Espiral #33: As coisas que eu gosto
Daft Punk, Jeff Mills, Paula Anna Strom, NFTs, Páginas Matinais, Torto Arado
Trilha sonora ensolarada pra essa newsletter: Rádio Kangaça com House of Pris
Os últimos dias ensolarados com temperaturas beirando os 20 graus me trouxeram um frescor que nem o Brasil me proporcionou na minha última visita. Ele gritou “deixa ir” pra tudo o que me impedia de seguir em frente. Abracei o recado com fervor.
Os dias estão mais longos, mais suaves, mais cheios de sorrisos. A trilha sonora é de festival de música acontecendo no auge do verão em qualquer país do mundo. O desejo é de estar na rua, só nela. Caminhar sem destino com uma cerveja gelada na mão.
No domingo passeei com amigos num parque em Friedenau, bairro de Berlim que conheci somente agora. O clima era de alegria. A pandemia parecia à primeira vista ser mero devaneio coletivo a ponto de eu baixar a guarda emocional um pouquinho e fingir que era um domingo normal. Meu sorriso era tão grande que quase não cabia no rosto. Meus olhos brilhavam tanto que eu podia sentir a luz extra que emanava deles. Fiz até uma selfie pra ter certeza de que não era cisma boba.
As mesas de pingue pongue estavam concorridas como são no verão. A fila no banheiro era enorme por conta dos 3 minutos que levava para se auto-higienizar, mas a gente entrava nele sabendo que ali o vírus não ia nos pegar. As crianças pedalavam velozmente suas bicicletas por grandes poças de água rindo alto por não terem atolado na lama. Senhorinhas alemãs com cabelos brancos de algodão se moviam graciosamente numa sessão de tai chi chuan. Piqueniques espalhados e gente meio pelada encostada nos cantos com sorrisos bailando nos rostos.
Compramos maionese com batata frita e cerveja com gosto de verão para comer sentados num cercadinho enquanto planos fazíamos para, quem sabe, passar uns dias em Portugal, onde é mais fácil e barato tirar a carteira de motorista europeia. E, claro, porque tem sol. Mas aí deixamos os planos de lado porque agora viajar não é uma opção. Rimos e soltamos um “ah, em breve, em breve”.
Um lago se descongelando nos esperava pelo caminho com cantinhos disputados à beira d’água. Nos jardins à sua volta, algumas folhas verdes e flores surgiam ousadas fazendo todos sacarem as câmeras dos seus celulares gritando: “Olha!! Nem é primavera e já tem flor nascendo.”
Para mim, nascida em cidade grande, tudo isso me encanta. O maior deleite do último ano foi aprender sobre o tempo da natureza e a viver com ele. Eu passei a amar o outono, o inverno, a primavera, o verão. Sei exatamente onde o sol se põe durante o ano todo. Sei também os dias que a lua acena pra mim na janela.
A cozinha virou meu playground onde aprendi a sazonalidade dos alimentos. Agora sei quando chega o morango, o aspargo, a uva, as berries, o figo, a abóbora. Só o avocado, meu deslize e crime ambiental, foge à sazonalidade me visitando com frequência. Mas planejo corrigir tal erro. Em casa os vasos já ganharam flores coloridas e o manjericão, agora mais ajeitado e pomposo, baila fresquinho tomando sol que penetra suas nervuras e o limbo.
Os dias ensolarados prometem temperaturas mais altas e eu planejo tirar a roupa de praia da gaveta. Mas os mais treinados avisam que nessa época do ano dias de primavera são como um paciente terminal. Tem uma melhora, mas aí do nada vem a piora, o fim. Recolhemo-nos chorando de saudades até que, como num milagre, os dias de sol renascem. O tempo, esse levado, continua a brincar.
Mas o sol, ah o sol, ele volta e dessa vez ele fica.
