Espiral: A competição mais longa de esqui do mundo
Da fuga de um rei à maior prova de esqui da história: 90 km de resistência na neve
🎧 Trilha sonora para esta edição: ‘DÍA’, de Ela Minus.
Estou em um pequeno paraíso brasileiro chamado Garopaba. Tenho à minha frente uma vista de tirar o fôlego onde montanhas se enfileiram majestosas. No meio delas, um mar largo. Plácido. De onde estou, ele parece congelado como em uma foto. Apesar do calor e da umidade, o sol desapareceu por trás de nuvens cinzas e espessas. Lá no fundo, onde Florianópolis se deita atrás do mar, vejo um pouco do azul do céu. Estou sentada em um sofá verde macio. Grande. De onde não quero sair.
A vida às vezes é muito boa. Nesse momento ela está ótima.
Estou há 47 dias sem Instagram - e só vejo pessoas escrevendo sobre sair da plataforma. É uma contagem prazeirosa como a que faço quando deixo o álcool de lado. Um dia de cada vez. Um dia sóbria. Mais um. Decidi, nesse momento de quase férias, trazer um texto que escrevi no ano passado enquanto eu contemplava uma paisagem oposta. Gelada. Cremosa de neve. É a estória de uma aventura que vivi como plateia, onde eu era a torcida.
Daqui saímos do verão brasileiro e seguimos para o norte da Suécia.
Viver com uma família que ama esportes me fez sair do marasmo físico e buscar atividades para chamar de minhas. Me casei com uma pessoa que, assim como toda sua família, vive entre expedições na neve, escaladas, competições de bicicleta, de nado, viagens de barco, de caiaque, corridas. Sempre tem uma competição ou aventura, que às vezes me parece radical, animando os Persson independente da estação do ano.
Apesar de não saber nadar, adoro velejar e passear de caiaque. O meu equilíbrio é duvidoso, mas amo pedalar e esquiar. Coleciono preguiça de todos os tipos, mas é só me chamar para uma aula de yoga que eu vou correndo.
Em 2023, surgiu a ideia da família do meu marido participar do Vasaloppet no ano seguinte, a maior e mais longa corrida de esqui do mundo. Não seria a primeira vez, mas a última participação tinha sido há mais de uma década. São 90 quilômetros percorridos em cima de um par de esqui entre Sälen e Mora, duas cidades ao norte da Suécia, que em um passado distante foram palcos de um pegapacapá sangrento para se livrarem das mãos dos dinamarqueses.

A história…
Em 1520, quando a Suécia estava sob domínio da Dinamarca, o rei Christian II convidou os nobres suecos mais importantes da época para um jantar em Estocolmo. Em um golpe que lembra a famosa cena do 'Red Wedding' em 'Game of Thrones', ordenou a execução de todos eles - evento que ficou conhecido como o 'Banho de Sangue de Estocolmo'."
Gustav Eriksson Vasa, filho de um dos nobres assassinados, conseguiu escapar e decidiu lutar para libertar a Suécia do domínio dos dinamarqueses. Ele começou a viajar pelo país em busca de apoio, mas enfrentou muita resistência, pois os soldados dinamarqueses estavam sempre no seu encalço.
Durante uma dessas fugas, em pleno inverno rigoroso – afinal, ainda não havia crise climática – Gustav esquiou de Mora até Sälen após não ter conseguido apoio de seus moradores. No entanto, os moradores de Mora, posteriormente, decidiram apoiá-lo e foram atrás dele. Gustav retornou (também esquiando), reuniu um exército e conseguiu derrotar os dinamarqueses.
Em 1523, ele foi coroado aos 27 anos o primeiro rei de uma Suécia independente.
400 anos depois….
É 1922, um editor de um jornal local teve a ideia de criar uma corrida de esqui seguindo o caminho que Gustav Vasa fez. Assim nasceu o Vasaloppet, que contou com 119 participantes na primeira edição, mas hoje é a maior corrida de esqui cross-country do mundo.
Sabe quando sonhamos com um destino para viajar? Japão, Índia, Islândia? Batemos o martelo, compramos a passagem com muita antecedência, e então nossa vida passa a girar em torno da viagem. Lemos tudo sobre o lugar, assistimos a filmes, vídeos e documentários, compramos itens que parecem indispensáveis, aprendemos palavras básicas no idioma e só falamos sobre isso até chegar o grande dia.
Foi assim lá em casa, um auê com meses de preparação, incluindo viagens esportivas, corridas quase diárias, participação em competições menores para avançar na fila de partida - afinal, quase 16 mil pessoas se inscreveram no Vasaloppet do ano passado. No grupo da família no WhatsApp, o qual acompanho mais ou menos porque o idioma oficial é sueco, circularam muitas fotos e vídeos de todo o preparo dos participantes que me deixaram sem fôlego. Em casa, pacotes eram entregues regularmente com alguma coisa relacionada à corrida: esquis novos, roupas para os mais diferentes tipos de temperatura, botas peso pena e por aí vai. Enfim, a minha casa virou um postinho temporário da DHL.
