Espiral #38: Você saber lidar com o tédio?
Lars Svendsen, Joseph Brodsky, Giselle Beiguelman, Hania Rani, Daft Punk, Instagram e a padronização dos rostos, Camila Yahn, mulheres na música clássica
Música para essa newsletter: Do not disturb, Harmony Byrne
Estou de volta após uma longa ausência necessária para eu conseguir me adequar ao novo momento do mundo, ao meu momento e ao novo normal, que tá quase igual ao velho normal. Eu estava numa grande ressaca da internet, mas entendendo que detox digital é algo cada vez mais utópico, eu decidi me desconectar temporariamente dos grupos no WhatsApp e do Instagram. Neste intervalo eu vi a minha ansiedade, frustrações e até mesmo uma insistente melancolia, diminuídas consideravelmente.
Eu me joguei contra a parede para uma auto-análise despudorada. Assumi que eu fiz algumas coisas apenas porque elas ficam bonitas no Instagram, mas não necessariamente porque eu queria fazê-las. Eu estava no automático vivendo um pouco da minha vida como eu achava que ela ficaria mais interessante nas redes sociais. Ainda assim, analisando-a criticamente, ela me pareceu totalmente vazia.
Após deixar os grupos e o Instagram de lado, o meu uso do celular caiu pela metade me proporcionando mais tempo livre. O que aconteceu? Primeiro fiquei ansiosa, porque achava que estava perdendo coisas, oportunidades ou que seria esquecida por amigos com quem só me comunico por esses meios, mas depois senti uma calma tão grande, que junto com ela veio o tédio. Como a gente lida com ele?
Foi esta pergunta que me levou ao livro “A Filosofia do Tédio”, de Lars Svendsen, para quem o tédio é um fenômeno moderno, não tem a ver diretamente com preguiça ou melancolia e, em partes, é resultado da criação da busca pelo sentido da vida, o qual o filósofo não acredita que exista. Para Svendsen há diversos sentidos, como a família, o trabalho, os nossos hobbies, e eles podem ser suficientes. Mas enquanto buscamos o grande sentido, tendemos a desprezar essas demais fontes de significados.
O tédio pode ser visto como uma voz da consciência, que diz que sua vida não é nada, que sua carência de sentido precisa ser suprida. A conclusão é que o tédio pode ser uma fonte de autoconhecimento. (Entrevista na Folha de S. Paulo: Nada a fazer)
Um autor que eu gosto muito, o Joseph Brodsky, escreveu também sobre o tédio e é um dos autores citados por Svendsen. Para Brodsky, “o tédio é a intromissão do tempo no sistema de mundo do indivíduo. Põe sua vida em perspectiva, e o resultado líquido é exatamente autoconhecimento e humildade. A primeira dá origem ao segundo. Quanto mais você aprende sobre sua própria importância, mais humilde e compreensivo se torna com o próximo.”
Não me restou nada mais do que aceitar o tédio e entender como lidar com ele. Entrei num modo contemplativo, o que é um grande desafio para mim (e pro mundo). Voltei a ouvir discos na íntegra, algo que me salvou muitas vezes no ano passado. Ficamos eu, a música e a paisagem através da minha janela. Sabe o que aconteceu? O meu presente se expandiu. O meu presente, na verdade, voltou a existir, porque a forma acelerada como vivemos, tem matado o nosso presente. A gente não vê mais o que olha.
Como eu acredito que a filosofia pode responder um bocado dos nossos anseios, continuei minhas pesquisas e caí no livro “Favor Fechar os Olhos: Em Busca de Outro Tempo”, onde Byung-Chul Han discorre sobre como o excesso das “imagens digitais de hoje em dia são sem silêncio e, por isso, sem música, sim, sem aroma. […] As imagens inquietas não falam ou contam, mas sim fazem barulho.” Ou seja, não conseguimos fechar os olhos, temos dificuldade em lidar com o presente e perdemos a habilidade de contemplar.
Vivemos uma “hemorragia visual de fotos e vídeos em trânsito contínuo” tornando essas imagens“invisíveis e anestésicas. […] O celular se transformou numa espécie de terceiro olho na palma da mão, que escaneia a vida continuamente”, resultando numa “verdadeira compulsão pelo arquivamento hoje. […] Registra-se tudo no afã de marcar um momento. […] Alguma coisa tem que ser gravada, capturada e divulgada. E é isso que faz da cultura pop, cada vez mais “intoxicada” pelo passado.” (Políticas da Imagem: Vigilância e Resistência da Dadosfera, Giselle Beiguelman). Eu estou nesta lista com as minhas 60 mil fotos na nuvem.
