Espiral #55: Recriando origens
Tóquio, traumas, Björk, Death Cab for Cutie, IA, Charlotte Gainsbourg
Trilha sonora para esta newsletter: “Ancestress”, Björk
Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros. - Caio Fernando Abreu
Por muitos anos me perguntaram se eu tinha alguma ascendência asiática, mas o máximo que o oriente chegou à minha casa foi através da religião. Escolhido para ser o guardião da família, meu pai passou alguns anos trancado num seminário, mas se deu conta de que não tinha vocação para a vida celibatária, então fugiu de Minas Gerais para São Paulo no auge dos anos dourados.
Estabeleceu-se inicialmente na Liberdade, bairro conhecido por abrigar a maior colônia japonesa do mundo fora do Japão. Trocou a batina pela calça jeans e o Pai Nosso por um mantra que prometia transformar karma em acesso exclusivo à felicidade. Foi assim que nasci numa família budista. Aos 7 anos de idade eu já entoava mantras e canções infantis em japonês para o orgulho do meu pai.
Cresci em meio à comunidade japonesa, minhas melhores amigas eram todas japonesas, tinha como meta visitar o Japão antes dos 18 anos e falar japonês fluente, o que nunca aconteceu.
Meus anos rebeldes chegaram com o fim da adolescência me fazendo banir tudo que aludisse ao Japão. Dessa maneira, o país do sol nascente foi excluído da minha lista de prioridades. Perdi até a habilidade de comer usando hashi e “O marinheiro que perdeu as graças do mar”, de Yukio Mishima, foi o último livro vindo do extremo oriente que li por anos. Fechei os olhos para toda a cultura que me acompanhava há pouco mais de duas décadas, deixando até as amizades duradouras para trás.
Mas morando em São Paulo não consegui fugir por tanto tempo assim da cultura fascinante que é a japonesa. Na vida adulta, o Japão girava ao meu redor. Eu morava ao lado do consulado do Japão, o que trouxe alguns dos melhores restaurantes japoneses para perto de mim. Os DJs que eu levava para tocar no Brasil sempre tinham o bairro da Liberdade na lista de lugares para conhecer. A Japan House, projeto criado pelo governo japonês para difundir sua cultura milenar para o público internacional, era minha vizinha. Aos poucos eu fui fazendo as pazes de uma birra descabida que eu alimentava sem motivo.
O sonho de conhecer o Japão voltou tardio e virou uma meta de vida. Decidi então que iria para lá nas férias de 2013, mas um desvio de rota ocasionado por uma história de amor me fez trocar a viagem pela minha festa de casamento na Suécia. Ou eu casava, ou ia para o Japão. Foi esse meu trato. Concluí que, de fato, eu tinha contas a acertar com o oriente e temia o acerto.
Quando fechei o meu projeto de dar a volta ao mundo em 2016, o Japão foi um dos primeiros países a entrar na lista, mas um dos últimos a ser visitados. Eu precisava de tempo de preparo para o encontro. Também deixei para ele o maior tempo de estadia: 30 dias. Eu queria um mês todinho para me reconectar com uma cultura que ajudou a definir quem sou.
Nunca fiquei tão nervosa com uma viagem. Já no aeroporto eu soube que o voo estava com overbooking e achei que novamente minha ida seria adiada, mas o bilhete para o acertar as contas veio de camarote num inesperado upgrade para a classe executiva. Eu não só ia para o Japão, como ia sendo paparicada para chegar lá inteira o suficiente para encarar o que viria pela frente.
Pousei em Tóquio numa manhã fria de outubro. Uma bruma cobria a cidade que eu mal podia esperar para ver nua. Segui ansiosa para Takadanobaba, bairro de Shinjuku, longe do burburinho dos famosos cartões-postais da cidade, onde ficaria hospedada. Comigo viajavam o marido e uma amiga salva-vida que arranhava razoavelmente bem a língua japonesa.
O plano era ficar uma semana em Tóquio, 5 dias em Kyoto, duas noites em Monte Koya e uma semana em Takamatsu, base para conhecer uma trienal de artes que se espalha por 12 ilhas, incluindo as famosas Teshima, Naoshima e Shodoshima. Sapporo era a última da lista, mas a paixão por Tóquio nos fez voltar para mais uma semana na capital japonesa e o norte do país ficou para uma outra viagem.
Logo de cara eu senti uma intimidade surpreendente com o Japão como se fosse uma terra natal que abandonei ainda criança. Tudo era familiar e, mesmo não entendendo o idioma, ele soou acessível. Dei-me conta de que tinham traumas na mala para lidar. A comida, por exemplo, foi um grande desafio me fazendo apelar algumas vezes a refeições em restaurantes ocidentais, o que hoje me soa uma heresia.
