Espiral #47: Mulheres grandes
Veneza, Bienal de Arte, Marlene Dumas, Reencontros, YYY, festivais, NFTs e algumas indicações sonoras
Trilha sonora para a leitura dessa newsletter: uma prévia do álbum “Spirit Exits”, da compositora italiana Caterina Barbieri, que será lançado no próximo dia 8 de julho.
Voltei recentemente das férias que tirei do meu dia-a-dia. Foram dez dias me dividindo entre o Primavera Sound Barcelona e a Bienal de Arte de Veneza.
Apesar dos perrengues, das andanças infinitas nas duas cidades, de tudo estar tão caro e do marido ter sido derrubado pelo coronavírus logo que chegamos na Itália, a viagem foi fabulosa.
Ver o grande mar de gente que é o Primavera Sound me causou desespero e alegria. Desespero por conta das filas para comer, beber e ir ao banheiro, da dificuldade de se locomover entre os quilômetros que separam os palcos, da muvuca e pela chance de perder shows que gostaria de ver. Alegria, por viver esse momento tão esperado, pela aglomeração despudorada, por poder abraçar todo mundo sem (muito) medo, de ver os amigos atravessando o oceano Atlântico para compartilhar dias de maratona de felicidade.
Cantar a plenos pulmões junto com a ensandecida e sorridente Karen O., do Yeah Yeah Yeahs: “Dance, dance til you're dead (dead), heads will roll, heads will roll, heads will roll, on the floor”, me fez cair aos prantos porque a felicidade mal cabia em mim. Há tempos eu não ficava de plantão num show para assisti-lo coladinha na grade.
Durante o dia, a esbórnia rolou solta com mesas fartas de tapas e vinho com todo mundo falando ao mesmo tempo. Eu estava sempre na mesa mais animada e, consequentemente, a mais barulhenta. Todo mundo tinha muitas histórias para contar após dois anos sem grandes encontros como este. Éramos todos a “simpaticona da boate”.
Depois segui para Veneza, a Rainha do Adriático, que sempre me deixa desnorteada com sua beleza exuberante.
Tirei a sorte grande. Além das ótimas companhias, fiquei num apartamento bem localizado à beira do Grand Canal com vista privilegiada.
O café da manhã era sempre tomado sem pressa para poder contemplar o canal com suas gôndolas e os vaporettos se resvalando pelas águas, que vão serpenteando uma fileira de construções renascentistas, uma mais bela que a outra.
É uma feliz coincidência um dos eventos de arte mais importantes do mundo acontecer em Veneza. Difícil é não se distrair enquanto nos perdemos por seus labirintos, onde não sabemos “se estamos perseguindo um objetivo ou fugindo de si mesmo”.*
De todas as bienais em Veneza que visitei, esta foi a minha favorita. A curadoria de Cecilia Alemani é impecável. São 1.433 obras de 213 artistas de 53 países diferentes. O tema “The Milk of Dreams” foi retirado do título do livro infantil da artista surrealista Leonora Carrington (1917-2011), que criou um mundo mágico onde a vida é constantemente repensada pelo prisma da imaginação. Virar outra coisa ou outra pessoa é totalmente possível.
A mostra tem três eixos temáticos: a representação dos corpos e suas metamorfoses, a relação entre indivíduos e tecnologias, e a conexão entre os corpos e a Terra. O resultado é belíssimo e nos “ajuda a imaginar novos modos de convivência e novas possbilidades de transformação”.
Essa bienal é sobre nós no passado, no presente e no futuro.
Nunca a vi tão lotada. Encontrei vários conhecidos pelos corredores, o que me fez ter a certeza de que os brasileiros tiraram o pó da mala e vieram em peso curtir o verão europeu. Em algumas salas a locomoção chegava a ser difícil, mas se a “arte existe para que a realidade não nos destrua”**, as pessoas estavam no lugar certo.
Sem qualquer menção no texto curatorial, vamos nos dando conta, enquanto circulamos pelas salas, que só artistas mulheres ocupam a exposição principal. De todas as épocas e lugares, inclusive do Brasil, como Lenora Barros. 90% dos artistas escalados para esta bienal são mulheres ou pessoas que se consideram não-binárias. Um grande aumento na participação ao comparar com a média de 30% de artistas mulheres presentes na bienal nos últimos 20 anos. Essa é provavelmente um dos assuntos mais noticiados, mas como prefiro a surpresa, só deixei para ler sobre a Bienal após tê-la visitado.
Eu me comovi por conhecer o trabalho de tantas artistas extraordinárias, como Mrinalini Mukherjee, Cecilia Vicuña, Merikokeb Berhanu, Ithell Colquhoun, Remedios Varos, Jane Graverol, Jana Euler, Christina Quarles, Charline Von Heyl, Lucia di Luciano, Ulla Wiggen, Paula Rego (que faleceu no último dia 8 de junho), Simone Leigh, Jamian Juliano-Villani, Lumturi Blloshmi, Aneta Grzeszykowska, entre tantas outras. Dê um google em todas elas.
