Espiral #97: A desgraça dos celulares nos shows ao vivo
Você assiste o show olhando para o palco ou para a tela do seu celular?
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Caso você more ou esteja visitando Berlim, não deixe de conhecer a minha newsletter The Next Day Berlin.
Trilha sonora para essa newsletter: “Museum”, JFDR.
Recebi uma mensagem de um amigo acompanhada da foto acima dizendo: “O show do The Weeknd deixou claro que o brasileiro não tem maturidade para o show da Beyoncé. Uma juventude desesperada por tirar foto, fazer vídeo, uma loucura de um jeito que nunca tinha visto.”
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Fui ao show do Ólafur Arnalds & Friends na última quarta-feira, no Silent Green, um palco pequeno. Embora seja um dos meus locais favoritos em Berlim, eu teria preferido assistir sentada na Filarmônica ou em um teatro. Sou baixinha e sofro bastante com a multidão de gigantes em todos os shows a que vou aqui. Não foi diferente neste show; assisti a parte dele nas telas de smartphones das pessoas à minha frente.
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O Tiago Ney falou na
sobre a nova forma como os palcos são projetados. Não são pensados apenas para quem assiste o show ao vivo, mas também para quem assiste aos shows pelo TikTok ou Instagram.***
O artigo que Ney cita, destaca a evolução no projeto de palcos para atender às demandas das redes sociais, garantindo que a experiência ao vivo seja atraente também nas telas dos smartphones. Cenários devem ser visualmente impressionantes e funcionais para a multidão e para o compartilhamento nas redes sociais, considerando diferentes perspectivas do público. O foco hoje é criar "Momentos Instagram" (e TikTok). Isso requer um equilíbrio entre o desempenho ao vivo e a estética nas mídias sociais.
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Mas mesmo um palco não projetado para as redes sociais, como foi o caso do show do Ólafur Arnalds, cria uma euforia e uma necessidade urgente de gravar e fotografar tudo. Na minha frente, um rapaz ora filmava uma música na íntegra, ora fotografava loucamente com uma câmera digital. Durante quase todo o show ele estava captava algo e atrapalhava meu campo de visão.
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Não vou ser hipócrita dizendo que eu não faço o mesmo. Por isso, eu gosto quando o uso de câmera é expressamente proibido, como na Filarmônica de Berlim e nas festas, porque assim eu relaxo e curto mais. Quando é permitido filmar e/ou fotografar e vemos as pessoas com as câmeras de seus smartphones apontados para o palco, sentimos automaticamente a necessidade de fazer o mesmo. É como se não fotografar ou não filmar, nós não vivemos a experiência.
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Gosto de acompanhar carreiras artísticas desde o início, especialmente para observar a evolução das performances no palco e o investimento nos recursos visuais ao longo do tempo. Assisti ao primeiro show do The Blaze no Coachella em 2018, quando a dupla estava apenas começando a se destacar. Naquela época, o show já chamava a atenção pela cenografia e projeção, mas ainda era um tanto tímido. Um ano depois, eu assisti a banda no Primavera Sound, onde as telas de LED utilizadas como parte da cenografia já eram superiores às do Coachella.
Em março deste ano, tive a oportunidade de vê-los novamente em Berlim, e a evolução visual foi surpreendente. Eram seis grandes telas de LED virando para cima e para baixo formando um verdadeiro balé no palco. O público ficou completamente hipnotizado pelos movimentos das telas e as projeções, que muitas vezes criaram uma ilusão de que a dupla estava dentro do cenário projetado. A cada música surgia um momento em que todo mundo sacava o celular do bolso ao mesmo tempo para gravar ou fotografar.
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E, hoje, qualquer artista que ganhe mais espaço e um palco maior para se apresentar, vai naturalmente investir mais em cenografia, luz e projeções.
Quando voltamos a atenção para os produtores de EDM é uma loucura. São os que mais investem dinheiro tecnologia e pirotecnia para levar a audiência à loucura. Eu detesto a música do Eric Prydz, mas quis assistir ao vivo o show que tinha assistido incessantemente nas redes sociais.
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O novo Sphere, em Las Vegas, inovou levando a imersão e o entretenimento para além do palco. Coloca-o fora dele. Na parte externa. É a maior estrutura esférica do mundo com 54 mil metros quadrados de tela de led com resolução 16k. O Sphere foi inagurado com a turnê “Achtung Baby”, do U2, praticamente com os ingressos esgotados durante toda a longa temporada de 36 shows. Um sucesso sem precedentes. Foram para ver o U2 ou para experimentar e compartilhar o novo espaço nas redes sociais? Eu, que não sou fã do U2, iria pela experiência. E, claro, uma pessoa foi e filmou o show na íntegra.
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A Neue Nationalgalerie convidou a Patti Smith para promover leituras de seus textos, cantar e conversar com o público do museu. Um encontro bem intimista feito num palco improvisado com todo mundo sentado no chão em volta dela. Na frente da plateia, alguns fotógrafos profissionais com lentes intimidadoras. Um deles carregava uma câmera gigante de vídeo. A Patti Smith ficou bem impaciente e disse que eles estavam atrapalhando a sua concentração. Perguntou se estavam fazendo um documentário dela que ela não sabia, mas não lembrava de ter autorizado nada. Pediu literalmente para saírem.