One more Time
Não há como não falar do Daft Punk, que tanto alegrou nossas pistas, tirou muita gente do fundo do poço e causou comoção ao anunciarem oficialmente o término da dupla após 28 anos de estrada. Acho que One More Time foi a primeira música deles que ouvi, mas não tenho certeza. Eu só sei que em 2006 eu passava a noite num ônibus da Viação Cometa para me inebriar no show inesquecível que eles fizeram no Tim Festival. Foi uma hora impaciente de espera que esquecemos tão logo soltaram os primeiros acordes de Robot Rock de uma pirâmide irradiando luz para todos os lados com dois “robôs” atrás. Foi loucura, gritaria e confusão! Depois disso, o Daft Punk ganhou de vez meu coração, esteve presente em todos os sets que toquei por anos e é sempre minha pílula de alegria pra fugir dos dias mais sombrios.
Eu gostei do vídeo de despedida mas, como disse uma amiga, é bem provável que é cena editada de Electroma. Eu, na real, já sentia falta deles desde o lançamento de Random Access Memories (2013) que nos colocou em modo de espera por uma nova turnê que nunca aconteceu. #VoltaDaftPunk
Deixo aqui um texto com dez curiosidades sobre o Daft Punk publicado no Music Non Stop e outro com segredos de estúdio.
Don’t Stop the Music
Em Berlim as coisas não andam muito bem ainda. Estamos batendo o nº 60/100k nas infecções diárias. Teme-se uma terceira onda, mas as escolas já reabriram e na segunda-feira cortar os cabelos com profissionais será possível. O Clubcomission Berlin (a nossa prefeitura da noite) avisou que os clubs possivelmente não reabrem em 2021, porém há chances das festas ao ar livre voltarem a acontecer como no último verão. Por aqui tudo continua fechado, sem muita novidade e a vacinação anda a passos lento. Tudo que temos é a primavera chegando e algumas diretrizes feitas por cientistas alemães para possibilitar o retorno gradual de eventos culturais e esportivos no país.
O Reino Unido está com novo plano de saída do lockdown. É um dos poucos países europeus otimistas no retorno dos festivais de música ainda em 2021. Os festivais Reading e Leeds estão confirmados para outubro. O Primavera Sound, em Barcelona, também anunciou o “Nits del Coliseum”, um ciclo de shows ao vivo entre 26 de abril e 2 de maio.
Na contramão dos prejuízos causados pela pandemia, a sul-coreana Big Hit Entertainment anunciou um lucro operacional de US$128,4 milhões em 2020, seu maior resultado desde sua fundação. O Big Hit é liderado por artistas como BTS, Seventeen, Tomorrow x Together e Enhypen. Temos bastante pra aprender nessa indústria do K-Pop.
O Jeff Mills lançou uma revista online, a “The Escape Velocity”, projeto que nasceu durante a pandemia. A revista é super bem produzida, mas me incomodou o fato de que nas 92 páginas não há artistas mulheres retratadas (ou está muito disfarçada). Tem um ótimo texto escrito pela Imani Mixon e entrevistas feitas por jornalistas mulheres, mas só. Aprendemos na pandemia a atentar sempre se há diversidade nas coisas que fazemos, mas em sua nova empreitada editorial, Mr. Mills falhou ao falar sobre o futuro e o espaço sem projetar a figura feminina neles.
Já ouviu falar sobre a Pauline Anna Strom (1946-2020)? O Miojo Indie definiu bem seu estilo: “Nascida cega, Strom encontrou na música uma forma de interpretar o mundo a própria volta. São canções marcadas pelo desenho torto dos sintetizadores, estruturas inexatas e ambientações que se revelam ao público em uma medida própria de tempo, sem pressa.” Ela produziu diversas obras na década de 1980 antes de se afastar da indústria da música. Seu retorno se deu em 2017 com o lançamento de uma coletânea e o primeiro trabalho inédito desde então, “Angel Tears in Sunlight”, foi lançado no dia 19, após a morte de Strom. Para quem passou décadas sem produzir nada, é espetacular ver o resultado de seu último trabalho. Belo, hipnótico, atual, capaz de nos transportar para um outro tempo, talvez o futuro. Aqui um ótimo perfil da artista traçado pela DJ Mag.
