso inferninho.
Todo mundo está falando sobre o documentário “Emicida: AmarElo - É tudo pra ontem”, na Netflix. Eu reforço o coro, pois é uma das melhores coisas que vi esse ano. É uma verdadeira aula de Brasil real cheio de referências culturais e musicais.
2020 foi o ano em que reavaliamos o que é essencial, não apenas para nós, mas para o mundo. O Mashable fez uma lista muito boa sobre o que fica pra trás e o que se tornou essencial desde que começou a pandemia.
Já ouviu falar em Andreas Pavel? Se hoje a música pode nos acompanhar pra onde nós vamos, ele é um dos responsáveis. Pavel, nascido na Alemanha mas criado no Brasil, é o inventor do walkman, lançado pela Sony em 1979. Sua história é genial e começou muito antes disso no início dos anos 1970.
A Quatro Cinco Um publicou uma lista com os 50 melhores livros lançados no Brasil em 2020, cada um indicado por um(a) resenhista/colabor(a) do site. Lista ótima para quem está em busca de próximos livros.
Curte ler livros de música? A Pitchfork fez uma lista com os 15 melhores lançamentos do ano. Eu estou com “Wagnerismo” (Alex Ross), “Fangirls: Scenes From Modern Music Culture” (Hannah Ewens) e “Kim Gordon: No Icon” por ela mesma na minha lista.
Mas no momento eu estou lendo “Diálogo com cartas”, de Jocy Oliveira, uma das pioneiras da música eletrônica que teve sua obra destruída pela ditadura e, claro, como mulher foi ignorada pela crítica. A compositora trocou cartas com artistas como Igor Stravinsky, Robert Craft, John Cage, Luciano Berio e Karlheinz Stockhausen. O livro tem numa edição belíssima e é uma pequena obra-prima. Jocy foi uma das convidadas do festival Novas Frequências e a entrevista pode ser assistida aqui.
O João Brasil me apresentou a Lido Pimienta num coquetel no SXSW em 2018. A seu convite, fui assisti-la no KUTX Live e passei a segui-la desde então. Lido é colombiana, mas baseada no Canadá. Ela recebeu esse ano duas indicações ao Grammy e deu uma ótima entrevista para a Elástica em que fala sobre a mulheres latinas na música, prêmios, pandemia, processo criativo e a maternidade. Seus figurinos extravagantes e coloridos, sua música potente e criativa podem ser conferidos em seu último álbum (e o melhor de sua carreira na minha opinião) Miss Colombia, onde mistura música eletrônica com elementos dos ritmos colombianos de um jeito único.
Eu sou uma das várias pessoas apaixonadas pela cultura do Japão. Se você é uma das pessoas desse grupo, eu recomendo o curso “A Introduction to Japanese Subcultures”, gratuito no Future Learn.
Está rolando o Festival Internacional de Documentários de Moda, o Feed Dog Brasil 2020, até dia 20 de dezembro. São 16 filmes como o elogiado “Favela é moda”, de Emílio Domingos, e o “Mapplethorpe: Look at The Pictures”, de Fenton Bailey e Randy Barbato.
Uma lindeza esse desfile da Saint Laurent (Women’s Summer 21) feito nas dunas de um deserto com uma trilha maravilhosa assinada pelo Sebastian. Fiquei sem fôlego aqui!
Deixo aqui as músicas que mais ouvi 2020 (prepare-se pra muita estranhice) e as que eu deixei passar batida, que resultou numa playlist muito boa.
É isso! Espero que 2021 nos traga paz e esperança. 2020 foi um ano difícil, exaustivo mas de grandes lições para quem se dispôs a aprender. Novamente obrigada por estar aqui comigo.
Volto em algum momento em janeiro com a Espiral e a Amiga Genial. Aceito até lá opiniões sobre as newsletters, sugestões e me contando o que gosta, o que não gosta, o que sente falta e o que eu deveria explorar mais. <3
Se você gosta dessa newsletter, indique para as amigues. Para se cadastrar é só acessar lalai.substack.com. Se caiu por aqui recentemente, me dê um alô se apresentando, que eu vou adorar saber quem é você. Comentários, feedbacks, dicas e críticas são super bem-vindos.