Espiral #44: De onde vem o talento?
Esqui, HVOB, Coachella, mulheres no reggae, Ape Rave Club no Tomorrowland, outras leituras e música
Trilha sonora para esta newsletter: o álbum hipnótico Their invisible hands, de Clara Engel
Casei-me com um esquiador que só não é profissional porque não vive disso, mas todos os anos eu assisto suas peripécias em complexas expedições pelos Alpes. Ele passa dias subindo e escalando montanhas geladas em longas caminhadas fora das áreas dos resorts de esqui. O prazer está em esquiar em terras quase intocadas e distantes. Ao redor, apenas a imensidão branca, o silêncio do mundo e, às vezes, a montanha do Toblerone zelando por ele. A água custa 10 euros nos refúgios que encontra pelo caminho, afinal ela só chega de helicóptero e ele, se sofrer qualquer acidente, também só sai de lá com resgate aéreo.
Enquanto o Ola nasceu com os esquis nos pés, a minha história começou em 2010 quando ele me levou com mais quatro amigos brasileiros para esquiar na Noruega. Foi um inverno atípico com mais neve do que o normal, o que nos levou a andar maravilhados sob o mar congelado e depois afundar em metros de neve nas montanhas.
Eu fui achando que ia arrasar, mas me saí a pior dos novatos. Colocava o esqui e caía para o lado tipo boneco de posto furado. Tentava descer a pista infantil, mas ficava mais estatelada no chão do que em pé. Eu estava sempre gritando “Olaaaaa!”, para que ele viesse me salvar, porque levantar sozinha era algo que me parecia inconcebível.
Voltei para São Paulo espumando de ódio, me sentindo humilhada e afirmando que nunca mais iria esquiar, este esporte elitista que nada tinha a ver comigo.
Não sei se Capricórnio tem culpa nisso, mas o Ola é a insistência em pessoa. No ano seguinte, ele me convenceu a segui-lo novamente para sua casinha dos sonhos encrustada nas gélidas montanhas da Noruega. Foi um chororô. “Eu não vou! Esqui não é pra mim! Eu não tenho dinheiro.”, eu gritava enquanto já navegava escondida por lojas online em busca de roupas apropriadas. Na primeira vez, eu me senti uma jeca nas roupas emprestadas que eram maiores do que eu. Tudo bem não saber esquiar, mas pelo menos poderia me sentir mais bonita e elegante para amenizar os danos.
E então, lá fui eu de novo, cheia de medos na mala, afirmando que ficaria feliz sozinha no chalé apreciando a vista pras montanhas. “Ficarei tomando meu vinho, lendo meus livros, assistindo séries, fazendo sauna, me deixa”, eu repeti durante a longa viagem.
Já em Trysil, onde fica a tal casinha cheia de charme e com vista de cartão postal de Natal, eu fui matriculada a contragosto numa escolinha de esqui. Aos poucos aprendi a ficar em pé, a fazer curvas meia-boca e até a me levantar sozinha dos tombos seguidos que eu levava. Mas certa vez, um dos meus professores ficou tão chocado com a minha falta de talento, que foi perguntar para o Ola se eu tinha algum problema. “Tenho sim, sou descoordenada”. Espumei o ódio todo de novo e prometi que aprenderia a esquiar.
Nos anos seguintes, eu continuei viajando pra Noruega, onde passava os dias entre frustração e um tiquinho de alegria quando eu deslizava sem medo pela pista. Ainda assim, mantive meu 1º lugar como a pior esquiadora da história que o norte do planeta já viu.
Em 2018, saí pela primeira vez do conforto do meu quintal de inverno norueguês, onde eu já tinha uma pistinha pra chamar de minha, para embarcar numa press trip pro Ushuaia, na Argentina, com direito a dois dias de esqui na estação Cerro Castor.
A viagem foi ótima, mas não fui brindada com boa neve e não fui muito além da pista das crianças, onde a Anna, uma senhorinha muito simpática e paciente, tentou me convencer de que eu era capaz de aprender a esquiar.
No ano seguinte eu participei de uma press trip no Valle Nevado. Até desconfiei que o mercado de turismo estava vendo em mim uma esquiadora que eu não via. Segui para o Chile acompanhada de amigos e, claro, do Ola, para encarar finalmente a montanha que ele sempre disse que lá eu iria me encontrar. Nas palavras dele, os professores de esqui no Chile entendem melhor as dificuldades de quem cresceu sem neve em volta, as pistas são largas, além de falarem portunhol e dar exercícios como “Dá tchau pra Globo!”, fazendo a gente entender para onde o corpo precisa virar.