Deixo aqui algumas referências bem bacanas de eventos virtuais produzidos para experiências mais imersivas. E também um ótimo episódio do podcast 22000 pés sobre o futuro da música ao vivo com o Coy Freitas.
Obsessão: NFTs (parte 2)
A notícia que mais me chamou a atenção nesta semana foi a venda de um NFT (Token não fungível e/ou cripto colecionável) contendo um gif de um gatinho por 300 ETH (valendo hoje US$ 480 mil). Estão rolando várias discussões pra entender se os NFTs são apenas um hype passageiro ou vieram pra ficar. Para quem quiser entender um pouco melhor o conceito, eu sugiro a leitura desse texto (português) e esse outro (inglês).
Uma dúvida que martelou por aqui era sobre o direito autoral da música de um NFT. Afinal, se eu compro um NFT, o direito autoral da música é meu? Participei de um workshop focado em NFT na segunda e a resposta foi não. Quando o artista lança um NFT ele precisa especificar o que está vendendo. Os direitos de uma música será do comprador se isso for especificado como no caso do produtor Jacques Greene. Ele disponibilizou o publishing rights (e não o master) da música que vendeu por cerca de US$ 21 mil. Ele dá a propriedade ao comprador de publicação da música, mas o artista vinculou isso à sua aprovação. É, combinado não é caro.
O que aprendi sobre o NFT no mundo da arte (e agora música): todo mundo pode ver, mas apenas uma pessoa pode ter. Quanto mais pessoas verem, mais o NFT se valoriza. Exemplo: quanto mais o gif do gatinho for compartilhado, mais ele terá valor.
Mas já tem várias discussões também acontecendo por conta da emissão de CO2 com cryptoart. Um exemplo é um único artista ter gastado o equivalente a 49 anos de consumo de eletricidade apenas com 2 obras.
No próximo dia 9 de março será lançada o Catalog, novo marketplace de NFTs focado em música. Fica a dica para artistas começarem a explorar as possibilidades nesse universo. A Holly Herndon e o Mat Dryhurst fizeram um episódio no podcast Interdependence sobre o assunto num bate-papo com o Zora, outro marketplace de NFTs.
Estou de partida, mas tenho um cadinho ainda pra compartilhar
Voltei a fazer as Páginas Matinais, parte do processo do livro “O Caminho do Artista”, de Julia Cameron. O exercício tem me ajudado bastante a clarear as ideias, a colocar pra fora incômodos e a resolver pequenas questões existenciais. Para quem não conhece, o livro propõe um curso de 12 semanas com vários exercícios sendo as páginas matinais a tarefa diária. Tenho relatado dia-a-dia no meu Instagram. Para quem quiser entender melhor o rolê, eu escrevi sobre o assunto no Chicken or Pasta.
Pegando carona no assunto acima, eu recomendo essa entrevista com a Julia Cameron e a Elizabeth Gilbert sobre “O Caminho do Artista”.
Em “A doença como metáfora”, Susan Sontag “refletiu sobre como a sociedade enquadra as doenças como metáforas e atribui uma dimensão moral a elas.” O jornalista Philip Kennicott conta o que aprendeu com esse ensaio de Sontag sobre a covid, que “piora coisas que já estão ruins, inflama as coisas. (…) Os críticos e cientistas sociais também tomaram a imagem de empréstimo, observando como a covid inflamava tensões e desigualdades sociais pré-existentes. A doença atacava desproporcionalmente os pobres e as pessoas historicamente marginalizadas, sobretudo as pessoas não brancas.”
A série “Hamilton’s Pharmacopeia” explora os impactos sociais das substâncias psicoativas mais extraordinárias do mundo através da história e da química. São três temporadas produzidas pela Vice TV e disponibilizada no Hulu e Amazon (aluguel). Ainda não consegui ver, mas tá na lista.