Adorei acompanhar toda a empolgação. Até eu, mera espectadora, acabei obcecada, afinal seria a centésima edição de uma das competições mais tradicionais - se não a mais tradicional - da Suécia. Eu comecei a planejar minha participação na torcida oficial da família.
Na véspera, reunimos a família toda para um jantar em uma casa digna de cartão postal de natal, em Mora, onde termina a competição. É melhor terminar perto de casa do que ter que voltar os 90 quilômetros após um dia todo esquiando. Porém, as notícias sobre a previsão do tempo não eram nada animadoras: dois graus positivos, quando o esperado eram temperaturas negativas e muita neve, mas tínhamos apenas ameaça de chuva.
Nós, da torcida organizada, saímos de casa antes das seis da manhã no domingo para assistir à largada na cidade vizinha. Achávamos que seria tempo suficiente para dirigir os 90 quilômetros e chegar lá antes das oito, quando um tiro para o alto anuncia a largada. Dirigimos sob uma chuva fina e ficamos cerca de uma hora paradas em um trânsito de apenas quatro quilômetros. Da janela, eu assistia competidores desesperados pulando dos carros e correndo estrada abaixo com os esquis nos ombros.
Quando finalmente chegamos no local, a decepção foi enorme: o lugar estava vazio, cercado de lama, o que me fez sentir no fim de uma edição lamacenta de um festival de música.
O jeito foi dirigir atrás do nosso ‘time’ composto pelo meu marido, cunhado e sogro. Para a nossa sorte, os participantes usam uma pulseira com GPS conectada ao aplicativo oficial do evento permitindo que a gente saiba onde eles estão.

Quase todo o percurso é plano, exceto no início, com uma subida, e na descida mais longa, que se torna a mais divertida da temporada. Assim como Gustav Vasa derrubou o exército dinamarquês, essa ladeira derruba os competidores em efeito dominó. Assistir aos vídeos dessas quedas é meu passatempo favorito quando preciso rir um pouco.
Dirigimos de volta e conseguimos encontrá-los para um abraço em uma das paradas, onde servem “blåbärssoppa” (sopa de mirtilo) aos esquiadores. Depois seguimos para Mora, onde fica a chegada. Por lá, esperamos cerca de duas horas até que eles chegarem, mas enquanto isso assisti animada às chegadas dos mais diferentes perfis de competidores.
Me comoveu especialmente ver pessoas mais idosas, especialmente mulheres, ou com problemas de mobilidade concluindo a prova. Gösta Lönnelid, 85 anos, foi o participante mais idoso e com mais provas concluídas na história do Vasaloppet: sessenta e uma vezes. Nesta última edição, ele afirmou que o desafio foi grande. Quebrou o bastão três vezes, recebeu massagem quatro vezes e caiu pelo menos vinte, mas se orgulhou de completar a prova em 13h23min03s. Chegou sangrando no final da corrida, mas vestido de satisfação.
Já a nossa torcida organizada passou mais de doze horas entre dirigir e assistir à competição. No fim eu estava tão exausta quanto se tivesse participado.
A pequena cidade de Mora fica em festa. É gente para todos os lados, de várias partes do mundo, mas com uma maioria sueca, norueguesa, tcheca e alemã. Os noruegueses geralmente vencem, tanto na categoria masculina quanto na feminina. Eu acho surreal os resultados: o primeiro lugar masculino fez os 90 quilômetros em 3h52min43s e a feminina, 4h23min06s. O meu marido obteve a melhor colocação na família realizando o percurso em 8h59min23s. Lembro-me dele ter passado direto e mal olhado para nós, pois o objetivo era concluir em menos de nove horas, o que de fato conseguiu por 37 segundos.
E a cada ano, quando março se aproxima, Mora se prepara para sua invasão anual - não mais de dinamarqueses, mas de esquiadores de todo o mundo, dispostos a percorrer 90 quilômetros pelo simples prazer de chegar ao fim. Uma tradição que, embora centenária, nem sempre foi acessível a todos os participantes.
Quando a Vasaloppet foi criada em 1922, não havia restrições quanto ao gênero dos participantes. No ano seguinte, uma mulher se inscreveu pela primeira vez e pôde competir. No entanto, após o evento, os organizadores realizaram uma reunião e decidiram vetar a participação feminina alegando não fazer bem para a nossa saúde. Em 1978, uma atleta desafiou essa proibição ao participar vestida de homem. Somente em 1981 as mulheres puderam competir oficialmente, mas apenas em 1996 passaram a receber premiações. Na última edição, as mulheres representaram 20,4% dos competidores.
Hoje cerca de 94% de participantes concluem a prova e menos de 3% deles são atletas de elite.
Shuffle
🗂️ 30 dicas para simplificar sua vida (dica mara da
);🎛️ Set cremoso do Jamie XX na The Lot Radio;
꩜ Uma das melhores entrevistas já feita com a Björk;
🍽️ Relembrando Anthony Bourdain em Minas Gerais;
📚 Terminei a leitura de ‘A única história’, do Julian Barnes, que mostra não haver regras para o amor a partir de uma história bem peculiar. Ainda digerindo para então falar sobre ele.
Vou voltar para a minha vista para o mar. ♡
Muito interessante!!!
amei a newsletter! saudades!