Retornei recentemente ao Instagram e a poucos grupos do WhatsApp. O primeiro está sendo usado com moderação. Deixei-o instalado apenas no iPad que não está sempre comigo. Tem funcionado. O resultado é que estou aos poucos trabalhando melhor o meu foco, porque uma lição que aprendi neste último ano é que não sou e nunca fui multitarefa. Ser multitarefa é o que tira a nossa habilidade de contemplação e é ela que quero de volta.
Quer aprender a lidar com o silêncio e a contemplação? Para tudo e dê play em “Caves - A Compilation of Silences”, de Nicolas Jaar, que reuniu diversos amigos, incluindo Lucrecia Dalt e Laraaji, para fazerem uma verdadeira ode ao silêncio. Se preferir algo mais curto, sempre teremos “4:33”, de John Cage.
Painter Man
Fiz minha primeira viagem pós-última-quarentena-já-devidamente-vacinada. Fui visitar a família na Suécia e estiquei na Dinamarca. Na mala eu levei a sabedoria do Ailton Krenak que fala que “a vida é fruição. Ou seja, é despertar a cada instante para o novo, para alguma coisa que já está aqui, mas se revela para mim como novidade”.
Foram 15 dias contemplando o mar e pores-do-sol espetaculares. Velejei um pouco e celebrei meus 8 anos de casamento num jantar sob o balanço das ondas com uma foca bailando à nossa volta.
Na Suécia, eu visitei os Museu da Aquarela, onde me maravilhei com os espirais de Hundertwasser, e o Museu de Esculturas Pilane, onde me perdi na grandeza da Anna, de Jaume Plensa.
Já na Dinamarca, eu finalmente fui ao Museu Louisiana onde eu vi três grandiosas exposições: “Mãe”, que gira em torno da maternidade analisando-a através da arte e da cultura, dos primórdios da humanidade aos dias de hoje; uma mostra de Arthur Jafa, artista mais do que necessário no nossos dias atuais, que apresenta em suas obras o poder criativo da cultura negra americana em oposição à dura realidade da vida que as pessoas negras vivem, apresentada em vídeos, esculturas, fotos e instalações; e, por fim, uma retrospectiva de Mamma Andersson, pintora sueca que me encantou com o seu jeito de combinar diferentes materiais fazendo repetidas aplicações e pinturas sobrepostas. Inspirada por cinema, teatro e fotografia, a obra de Andersson tem um resultado onírico e poético.
Esta viagem resultou neste texto sobre o que viajar por estes dois países me mostrou sobre o novo normal.
On the Radio
Já falei da pianista Hania Rani em uma Espiral após o crush sonoro que rolou quando assisti esta live dela. Tive a sorte de vê-la ao vivo num dos meus lugares favoritos por aqui, o Silent Green, no primeiro show que fui em 2021. Rolou num picnic concert com fones de ouvido e foi de uma lindeza infinita. Fiquei tão inspirada que escrevi um pouco sobre o show e sobre este espaço tão emblemático de Berlim, afinal foi neste antigo crematório que eu aprendi a amar piano.
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Como já estamos carecas de saber, a mulher foi apagada da história das artes, da música, da literatura, da ciência, etc., mas aos poucos tem sido resgatada, na maioria das vezes por outras mulheres. A professora de música espanhola Sakira Ventura criou um mapa interativo com mais de 500 compositoras mulheres de música clássica ao redor do mundo, incluindo “desde Kassia, abadessa bizantina nascida em 810 e cujos hinos ainda são cantados na Igreja Ortodoxa, até Alma Deutscher, uma adolescente britânica que compôs sua primeira sonata para piano aos seis anos.” O Brasil conta com 7 nomes, incluindo a Jocy de Oliveira. A lista traz uma mini bio e link para as artistas.
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O livro “Daft Punk Discovery’s” conta a história do álbum Discovery, lançado em 2001, que marcou época, foi fenômeno cultural, teve um profundo impacto na cena musical e levou o Daft Punk para outro patamar. O livro, que está em pré-venda, conta também a história sobre como a dupla se transformou em robôs que você pode ler aqui.
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A cidade de Frankfurt ganhará um museu dedicado à música eletrônica em outubro, o MOMEM, o primeiro do gênero no mundo, mas não vamos esquecer que agora temos uma galeria dedicada ao DJ em São Paulo.
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Hoje eu não vou falar sobre NFTs, mas deixo aqui um mapa interessante de plataformas de música em blockchain (não para de crescer) e um convite para assinarem a newsletter da Menta Land, minha empreitada para projetos com Web 3.0. Minha parça Bia Pattoli tem feito um excelente trabalho editorial com o beabá sobre diversos assuntos deste universo fantástico.
