Espiral #36: Onde você passa mais tempo: no passado, presente ou futuro?
Berlim, vacina, PJ Harvey, NFTs, volta dos festivais, Lorena Portela, Carla Madeira, Isabel Wilkerson, Cecília Young.
Trilha sonora para essa newsletter: Sunday Bath Sessions with Flying Lotus
Conversando com um amigo uns dias atrás, ele me perguntou o que eu mais estou curtindo na minha nova vida em Berlim. São várias as coisas e a maioria está acontecendo porque estou aprendendo a viver o presente.
Li na nova (e ótima) newsletter “Tá todo mundo tentando”, da Gaia Passarelli, a seguinte frase: “Pré-pandemia cheguei a falar uma porção de vezes “vou descer pra praia, passar uns dias aí com vocês”. Não aconteceu porque a vida do paulistano é essa coisa escrota com pouco tempo pra ser feliz”. Quem se identificou? Eu fui sugada por uma máquina do tempo que me levou para os meus dias de ferveção, de muito trabalho e raro tempo livre em São Paulo.
Muitas vezes eu me questiono qual o motivo que me trouxe até Berlim. A vontade de morar fora? A paixão pela cidade? A situação política do Brasil? A busca por novos desafios? Viver uma nova aventura? A chance de um recomeço? Tudo isso, mas não só. Eu estava precisando ser mais atenta, mais presente, mais generosa comigo e com o mundo. Dei-me conta de que havia uma mesquinhez (não relacionada ao dinheiro) me consumindo aos poucos.
Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! Para se ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões. - Rubem Alves sobre ouvir em “Ostra feliz não faz pérola”
Eu aprendi nesse último ano de forma extraordinária o poder da caminhada. Deixei os fones de ouvido de lado, porque eles me levam pra outro lugar no tempo. Passei a caminhar com os ouvidos abertos pro mundo para aprender a ouvir, a observar e, assim, começar a me ver de fora. É a caminhada que tem me ensinado a estar no presente.
Estar aqui e agora também me ajuda a escapar dos dias da marmota tão comuns na pandemia. Não afirmo, porém, que vivo no presente o tempo todo. Algumas boas memórias insistem em me levar a viajar no tempo. Se eu não intervir, no passado eu fico até que alguém me tire de lá.
Não me entenda mal, eu me preocupo com o futuro, mas estou aprendendo a dar o meu melhor agora, aproveitar melhor o agora, focar no agora para que, quando o futuro chegar, ele seja o melhor presente que eu possa ter.
Eu me dei conta do quão moribunda eu passei 2020, o que me levou pra terapia, algo que nunca dei muita bola porque eu sempre me via constrangida nela. Viver na superficialidade sempre foi o meu porto seguro e a mesa de apoio do meu bem-estar.
Mergulhar na minha alma? Você está louca! Eu me dizia enquanto tremia só de pensar no que eu poderia achar por lá. Então fui vivendo feliz olhando pro futuro, fazendo as coisas que eu gosto, viajando bastante e cercada de amigos. O que mais eu queria?
E então eu decidi mudar tudo de uma hora pra outra no ano em que a Terra parou. Junto com a mudança, a meia idade, que sempre esteve no futuro, chegou se sentindo a rainha da sucata me chacoalhando e rindo alto da minha cara.
Aproveitei o combo mudança de país + meia idade + pandemia + falta de trabalho - já que nos últimos anos meu trabalho era basicamente viajar e escrever -, para revirar cada cantinho meu. Fácil nunca é, né? Encontro cada coisa que pulo de supetão achando que a minha terapeuta tá de brincadeira comigo.
Difícil está sendo, mas está sendo lindo também. Descobrir que não precisamos abraçar o mundo e muito menos dizer sim pra tudo é libertador demais. Sincronicidade seja assumida, pois “Primeiro eu tive que morrer”, da Lorena Portela, ter caído no meu colo enquanto o Belchior cantava aqui na sala de casa “No ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, só me provou que é isso mesmo, muitas vezes é necessário morrer pra aprender a viver direito.