Foram 30 dias conhecendo lugares espetaculares e me reconectando com uma Lalai que eu sequer sabia existir. Visitei um bar secreto num templo em atividade, tomei um típico café da manhã japonês servido por monges budistas, andei na escuridão noturna num cemitério com clima de filme de terror, rodei Tóquio de cima a baixo de bicicleta, jantei na casa de uma família típica japonesa com um iraniano tocando músicas lindíssimas de seu país, fui acolhida na rua por senhorinhas simpáticas que me ensinaram a escrever meu nome em kanji, visitei uma livraria que vende apenas um título de livro por mês, dancei até o amanhecer numa festa com o DJ Nobu tocando para um público de 50 pessoas, fui a lugares idílicos em Naoshima e Teshima, aprendi a enxergar na escuridão, chorei com gotas d’água se movendo sozinhas pelo chão, visitei campos de arroz, assisti uma cerimônia de casamento no Santuário Meiji, fui surpreendida por um Pikachu humano enquanto eu caçava Pikachu virtual e cruzei também com pessoas muito especiais que seguirão comigo pela vida toda.
Quando voltei a São Paulo, eu me dei conta de que não tinha visitado nenhum templo relacionado à minha antiga religião. Então senti que precisava voltar, porque não tinha feito meu acerto de contas. No ano seguinte (2017), eu fui passar 10 dias em Tóquio para resolver essa história conturbada de amor que eu tenho com o Japão.
Foi dessa vez que descobri pesarosamente que a linha budista escolhida pelo meu pai, que não o pratica mais, é uma seita muito mal vista no país. Numa visita a um templo xintoísta eu desabei logo que atravessei seu majestoso portão. Ajoelhei-me e entoei mantras enquanto buscava compreender o que, em meio à uma filosofia tão bonita, tinha me feito tão mal.
Enquanto eu chorava, as fichas caiam no meu colo. A imposição que eu senti na época, misturada à uma espécie de fanatismo que me sufocava, não me permitiu curtir minha vidinha ordinária de adolescente como eu queria. Meus finais de semana eram roubados com uma agenda lotada de compromissos religiosos, os quais nem sempre eu queria ir.
Mas não foram somente coisas ruins. A filosofia budista é muito bonita e, não só definiu muito o que sou, como me ajudou -e ajuda, a lidar com meus dramas existenciais. Gosto da essência do budismo, mas eu e minha família caímos nela através de um caminho torto, onde a filosofia não era uma das prioridades. Eu passei anos imersa em culpa e tendo pesadelos de que eu estava fazendo escolhas erradas ao não abraçar as obrigações que me eram impostas.
Eu fiz as pazes com o Japão, que no fim das contas foi apenas um pano de fundo pra um trauma que demorei a entender. Logo que retornei da segunda viagem, eu procurei meu pai, não para culpá-lo, porque ele também foi uma vítima, mas para saber o porquê depois de quase 40 anos de prática ele abandonou o budismo. Não ouvi nada que me surpreendesse, pois no fim das contas nós chegamos às mesmas conclusões, ele com mais propriedade do que eu.
Às vezes eu me afogo em lembranças desse passado, que parece ser outra vida ao mesmo tempo que foi ontem, quando atravessei o mundo para encontrar meu eixo.
“A saudade é o que faz parar o tempo”, escreveu Mário Quintana, e para mim o Japão segue suspenso.
Words and guitar
Estou no grupo das pessoas ansiosas pelo “Fossora”, da Björk, o seu décimo álbum que têm fungos como tema e começou a ser escrito em 2019. Depois de seu refúgio para o céu com “Utopia” (2017), ela retorna à terra afirmando que seu “período com os fungos tem sido borbulhante, divertido e com muita dança”.
O Mailchimp tem uma série de podcasts que dá para se perder neles de tão boas as propostas. Um deles é o “Listening” que apresenta entrevistas com artistas aclamados da música para falar sobre sons em geral. Um deles é com a Björk . Para fãs da artista, a plataforma lançou também um podcast dedicado ao conjunto de sua obra, o “björk: sonic symbolism”, em que cada episódio ela conversa sobre um de seus álbuns. É um banho de Björk.