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Eu me emocionei com as boas lembranças e a homenagem de Nick Cave à Mercearia São Pedro, lugar que ele frequentava quando morava em São Paulo.
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A Patti Smith nos presenteou esta semana com o álbum “Live at Electric Day”. O lançamento faz parte de uma parceria firmada entre o Spotify e o Electric Day Studios para gravações de EPs ao vivo no famoso estúdio fundado por Jimi Hendrix, em 1970. Apesar da surpresa geral, a lista de artistas já havia sido divulgada em julho, que conta com nomes como Jon Batiste, Japanese Breakfast, Bleachers, entre outros.
Quem sou eu
Eu já gastei horas testando filtros no Instagram, primeiramente para me divertir, mas depois entrei na neura com os filtros que nos deixam mais jovem. De repente, comecei a idealizar uma nova imagem para mim. Uma Lalai com rosto bundinha de bebê, bochechas levantadas e o olhar descansado, ele que atualmente parece carregar um século nas costas de tão cansado que aparenta. Por fim, caí nesta reflexão da Camila Yahn: Os filtros de redes sociais são para nos divertir ou para nos derrubar?, que me levou à leitura do livro “O Instagram está padronizando os rostos”, de Camila Cintra (com coordenação da Lucia Santaella).
O Instagram teve um impacto profundo na sociedade como um todo. Ele influenciou diversas áreas, como arquitetura, design, alimentação, moda, turismo e beleza, por exemplo. Tudo passou a ser projetado para ser instagramável, inclusive os nossos rostos. “O Instagram é hoje um dos principais meios de interação social e criador de comportamentos. […] Performamos aos olhos do Outro, bonitos e adequados, mas seguindo uma lógica padrão que se antecipa ao desejo e que propõe o padrão de beleza a ser seguida. […] Esse processo é perigoso, pois elimina a beleza da singularidade orgânica de cada rosto e erode a sensação de valor da própria imagem de si.” (ibidem)
Li também “Políticas da Imagem”, da Giselle Beiguelman, que citei lá em cima, que reflete sobre o estatuto da imagem no mundo contemporâneo. Indico a ótima crítica de Jorge Coli, na Folha, sobre o livro: “A imagem ocupou o lugar da intensidade vivida, já que o fotografar e o filmar tornaram-se mais importante que a experiência concreta: não estou lá para ver, mas para fotografar.... A vertigem não cessa: Giselle Beiguelman assinala o seguinte “desconcertante paradoxo”: somos vistos a partir do que vemos. O Big Brother de Orwell era um olho universal que me via. Agora, o Big Brother está em nós. Ou, como diz o livro, “os grandes olhos que nos monitoram veem pelos nossos olhos”.
Fecho o bloco com uma dica do Rodrigo Turra, do The Nexialist, de um projeto que analisa como a inteligência artificial e a análise de big data impactam a ética e os direitos humanos: How Normal am I? No meu teste, o sistema acusou que sou homem (shiii), mais nova do que realmente sou e apenas 57% normal em relação ao padrão.
Vortex (as rapidinhas do dia)
Esse foi um dos melhores achados dos últimos meses: Fresh Air Collection com Terry Gross com 40 anos de arquivos de entrevistas com pessoas que moldaram o nosso mundo de alguma forma. Tem conversa com a Aretha Franklin, Oliver Sacks, Antony Bordain, David Bowie, entre outras personas imperdíveis. <3
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Se eu estivesse em São Paulo, eu visitaria a exposição de Daniel Buren, na Galeria Nara Roesler; e no Rio, eu iria ver a “Lygia Clark: 100 anos”, na Pinakotheke Cultural.
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Aquelas histórias de vida que emocionam e inspiram: Judith Scott nasceu com Síndrome de Down, foi enviada pela para uma instituição ainda pequena e foi resgatada na vida adulta por sua irmã gêmea, que a colocou numa escola de artes e a levou a ser uma famosa escultora.
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A 1729 é a primeira newsletter que recompensa seus assinantes com criptomoeda para que eles contribuam em tarefas relacionadas à pesquisas, que pode ser, por exemplo indicação de um link sobre um determinado assunto.
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A Broadway estreou um musical baseado no Burning Man. WTF!
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Quem anda querendo mergulhar em metaverso, eu recomendo esta lista com os 30 maiores influenciadores no assunto. Eu sou fã das ideias do Matthew Ball. Mas quem ainda não sabe exatamente o que é metaverso, eu recomendo a leitura deste texto. :)
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Estou apaixonada pela fotografia da Adaeze Okaro.
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Bom fim de semana! Nos vemos em breve e deixo aqui este link para morrer de fofura. :)
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