Não me emocionei só com as mulheres, apesar de ter prestado muito mais atenção nelas. A coleção lindíssima do Jaider Esbell, as obras feitas com fios elétricos e componentes de computador de Elias Sime, o trabalho super contemporâneo do Tishan Hsu e a obra super sensível do português Pedro Neves Marques, me emocionaram também.
Mas foi uma alegria ver a mulherada tomando conta desta Bienal tratando temas urgentes desde há muito tempo, como racismo, feminismo, decolonização, identidade e gênero, através da pintura, fotografia, vídeos, instalações site-specific, esculturas, performance e até o videogame e a cultura do meme estão presentes.
Eu optei no último ano a dedicar meu tempo consumindo majoritariamente trabalhos feitos por mulheres - e de quem se identifica como, e passei a boicotar plataformas que não nos dão espaço. O Cercle, por exemplo, plataforma a qual eu já fui grande fã, eu deixei de consumi-la, já que praticamente só escalam DJs homens branco cis hetéro. Tem mulher? Tem, mas não deve passar de dez por cento.
A minha lista atual de festivais compreende os que têm paridade de gênero como um de seus pilares. Tenho preferido ler livros escritos por mulheres, assistido a filmes e séries em que as mulheres são as protagonistas, ouvido mais artistas mulheres, assinado newsletters escritas por mulheres, e por aí vai. E quanto mais consumimos conteúdo produzido por mulheres, mais mulheres geniais vão aparecendo na nossa roda que vão remodelando nossos pensamentos e trazendo novas reflexões.
Eu voltei exausta para Berlim após 10 dias andando em média 14 quilômetros por dia e consumindo tanto conteúdo potente, mas feliz e inspiradíssima por tantas mulheres grandes.
Eu agora sonho em voltar à Veneza no inverno, quando ela se torna “um negativo fotográfico do verão ensolarado. Uma espécie de ver-pela-primeira-vez. […] Veneza no inverno é metafísica, estrutural, geométrica. Destituída de cor.”***
The Sweet Escape (Veneza)
Em Veneza fui à exposição “open-end”, retrospectiva da artista sul-africana Marlene Dumas, no Pallazo de Grassi, que foi a cereja do bolo da viagem. São 100 obras apresentadas, a maioria pintura a óleo, todas contendo muita intensidade emocional e muita genialidade, que ao fim da visita eu estava sem fôlego. A obra de Dumas parte muitas vezes de outra obra, pode ser uma foto, um filme ou um poema, em que ela diz “usar imagens de segunda mão e a emoção em primeira mão.” Amor e morte, gênero e raça, inocência e culpa, violência e ternura, são as principais questões levantadas em seu trabalho, todo ele acompanhado de textos escritos brilhantemente por ela. Vale a pena conhecê-la.
Indico dois livros que proporcionam uma boa viagem à Veneza, um deles especificamente na Bienal de Arte, sem ir para lá:
“Marca D’Água”, de Joseph Brodsky, poeta-russo americano que visitou Veneza por 17 invernos consecutivos e hoje está enterrado na cidade. Mesmo com altos e baixos, este pequeno livro é uma reunião de textos aleatórios escritos a partir de suas visitas à cidade, com bastante poesia e, ora, momentos de pura arrogância. Tem até um momento “fofoca” quando vai com a Susan Sontag visitar a viúva de Ezra Pound. Compartilho aqui um dos trechos finais, o mais poético deles:
“[…] A água é igual ao tempo e dá à beleza seu duplo. Em parte água, servimos à beleza do mesmo modo. Roçando a água, esta cidade melhora a aparência do tempo, embeleza o futuro. É esse o papel desta cidade no universo. Porque a cidade é estática enquanto estamos nos movendo. A lágrima é a prova disso. Porque nós partimos e a beleza fica. Porque nos orientamos para o futuro, enquanto a beleza é o presente eterno. a lágrima é uma tentativa de permanecer, de ficar para trás, de se fundir com a cidade.”
“Jeff em Veneza, Morte em Varanasi”, de Geoff Dyer, é um livro com duas histórias narradas de maneira bem divertida. A primeira é uma história sobre um jornalista inglês totalmente cínico que vai à Veneza cobrir a Bienal de Arte e acaba sendo seduzido por uma galerista norte-americana, que transforma totalmente sua estadia na cidade. Cativante do início ao fim com referências ao “Venice Observed”, de Mary McCarthy, e “Morte em Veneza”, de Thomas Mann:
“Veneza, a cidade que nunca decepcionava e nunca surpreendia, o lugar que era extamente o que tinha de ser (só mais quente), sinônimo exato da primeira impressão que cada turista tinha dela. Não existia a Veneza real: a Veneza real era (e sempre havia sido) a Veneza dos cartões-postais, das fotografias e dos filmes. Nada nova essa observação.”
Para quem for visitar a Bienal de Arte ou apenas passear em Veneza, deixo uma dica de um restaurante que adorei, o Ristorante Casa Cappellari, um pequeno tesouro escondido perto da movimentada área de Rialto. E se Veneza estiver mesmo nos planos, separe um mínimo de 4 dias inteiros para poder aproveitar a vasta oferta cultural com exposições e eventos colaterais que estão rolando em Veneza.
