Espiral #3: Onde está o futuro?
Na terça-feira eu tive um apagão. Estava na cozinha terminando o café quando senti minha pressão cair. Coloquei um pouco de sal na língua e caminhei trôpega até a minha cama. Deitei-me e fui coberta por calafrios. Enquanto eu tremia quase descontrolada, eu contemplava pela janela o céu azul cobalto que, de repente, escureceu e eu apaguei. Não sei quanto tempo durou, mas foi assustador e ao mesmo tempo bom ter me desligado de supetão do mundo.
Quando percebemos que o futuro não existe, emoções surgem envoltas de dúvidas incluindo uma ansiedade difícil de lidar. O isolamento escancarou meus fantasmas. É a primeira vez em pelo menos duas décadas que eu fico ociosa, que eu não tenho um projeto pra trabalhar e tenho tempo real pra pensar no que quero pra minha vida. Não sei lidar com isso. A cada semana vivo de um jeito diferente. A primeira foi com uma lista de leituras, filmes e com alguns cursos que quero fazer e não encontrava tempo. A única conquista da semana foi terminar um livro. Na segunda entendi que seria difícil fazer os cursos que eu queria, então focaria em um, faria yoga e aproveitaria para consumir um pouco desse entretenimento online que surgiu nos últimos dias. O resultado foi que passei uma semana numa grande balada que não terminou. A terceira semana chegou com o desmaio simbolizando um grito: para tudo, respira, desconecta. Passei dois dias praticamente entre a cama e o sofá, terminei o segundo livro, joguei, cochilei e comecei a listar coisas que me afligem no momento. Não coube numa folha.
Assisti parcialmente o curso "História da Arte: Paris Séculos XIX e XX" com Renato Brolezzi, na Casa do Saber. Parcialmente porque infelizmente ele faleceu antes do curso ser concluído. Nas poucas aulas eu me apaixonei pelo trabalho dele e de Gustav Courbet, artista de quem só conhecia as obras mais famosas. Brolezzi dá também nesse curso uma ótima aula sobre o surgimento do mundo moderno e do capitalismo a partir da Exposição Universal de 1889, quando foi inaugurada a Torre Eiffel. Ele faz uma ótima análise sobre esse novo momento que traz junto o tédio, a nostalgia, a solidão moderna. Enfim, recomendo muito você separar 3h30 e assistir aos vídeos dessas aulas. Foi uma das melhores coisas que assisti recentemente.
Larguei um pouco a pista de dança e entrei nas conversas. Tem várias incríveis rolando. O @shesaid.so, rede que reúne mulheres da indústria da música, promoveu um workshop sobre "Comunicação Hoje" com sua fundadora Georgia Taglietti (também Head de Mídia Internacional do Sónar). A pergunta que ficou do encontro foi "o que você está fazendo para se preparar para o próximo momento?". Ouvir essa pergunta mudou um pouco meu comportamento de ontem pra hoje. Junto com o tapa na cara veio um ânimo sobre esse futuro que em algum momento vai chegar. Ele não existe, mas vai existir.
O governo alemão liberou essa semana uma ajuda de 5 a 15 mil euros para freelancers e pequenos negócios. Foram 110 mil interessados, mas apenas 50 mil contemplados com o dinheiro que entrou na conta na terça-feira. A ajuda financeira é para 3 meses e está prevista uma outra rodada no fim do período.
Para mim essa ajuda sair tão rapidamente mostra que essa quarentena vai mais longe do que estamos imaginando. Duvido que a partir de 20 de abril a vida volte ao "normal". Aliás, muita gente tem falado pra se acostumar com esse "novo normal". Nada do que estamos vivendo é "novo normal". Estamos com o mundo em coma respirando por aparelhos. O "novo normal" só existirá quando o mundo acordar novamente.