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Eu tratei logo de esconder meu celular. Várias pessoas à minha volta fizeram o mesmo. Patti Smith desabafou o quanto detesta ver sempre câmeras apontando para ela. E, o pior, as pessoas a marcam nas publicações e raramente são imagens que ela gosta. Divagou um bocado sobre como se sente invadida quando está no palco. Só faltou emendar em um “Me deixem em paz”.
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Eu guardei o celular na bolsa, mas algumas pessoas sentadas bem na frente dela não se deram como vencidas e continuaram filmando até o evento acabar. Eu achei uma baita falta de respeito nesse caso, mas no final eu não resisti e fiz vídeo dela cantando “Because the Night”. É mais forte do que a gente.
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Em 2022, Bruno Mars e Anderson .Paak proibiram a entrada de celular nos shows que fizerm juntos em uma residência em Las Vegas. As pessoas ficam frustradas, mas no fim das contas ela saem mais satisfeitas, porque elas de fato assistem ao show. Faço aqui um gancho com os “bares de audição”, em que a ideia é “escutar a música” e não apenas “ouvi-la”. No caso do show, podemos dizer que não necessariamente assistimos, mas que estivemos lá.
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Essa discussão toda não é nova. A real é que já se normalizou com os próprios produtores e artistas entendendo essa extensão dos shows para o digital como uma necessidade. Então cada vez mais vemos shows em que os artifícios para torná-lo altamente compartilhado competem com o próprio artista. Enquanto isso, acumulamos gigabytes de lixo eletrônico “nas nuvens”. Em 2007, o celular representava 1% da poluição mundial. Até 2040, esse volume deve chegar a 14%, ou seja, mais da metade do volume produzido por todos os meios de transportes.
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Não lembro exatamente o ano, mas em uma das edições do SXSW nos anos 2010, assisti a uma palestra sobre tendências e um dos tópicos era sobre o futuro do celular. Uma das previsões é que ele desaparecia como o device que conhecemos hoje. Não carregaríamos o celular nas mãos. Vieram então os óculos que não vingaram (alguns preveem que eles voltarão), os relógios inteligentes, os smartphones cada vez com mais dobras, cada vez menos celular e com mais Inteligência Artificial, mas ainda continuam atrapalhando nosso campo de visão.
E você, como é a sua relação com o celular durante shows e festas?
Save this World
Comecei a ler “A máquina do caos: Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo”, de Max Fischer. O livro discute como as redes sociais influenciaram a maneira como as pessoas pensam, percebem informações e tomam decisões. E, também, como remodelaram o mundo, impactando a comunicação, a política e os relacionamentos. Estou ainda no início, mas mesmo achando que já sabemos tudo que está por trás das Big Tech, há algumas histórias mais escabrosas do que imaginamos. Entendemos que as redes sociais procuram explorar o pior que há em nós.
Paralelamente, estou tentando ler “Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista”, de Jonathan Crary, mas estou achando a leitura bem chata e arrastada. No livro, Crary discute a necessidade de um futuro "offline" e questiona a sustentabilidade de nossa maneira atual de viver no planeta.
A
escreveu uma edição maravilhosa sobre essa sensação de desconforto que as redes sociais nos provocam cada vez mais.Na sequência, quero engatar a leitura de “Deep Fakes and the Infocalypse: What You Urgently Need to Know”, de Nina Schick.
E, para respirar estou lendo “Outras vidas que não a minha”, do Emmanuel Carrère.
Por hoje é só… bom fim de semana. 🤩
Semana passada eu e um amigo estávamos falando muito sobre isso, que fomos em um show que o palco era baixo e não conseguíamos chegar tão perto - aí era super comum nas músicas mais conhecidas dele subirem aqueles montes de celulares e a gente mal conseguir dançar porque teve gente reclamando (sim! ) que ia balançar a gravação.
Já fui também em uma apresentação da liniker que ela pediu pra ninguém usar o celular até a última música e essa sensação de que todo mundo estava ali no mesmo clima que ela com as músicas era incrível, até na última que pegaram o celular dava pra perceber algumas filmagens mais tortas sabe? acho que galera já tinha virado essa chave de ser um registro pra lembrança e não esse quase documentário da apresentação
Eu fico extremamente incomodada com os celulares nos shows! Pra mim é falta de respeito com quem está atrás e quer assistir ao show e não só escutar a música- até porque isso eu faço em casa. Eu tento preservar as minhas experiências fora das redes sociais e do digital e aprecia-las offline, mas sei que a discussão, como você levantou, não é tão simples. No entanto, nove anos em Berlim me ensinou a não ficar calada... eu sempre peço educadamente para a pessoa abaixar o telefone. Aí entra a máxima: a experiência de um não pode atrapalhar a do outro.