Caso você ainda não tenha assistido “We are who we are” (2020), da HBO, vale a pena dar uma chance a esta excelente série, dirigida por Luca Guadagnino (“Call me by your name”) que é ambientada em Chioggia, nos arredores de Veneza. Infelizmente ela não será renovada. :(
I wanna rock you
Eu me emocionei com o projeto da foto com as escritoras mulheres tirada nas escadarias do Estádio do Pacaembú, o que a deixou ainda mais emblemática por ter sido feita num espaço que é ocupado majoritariamente por homens. Diversos textos sobre o que é ser escritora também chamaram a minha atenção e trouxe pra roda uma ótima discussão a respeito.
Enquanto eu pesquisava sobre Veneza, descobri que a Susan Sontag fez um filme que se passa por lá, Unguided Tour AKA Letter from Venice. É o quarto e último filme de Sontag, inclusive todos eles estão disponíveis neste link.
A plataforma Viberate lançou um relatório sobre os festivais de música na pós-pandemia. Foram analisados 330 festivais, que tiveram ou vão ter edição este ano, para traçar as tendências do segmento. Dos 100 artistas mais bookados, apenas 21 são bandas formadas somente por mulheres e/ou artista solo mulher. As mulheres dominam a categoria de música pop, enquanto na música eletrônica aparece apenas a Amelie Lens. O Rock in Rio Brasil foi considerado o melhor festival de rock do mundo, o Tomorrowland, o melhor de música eletrônica, e o Lollapalooza, o melhor de música pop.
Eu continuo botando fé nos NFTs, que concordo ter havido muita especulação, mas que a cada dia apresenta novas possibilidades de trabalhar com eles. Essa lista dos 100 maiores criadores e 100 maiores líderes de comunidades dá uma ótima pincelada nos tipos de projetos mais consistentes que têm surgido. Também aconteceu a badalada semana NFT.NYC, mas a empolgação parece ter diminuído em relação à primeira (o que eu vejo com bons olhos, porque me parece mais “pé no chão”).
Essa queda livre no mercado das criptomoedas pode ser um bom momento para separar o joio do trigo. Deixando de ter o dinheiro como motivação, podemos ter projetos mais relevantes surgindo de pessoas que acreditam e trabalham para desenvolver uma internet livre e descentralizada. O Pack McCormick está produzindo uma ótima série de artigos para esmiuçar a estrutura da Web3 e apresentar cases que podem nos ajudar a vislumbrar o futuro.
O Amora Livros é um novo clube de assinatura focado em literatura produzida por mulheres. Uma das coisas mais legais do clube é também dar espaço para novas escritoras, em que a cada mês traz minicontos produzidos por mulheres que ainda não publicaram um livro. O livro de junho é “Eliete: A vida normal”, de Dulce Maria Cardoso.
A Marina Colerato, criadora do Modefica, tem uma ótima newsletter, a Lado B, em que fala sobre “política, feminismo, ecologia, ódio, amor e outros assuntos - a partir de uma perspectiva pessoal”. E as novas newsletters que têm acalentado meus dias por aqui são: Queria Ser Grande, Mas Desisti, da Bárbara Bom Angelo; Vou Te Falar, da Carolina Ruhman Sandler; Segredos em Órbita, da Vanessa Guedes, que está agora fazendo o Caminho de Santiago; .flow magazine, da Luciana Andrade.
Para quem consome pesquisas e está sempre em busca de dados sobre o consumo de internet no Brasil, eu recomendo o Cetic, que mapeia domicílios, empresas, educação, etc, no país.
Quem estiver por Berlim no meio de julho, eu convido a conhecer o projeto em que estou trabalhando na produção, o CODESS, que acontecerá no Halle (Berghain), entre 15 e 17 de julho.
Compartilho 4 artistas que andam sendo minha trilha sonora aqui em casa: o álbum “high-gloss retrofuturist” “Jesus was an Alien”, de Perel, a DJ Liv (aka livwutang), que fez um set fenomenal e concorrido no último domingo no Panorama/Berghain, “Kilumi”, álbum da produtora e DJ queniana Coco Em, e, por fim, ARKHON, o novo disco da Zola Jesus. <3
Com esses dias de férias e agora recebendo amigos em Berlim, eu tenho lido menos do que o de costume. Por aqui, a leitura no momento é “Léxico Familiar”, da italiana Natalia Ginzburg.
Fecho com esta citação da Simone de Beauvoir que é tão atual diante dos casos horrendos contra as mulheres que continuamos presenciando todos os dias:
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida. - Simone de Beauvoir
See you soon! :) Obrigada por ter chegado até aqui.
Curiosidade: vocês gostam dos meus quase “easter eggs” musicais jogados que nem confete nos textos? Ou nem se deram conta de que eles existem?
Lalai, que demais a indicação! Obrigada! Sua news, para variar, um banho de cultura contemporânea e links preciosos. Amo!
Que boas dicas! Adorei saber do Amora livros :)