Na primeira quarentena que tivemos aqui na Europa em março do ano passado, minha amiga Amanda Foschini fez um diário sobre seu confinamento vivido durante 80 dias em Barcelona, com humor, melancolia e um pouco de acidez fazendo com que todos os dias eu ansiasse pela publicação. O diário virou o livro Respira numa linda edição acompanhada de belíssimas colagens analógicas da Jennifer Simionato e o meu primeiro prefácio da vida. Já está em pré-venda e a Amanda mal se cabe de tanta alegria de finalmente colocar seu primeiro livro (ela tem outro ótimo na gaveta, alô editoras) na rua.
“Ter medo de que, Fabiana?: uma reflexão sobre minha avó, ‘Torto Arado’ e uma língua apunhalada” foi um dos textos mais pungentes que li nos últimos tempos. Ele nasceu como resposta ao Itamar Vieira Junior após o escritor acusar a jornalista Fabiana Moraes de racista por um comentário que ela fez sobre o livro no Twitter.
A Aerolito convidou as 10 maiores empresas de estudos do futuro e inovação do Brasil para promover um curso em que cada uma apresentará seus métodos, visões do futuro e do trabalho. O curso acontecerá entre abril e maio com 12 encontros via Zoom. Eu estarei por lá!
A Cris Lisboa tem aquele poder especial de nos tocar com as palavras. Ela conduzirá oito semanas de jornada na escrita criativa a partir de março, sempre ao vivo aos sábados. Eu já fiz curso com ela e super recomendo!
O artista Abidiel Vicente tem a pop Art como a principal referência em suas obras. Ele, que foi pai há cerca de um ano, lançou uma série para apresentar as técnicas da pop art para crianças. São boxes lindíssimos contemplando três artistas iniciais: Andy Warhol, Robert Indiana e Roy Lichteinstein. Presentão de bom gosto!
Pensando em viajar? Convido à leitura desse ótimo texto “Quando o paraíso vira o inferno”, do Daniel Nunes, para uma reflexão.
O Clubhouse está sendo como plataforma de protestos em países como a Tailândia, onde criticar a monarquia é considerado crime.
É, os anti-vacinas poderão ter problemas futuros para entrar em lugares públicos ou mesmo para fazer viagens internacionais.
Curiosidade: Cachorro “paga” imposto na Alemanha. Os cachorros por aqui são bem educados e bem-vindos em todos os lugares. O país possui regras bem rígidas para controlar o número de animais de estimação, portanto praticamente não existe cão de rua. Só Berlim arrecadou 12,6 milhões de euros em impostos de cão em 2020.
Vou para o sol, mas deixo aqui um pouco de cura Afrofuturista com o poeta sonoro Ibaaku.
Tchau! <3
Se você gosta dessa newsletter, não deixe de indicá-la para outras pessoas. Para se cadastrar é só acessar lalai.substack.com. Se caiu por aqui recentemente, me dê um alô se apresentando, que eu vou adorar saber quem é você. Comentários, feedbacks, dicas e críticas são super bem-vindos.
Acho incrível sua newsletter, sempre com conteúdo gostoso de ler e relevante. Keep walking! :)
Coments
- Prevendo o "grumpy cat" como o próximo GIF milionário! E pensei em quanto dinheiro a @Gretchen pode ganhar com esse lance de NFT, imagina?
- RIP Daft Punk, que não vi ao vivo :(
- Tô louco para ler o "Torto Arado"! Tentando convencer o povo de colocar ele na nossa lista de leitura do club do livro LGBTQIA+ que eu participo, chamado "Lendo Livres".
- Participei dessa benfeitoria do livro sobre Belchior (https://benfeitoria.com/belchior) talvez te interesse.
- E minhas dicas da semana: "Uma Noite em Miami", primeiro filme da Regina King como diretora (disponível aqui no Brasil pela Prime Video), a música linda do filme chamada "A Change Is Gonna Come", vale a versão modernizada na voz do ator Leslie Odom Jr ou a clássica na voz do autor Sam Cooke e o doc "The Forty-Year-Old-Version" da Netflix.
Bjs <3