Foi uma experiência totalmente diferente e transformadora. Fiz aulas para iniciantes pela enésima vez, encarei ir ao topo da montanha e, pela primeira vez, esquiei um trecho de uma pista vermelha. Eu estava começando a gostar de esquiar, mas mantinha sempre os meus pés e joelhos virados para dentro nas descidas, porque o pânico de perder o controle da velocidade estava sempre enchendo os bolsos do meu casaco. Fazer o famoso esqui paralelo eu não conseguia nem quando eu estava parada. No fim do dia, eu estava sempre exausta com as pernas pedindo arrego por usar o corpo de maneira errada.
Quase 10 anos após a primeira investida, eu já estava mais rendida. Assistia a documentários de esqui, investi em roupas de melhor qualidade, comprei óculos, capacete e luvas.
A insistência do Ola em me carregar para acompanhá-lo a fazer uma das coisas que mais gosta na vida venceu. Agora eu que me virasse, o problema era meu. Eu tive que aprender a lidar com a insegurança de não evoluir muito além do que eu já tinha ido.
Com a pandemia, eu só voltei à pista de esqui agora, três anos após a viagem ao Chile. Nesse meio tempo, vi amigas, que nunca tinham esquiado, voltando de viagens contando como amaram e se encontraram no esqui. Claro que isso mexeu com meu brio. Fico feliz por elas, mas sempre me questionando o que fez o esqui ser um esporte tão desafiador para mim. De onde vem tanto medo?
Foi com a ansiedade acumulada de três anos que viajei na Páscoa para a Noruega. Primavera com cara de verão, sol alto, dias longuíssimos e termômetro marcando 17 graus. Trysil se revelou além da bruma que eu conhecia. Pensar que poderia ter esquecido o pouco que aprendi na década anterior me apavorava. “Ah, não vai ter esqui! Olha esse sol! Tá quente demais… a neve vai estar dura. Vamos ficar só na Suécia?” eu tentei demover os planos do Ola antes de colocarmos as malas no carro.
Não teve acordo. Fomos a família toda passar uns dias esquiando numa das últimas semanas da temporada. Não sei se você já esquiou, mas nas poucas vezes que eu me soltei e fui, eu tive a sensação de voar. Uma sensação tão maravilhosa, libertadora e com muita adrenalina, que mesmo durando poucos minutos, foi o que continuou me convencendo a voltar pra pista.
Foram três dias subindo ski lift e descendo pistas. Dei-me conta de que estava melhorando. A cada dia eu sentia mais segurança na pista como nunca senti. Não sei exatamente como mágica aconteceu, mas o esperado turning point rolou inesperadamente no último dia.
Pela primeira vez eu deslizei pela pista com os esquis paralelos tomada por uma magia desconhecida. Voei pela neve branca de braços abertos para dar um abraço apertado no mundo. Finalmente eu larguei meu corpo e o deixei me levar. Fiquei entregue emocionada, rindo e chorando ao mesmo tempo, por sentir algo tão sublime.
Nas horas seguintes eu me transformei numa outra pessoa. Mais leve, mais relaxada e mais otimista. Subi e desci várias as vezes a pista como se tivesse feito aquilo a vida toda.
O talento nem sempre é nato, mas ele sempre estará à espreita quando persistimos em qualquer coisa. No meu caso, foram 12 anos e a compensação foi tão boa que eu faria (e sofreria) tudo de novo.
“Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.” - Cecília Meireles
A piece of me
Conheci o duo austríaco HVOB em 2016 através de uma amiga. Naquele mesmo ano assistimos eles ao vivo no Melkweg OZ, na programação do ADE. Caí de amores e o álbum Trialog ficou no repeat. No último sábado, eles tocaram aqui em Berlim, no Huxleys Neue Welt, uma casa de concertos datada de 1900.
Casa lotada, ingressos esgotados e um público afoito de 1.500 pessoas! Foi meu primeiro show sem máscara com direito à aglomeração real desde que a pandemia começou. Ana Müller nos seduziu por 1h30 com sua voz suave e hipnótica, em meio à batidas ora pesadas, ora melancólicas, para apresentar o novo álbum “Too” e músicas de seus discos anteriores. O show foi um festão primoroso e vibrante. Se você está em algum lugar do mundo em que tem show da dupla anunciado, apenas vá. :)
Future Starts Slow
Entre as várias discussões sobre o mundo pós-pandêmico, está o retorno dos festivais. O “The Fan Report 2022” entrevistou 12 mil fãs nos EUA, na Europa e no UK para mapear as expectativas dos fãs de música nesta retomada. Apesar de mais da metade responder que se sente mais seguro com a obrigatoriedade do passaporte Covid, a maioria dos festivais derrubaram essa regra. Ainda assim, os grandes festivais estão praticamente todos com ingressos esgotados.