Em 2018 o show da Sudan Archives no SXSW entrou na minha lista de melhores shows que vi por lá. Ela começava a despontar e na sequência estreou no Coachella num show superior ao primeiro que vi. Recentemente ela lançou o ótimo álbum “Natural Brown Prom Queen” e acabou de estrear no programa do Stephen Colbert com “Selfish Soul”.
Para promover o novo álbum “Asphalt Meadows”, o Death Cab for Cutie lançou um app com uma caça ao tesouro para seus fãs ouvirem em primeira mão a faixa “Rand McNally”, uma homenagem à famosa editora de mapas tão comuns na era pré-Google. O app traz um mapa com mais de 800 lugares que a banda tocou ao vivo nos seus 25 anos de carreira. O disco já foi lançado oficialmente, mas ainda é possível navegar pelo mapa e ver as casas de shows por onde a banda passou.
Meu pezinho no country, a Nikki Lane lançou álbum novo também: Denim & Diamonds.
Arisen my Senses
Sophia Papp sofreu um acidente de carro e teve um trauma cerebral que a deixou em coma por uma semana. Ao voltar à vida, sua personalidade estava completamente diferente da de antes do acidente. Ela tentou voltar a ser o que era, até que entendeu que precisaria se reinventar. Se você gosta do tema e ainda não viu, eu recomendo assistir o documentário emocionante “My beautiful broken brain.”
O The Verge deu uma super repaginada na marca e no site, que ficou com meio cara de Twitter, meio Discord. Estranhei, mas achei bem contemporâneo (se fosse outra época, seria notícia de capa de jornal).
Há pessoas que não acreditam que uma marca possa ser verdadeira em ações de impacto social e/ou sustentabilidade, o que me parece um pensamento velho, especialmente ao ver o empreendedor Yvon Chouinard abrir mão da sua marca Patagônia, que vale US$ 3 bilhões para causas ambientais.
Esta semana eu fiquei imersa no tema inteligência artificial. Recomendo o podcast “Diálogos sobre Inteligência Artificial”, com 6 ótimas conversas acerca do assunto partindo dos conceitos básicos.
Todas as imagens usadas nesta newsletter foram encontradas no Lexica, um buscador de imagens criadas por inteligência artificial no api Stable Diffusion. Para saber mais sobre a plataforma: “A arte está morta: O polêmico boom de imagens geradas por inteligência artificial”.
Para celebrar 100 anos de lançamento do filme mudo Nosferatu, o Sammlung Scharf-Gerstenberg abrirá a exposição “Phantoms Of The Night: 100 Years Of Nosferatu”, de 16 de dezembro a 23 de abril 2023. O mais interessante é que os visitantes poderão doar sangue para a Cruz Vermelha alemã no local.
O “The Feminist Institute” é um projeto que visa documentar e digitalizar obras feministas criadas nas artes, literatura, política e negócios, inclusive rolou um papo bem bacana com a Peaches nas entrevistas feitas pelo instituto. Para celebrar 50 anos de existência da A.I.R. Gallery, dedicada a obras produzidas por mulheres e pessoas não-binárias, lançaram também uma exposição no Google Arts & Culture.
Uma lista com as 276 plataformas “assassinadas” ou prestes a serem desativadas pelo Google.
Eu adoro filmes estranhos e num dia entregue à preguiça eu consegui ver dois esquisitões numa tacada só no Mubi. A temática em comum: feminismo. Para quem gosta das viagens que a sétima arte permite, eu recomendo “Jacky in the Kingdom of Women”, com a Charlotte Gainsbourg, que cria um mundo matriarcal, onde os homens são submissos. O segundo é o canadense “Babysitter”, uma comédia mesclada com horror psicossexual sobre misoginia e maternidade.
Terminei de assistir a divertida série alemã “Kleo”, no Netflix, com a excelente atriz Hanno Hackfot, que narra a história de uma ex-assassina da Stasi que é solta da prisão logo que o muro cai e vai atrás de respostas do que a levou para trás das grades. Não serve para quem quer levar tudo a sério. A série é exagerada, divertida e parece saída dos quadrinhos.
Adorei esse texto “Tamara Klink e o medo, a coragem e a teimosia das nossas travessias”, indicado pela newsletter “Queria ser grande”, que me lembrou o documentário “Maidentrip” sobre a história da velejadora Laura Dekker que, aos 14 anos, deu a volta ao mundo sozinha num veleiro. Vale a pena demais assistir, especialmente se você também se emocionou com a travessia feita pela Tamara Klink.
Finalizo com uma lista com 40 escritoras brasileiras contemporâneas para conhecer.
Neighborhood Threat
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Adorei saber da sua história! Continuaria a ler mais!
Adorei a sua história