Music to my eyes (and NFTs)
Assisti o show da turnê “The Hope Six Demolition”, da PJ Harvey, três vezes em 2016. Fui completamente arrebatada pelo show, tanto que o álbum ficou por um bom tempo como minha trilha sonora enquanto eu rodava o mundo, assim como a Polly fez para produzir esse belo álbum, que contou com várias iniciativas incluindo a produção do documentário “A Dog Called Money”, agora disponível no MUBI (Brasil). Assisti-lo foi um soco no estômago porque me trouxe uma colagem de lembranças bonitas e distantes. Chorei como uma criancinha e depois corri pra ouvir o disco.
A conversa da vez nos corredores digitais é sobre o retorno dos festivais de música. Com um calendário um tanto generoso, vários caminham para acontecer, incluindo o Lowlands, um dos maiores festivais europeus, que teve seus ingressos esgotados em poucas horas. Esse retorno pós-pandemia abre discussões para muitos temas que são urgentes, mas que têm sido ignorados por muitos produtores, como a diversidade de gênero e a sustentabilidade. O Cercle é um bom exemplo de quem trabalha muito pouco a diversidade nas escolhas artísticas que faz, por isso entrei em boicote à plataforma.
Pegando o gancho sobre diversidade, deixo aqui esta ótima lista com artistas não-binários e transgêneros para conhecer.
Estão os artistas solos ocupando os lugares que outrora eram de bandas? Por onde andam as bandas de rock? Achei bem interessante esse artigo que esmiúça sobre o fato dos 30 artistas mais ouvidos em 2020, terem apenas uma banda (o fenômeno BTS), enquanto na última edição do Primavera Sound (quando foi mesmo?) dos 9 headliners, apenas 2 eram bandas.
A pandemia trouxe o fim da música pop como a conhecemos? Gostei desta reflexão sobre a música pop atual, que “hoje tem menos a ver com grandes hinos animados… tendo sido substituída por música menores e mais introspectiva sobre dilemas internos”, como a música da Phoebe Bridgers.
Mas, na contramão do artigo acima, essa parceria do The Weeknd com o Oneohtrix Point Never justamente resgata “os grandes hinos animados” que a música pop produz. Eu estou aqui treinando a letra pra cantar junto ao vivo quando rolar, porque essa esperança de assistir um show está a mil por aqui. O sucesso inigualável que transformou o BTS na maior banda do mundo, um feito e tanto para quem não nasceu num país de língua inglesa, prova que ainda teremos a música pop dominando o mundo por muito tempo. A Rolling Stone mergulhou no universo da banda coreana, que está reescrevendo as regras do show business, para gente entender o que a levou tão longe.
Enquanto isso, Berlim declarou que os clubs são instituições culturais, dando a eles incentivos fiscais e proteção contra desapropriação, algo importante na cidade que tem sofrido tanto com a especulação imobiliária. A Berghain foi o primeiro club a ser reconhecido como instituição cultural lá em 2016.
O ADE tem promovido ótimas conversas online. Na semana passada rolaram dois encontros, um com James Blake para discutir sobre saúde mental e o outro sobre o retorno dos eventos ao vivo, com Luis Justo (Rock in Rio) e Arlen Dilsizian (Nyege Nyege Festival). Aqui está na “listinha para assistir”.
Deve ser muito massa ter sinestesia. O músico irlandês Sam Gellaitry é um dos privilegiados que vê cor no som. Ele fez uma playlist baseada em cores com a música mais azul, mais vermelha, entre outras cores, mas curiosamente ele não vê o amarelo em nenhuma música.
A Cherie Hu fez um excelente overview do mercado da música no universo dos NFTs com cases, protocolos mais usados, tendências e reflexões de um mercado que movimentou cerca de US$ 65 milhões entre junho-2020 e abril-2021 (lembrando que entre junho e dezembro esse valor não tinha sequer batido 2 milhões). A Pitchfork também traçou o perfil de 11 artistas que estão surfando nesta onda.
Seguindo os passos da NBA, que está fazendo sucesso com o Top Shot (momentos da NBA vendidos em formato de figurinhas colecionáveis em NFT), a Live Nation quer também tornar os momentos mágicos dos shows em NFTs. Eu não tenho dúvidas de que será um grande filão também.
A XLR8X lançou seu próprio marketplace de NFTs relacionados à música na plataforma xDAI, ou seja, mais sustentável e com valores de gas fee (o custo das transações incluindo a criação do NFT em si) acessíveis. O eBay também já está vendendo NFTs.