Eu não fui ao Coachella, mas essa resenha me representa bem. Concordo com o autor sobre o festival parecer adotar a filosofia de Jeff Bezos: “Todos os negócios precisam ser sempre jovens. Se sua base de clientes envelhece, você pode se tornar uma Woolworth.” Atualmente, as instalações de arte do festival me chamam mais atenção que o line-up.
O Tomorrowland escalou para sua próxima edição o “Ape Rave Club”, um dos NFTs avatares do Bored Ape Yatch Club, como um de seus headliners. É a primeira vez que um artista nascido na blockchain toca no palco de um festival. Como vai ser? O show do Gorillaz pode dar uma ideia do que pode ser, mas pequena, porque agora envolvem NFTs com drops ao vivo, experiências imersivas e coisas que sequer imaginamos.
A história de artistas fictícios (avatares) na música não é nova. Ela data de meados dos anos 1950, tendo o hit “Sugar, Sugar”, do The Archies, como um de seus pontos altos. Atualmente, temos entre vários avatares na música, incluindo a maior modelo virtual do mundo, Lil Miquela, que também se lançou como artista.
Para aplacar a ansiedade e relaxar, eu indico esse mix só com mulheres no reggae. Inclusive eu recomendo a leitura deste artigo, que abre com o provérbio chinês “as mulheres sustentam a metade do céu”, numa homenagem às mulheres que definiram o reggae. Isso me levou a este artigo publicado há alguns anos pela Vice sobre a cena feminina do reggae no Maranhão.
Don’t leave me this way
O texto Clube do Coração Nostálgico nos embala para os bailes da saudade de uma geração que anda tão animada como as mais novas. Eu me emocionei e já me vi como futura frequentadora destas pistas.
Conversa nem sempre é sinônimo de diálogo traz o BBB como análise de conversas sem escutas e sequestros de conversas. E, ainda temos, os loucos da palestra, que tem sempre uma “colocação a fazer” sobre qualquer assunto.
Na edição “Rosto”, da Revista Amarelo, tem um texto belíssimo da Poli Pieratti sobre “Dar Ouvidos” (pago), em que ela parte do livro “À escuta”, de Jean-Luc Nancy, para falar sobre “dar ouvidos é dar-se ao mundo, colher o espaço. Se-sentir-sentir na borda, na abertura, na troca. Ter os contornos como margens de contato, num devir-poroso. A escuta como ressonânica, relação: participação, partilha ou contágio”.
Nesta mesma edição da Amarello, eu me deparei com “Minha Alma Cativa”, da psicóloga Helena Cunha di Ciero, um belo ensaio poético sobre o rosto como acervo e como produto que muitas vezes precisa ser resgatado.
Li e recomendo “Segunda Casa”, o mais novo romance da Rachel Cusk, em que a escritora de meia-idade M convida o artista L, por quem está obcecada, a se hospedar em sua casa, onde se instala um caos emocional após a sua chegada. Um psicodrama muito íntimo sobre a meia-idade, as relações afetivas e a maternidade.
Estou lendo “O crepúsculo da democracia”, de Anne Applebaum, sobre autoritarismo que “atrai pessoas que não conseguem tolerar a complexiddade: não há nada intrinsicamente ‘de esquerda’ ou ‘de direita’ nesse instinto. Ele é antipluralista. Suspeita de ideias diferentes. É alérgico a debates ferozes. Se aqueles que possuem derivam de sua política do marxismo ou do nacionalismo é irrelevante. Trata-se de um estado mental, não de um conjunto de ideias”. Identificou um monte de gente aí?
Um guro da dieta viralizou no Twitter com uma thread com lições aprendidas do sobre dieta saudável após conviver alguns dias com o povo indígena Hadza, na Tanzânia. A antropóloga Dorsa Amir escreveu um artigo sobre o tema falando dos perigos de espalhar desinformações e a perpetuação de estereótipos sobre os povos indígenas como ele fez. Claro que o tal guru a bloqueou no Twitter.
Como plantar um meme em passo a passo.
#VanLife virou uma tendência entre os millenials nos últimos anos e soma mais de 12 milhões de fotos tageadas no Instagram. Mas afinal, como é viver numa van? A jornalista Caity Weaver escreveu um longo artigo afirmando que sua experiência foi muito melhor nas fotos do que na estrada.
Que delícia o relato do seu turning point como esquiadora, Lalai. Amei. Tá escrevendo cada vez mais gostoso, benzadeus! Esquiei com vocês.
O crepúsculo da democracia já foi para a minha lista de leitura.