Para mim, esse próximo verão foi cancelado. Os festivais de música também. Quem vai entrar num festival empacotado de gente daqui a 3, 6 meses? Podemos ter boas surpresas, mas por enquanto eu sigo pessimista. As marcas que sempre se aliaram à música têm agora a oportunidade de mostrar seu compromisso real com os artistas e fãs viabilizando a conexão entre eles. Tenho visto, na maioria das vezes, apenas artistas e a comunidade se estruturando sozinhos esses "palcos virtuais". Isso pode ser por conta do pouco tempo que as marcas tiveram para se adaptar ao novo momento, mas elas precisam ser mais ágeis, né? Para quem interessa pelo assunto, o The Drum promoveu o bate-papo "The power of music in creating connections in these anxious times". Participaram o Ben Lovett (Mumford & Sons), Andy Dougan (Geometry, agência de experiências) e James Kirkham, da Defected Records, que colocou em pé um festival transmitido ao vivo por 12 horas diretamente do Ministry of Sound. Não só as marcas, mas nós fãs também podemos dar uma forcinha para os artistas que gostamos.
Não vou estrear esse ano meu vestido vermelho num parque enquanto danço e canto "Wuthering Heights", da Kate Bush, com centenas de pessoas, mas sigo treinando aqui em casa. Tem sido uma das coisas mais divertidas que tenho feito. Convido vocês a tentarem também. Me contem depois!
O dia em que Susan Sontag e e Agnès Varda perderam a paciência, mas não a classe, e deram uma lavada no Jack Kroll (na época editor da Newsweek) que as entrevistou por conta do lançamento dos filmes que as duas estavam fazendo no 7º Festival de Cinema de NY. Btw, eu nem sabia que a Susan Sontag tinha feito filmes.
Que tal ajudar comunidades carentes que estão sofrendo com o coronavírus e não tem sequer condições de se isolarem? O Mídia Ninja fez uma lista brasileira de iniciativas.
Eu adoro o trabalho do produtor musical Max Cooper. Ele fez um dos melhores shows que vi desde que cheguei em Berlim. Para quem não sabe, ele é PhD em Biologia Computacional. Sua formação reflete bastante nos visuais que ele mesmo cria para sua música. É lindo de chorar.
Para quem está no Brasil: o Cine Belas a la Carte lançou uma promo de um mês de acesso gratuito à sua plataforma de streaming para assinaturas até 14 de abril. No cardápio apenas filmes cults e clássicos. O MUBE, plataforma só com filmes cults, também lançou promo no Brasil com 3 meses grátis. Já na Europa, o valor é 1 euro por mês durante o mesmo período.
Quem estiver procurando por um livro pra esquecer das horas, eu recomendo o "Pessoas Normais", da Sally Rooney. Não achei uma obra genial, mas a trama é intrincada com personagens bem construídos. A história acabou de ganhar uma minissérie de 12 capítulos no Hulu com estreia em 29 de abril. Mas se sua obsessão é como o mundo lutará contra o coronavírus, esse ensaio do Yuval Noah Harari é pra você. A Dolly Parton a partir de hoje estreia hoje seu programa com leituras de histórias para dormir.
Esse artigo resgatou minha antiga relação com os discos. Há um bom tempo temos ignorado o álbum como uma obra completa e ouvimos apenas "trechos" dela. O autor recomenda escolher três álbuns para serem ouvidos com bons fones de ouvidos na íntegra sem distrações. Eu escolhi o Cenizas do Nicolas Jaar. Depois disso, eu tenho diariamente ouvido um álbum na íntegra enquanto tomo o sol da tarde da minha cama. Tem sido um dos meus momentos mais felizes nessa quarentena.
Ah, fiz um guia semanal com um monte de coisas online bacanas que estão rolando.
Essa newsletter era pra ser apenas uma "lista" de coisas legais que estou lendo/assistindo/ouvindo, mas ela está sendo uma espécie de terapia. Desculpem-me por isso! Bye. <3