Esse texto sobre a história por trás do boom dos NFTs não tem nada a ver com música, mas foi o melhor artigo que li sobre o assunto. É longuíssimo e chega a ser comovente a história de um dos artistas relatados. Também fiquei feliz em ver a plataforma brasileira Hic Et Nunc mencionada lá, que é uma opção muito mais sustentável que os marketplaces (os maiores) que estão na plataforma do Ethereum.
We are radio signals: Berlim
Eu tomei a vacina AstraZeneca, a única que estava liberada para o público em geral aqui na Alemanha, há mais de uma semana e contei aqui tudo o que rolou e como anda o sistema de vacinação em Berlim. Agora, os grupos prioritários cairão no próximo dia 7 e qualquer pessoa poderá se vacinar com qualquer tipo de vacina disponível. Mas isso não quer dizer que tem vacina pra todo mundo ainda. É necessário conseguir marcar data e isso poderá demorar um pouco.
Outra novidade é que os números de infecção estão caindo, atingindo as metas criadas pelo governo. O resultado é que os museus vão reabrir, o toque de recolher às 22h vai cair e a partir da próxima sexta-feira, os restaurantes, que estão fechados desde o início de novembro, poderão atender nas áreas externas, mas ainda assim será mandatório ter teste negativo feito nas últimas 24 horas (ou o passaporte da vacina pra quem já tem) para qualquer dessas atividades.
Está tão difícil conseguir alugar apartamento em Berlim, que desenvolveram até um game para ilustrar o drama.
Escapades (ops, as rapidinhas)
O livro “HUSH – Berlin Club Culture in a Time of Silence” documentou mais de 40 clubs da cidade entre abril e dezembro de 2020 fotografando-os vazio. Claro que a lendária Berghain não participou do projeto.
A revista digital Presente é focada em correspondências e/ou outros formatos de textos e produções feitas entre duas pessoas. Lindíssima demais e disponível também em inglês.
Eu ouvi falar sobre a escritora Lorena Portela pela primeira vez numa live que a Amanda Foschini fez com ela para falar sobre publicar livros de forma independente. Depois a ouvi no ótimo episódio “Primeiro eu tive que renascer”, do podcast da Obvious. Finalmente comprei o livro “Primeiro eu tive que morrer”, que narra a vida de uma publicitária que vive cercada de clichês e sofre um burnout, a levando para umas férias na idílica Jericoacoara onde se dá conta de que precisa urgente criar uma nova versão de si mesma. É um livro lindo, feminino e é também uma história de amor. Para ler numa sentada.
Na sequência eu emendei com o maravilhoso “Tudo é rio”, estreia de Carla Madeira, que conta uma história bruta com muita delicadeza. Leitura arrebatadora que já me fez ansiar pela sua próxima obra.
Agora estou lendo “Casta: A origem do nosso mal-estar”, da jornalista norte-americana Isabel Wilkerson que “analisa os pontos de contato entre a escravidão nos Estados Unidos, o nazismo na Alemanha e o sistemas de castas na Índia.”
A Cecília Young mostra que tem tudo para seguir o caminho brilhante da sua mãe, Fernanda Young, nesse texto “Minha nova alma”.
101 projetos periféricos que mostram a potência criativa das periferias.
Temos discutido exaustivamente sobre saúde mental neste último ano, mas talvez errando ao classificá-la como algo individual: “A individualização dos distúrbios mentais é proporcional à sua despolitização. Considerá-los um problema químico e biológico individual dá uma vantagem enorme ao capitalismo e aos sistemas políticos dominantes.”
Ando estudando bastante sobre metaverso e este texto do Matthew Ball é um dos mais interessantes que li a respeito.
Para quem anda abusando na dose diária do álcool, recomendo ler “Não harmonize vinho com tristeza”.
Eu adorei o conceito do Festival Não Existe, promovido pela Gop Tun, que vai rolar nos dias 27 e 28 de maio. Quero assistir!
Para matar o tédio é só clicar aqui.
It’s time to say goodbye.
Deixo aqui uma playlist maravilhosa de música eletrônica brasileira do Brasil ou cantada em “brasileiro”. Tem várias pérolas no meio! Dica do Dimas Henkes.
Espero conseguir voltar em menos de um mês….
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