Espiral #16: viagem pós-quarentena
Viagens, Christo e Jeanne-Claude, teatro, música, drive-in e TikTok
The Pont Neuf Wrapped by Christo and Jeanne-Claude (1975-1985)
Sugestão de playlists para essa newsletter: Mutemixtape por Lee Ranaldo para quem está no mood eclético; Music for Airports do Brian Eno para relembrar dos momentos de espera por uma viagem ou Âme Saturnation Mix para quem quer dancinha.
A viagem à França abriu um baú de lembranças da época em que o país estava sempre na minha rota. Foram dez dias na estrada sem muitos planos. Castelos, cidades medievais, praias, dunas e até bunkers enterrados na areia fizeram parte da minha paisagem. Tudo isso regado a ótimos vinhos que resultou na semana triste (como diz uma amiga) de detox em que me encontro agora.
Viajar sem planos é uma forma de desapego, tema que tem regido a minha vida em 2020. Mudar de país nos força a isso. A quarentena ajudou a intensificar o exercício. Mas esse desapego me levou para um dos lugares mais mágicos que conheci nos últimos tempos: o Château de Chaumont-sur-Loire. O castelo fica na região de Blois e é ofuscado pelo seu esplendoroso vizinho Château Chenonceaux. Mas para quem gosta de arte contemporânea, o primeiro é deleite puro. É uma mini Inhotim escondida no meio do Vale do Loire. O que nos levou até lá foi uma fotinho que apareceu no meu Google Maps enquanto eu traçava a rota para o Chenonceaux. Bingo! Lembre-se sempre de seguir sua intuição.
Paris também não estava nos planos e acabou sendo o ponto final da viagem. Foram apenas 2 dias na cidade, mas com tempo suficiente para visitar minhas galerias de arte favoritas na cidade, tomar um Chablis no Le Progrès e ver a exposição “Christo and Jeanne-Claude. Paris!”, que tem o “empacotamento” da Pont Neuf como tema central. Entre objetos, pinturas e fotos, um documentário de quase 1 hora conta toda a história que envolveu esse primeiro grande “empacotamento” que a dupla realizou.
Foram 10 anos para Christo e Jeanne-Claude conseguirem a permissão para fazê-lo com dinheiro do próprio bolso. O filme conta também como o casal se conheceu, mostra as obras iniciais de Christo e a persistência que ambos tinham para colocar um projeto em pé. O que prova isso é o “empacotamento” do Arco do Triunfo previsto para 2021. O projeto levou 60 anos para sair do papel. Se não fosse a pandemia, Christo teria visto sua exposição e um de seus projetos mais ambiciosos realizado, mas infelizmente não deu tempo. Ele partiu antes. No dia seguinte da exposição eu almocei num simpático restaurante às margens do Rio Sena de frente pra a Pont Neuf para homenageá-lo.
“O acaso é, talvez, o pseudônimo que Deus usa quando não quer assinar suas obras.” - Theophile Gautier
Eu sempre fico entusiasmada demais com os lugares que conheço. Quando volto de uma viagem eu só quero falar dela. Contar sobre uma viagem é revivê-la, por isso eu gosto de contar as minhas, assim eu estou sempre viajando.
Essa viagem que fiz mostrou que as previsões que a gente tem lido sobre viajar mais localmente pós-quarentena estavam certas. Ao longo dos mais de 2.500 quilômetros que rodamos, vimos uns 3 carros além do nosso com placa de outro país que não era da França e praticamente só ouvimos francês. Por um bom tempo estaremos mais locais.
Tendências no turismo
Algumas tendências detectadas no mundo pré-pandemia farão mais sentido do que nunca: viagens transformadoras e com propósito, viagens solos e analógicas para detox digital, viagens para lugares mais remotos, mais conectados com a natureza e para lugares até há pouco tempo impensáveis, como para o espaço e até para temporadas no fundo do mar.
As viagens de trem e as road trips ganham força por conta do aumento da nossa consciência sobre o aquecimento global. A Easyjet, por exemplo, está trabalhando para ter sua frota de aviões elétricos voando a partir de 2030, assim como a Rolls-Royce planeja lançar suas aeronaves elétricas ainda esse ano.
E a globalização e o TikTok?
Neste momento estamos “desglobalizando” o mundo e não somente nas viagens. O TikTok correndo risco de ser banido dos Estados Unidos está aí para provar que não são mais as fronteiras fechadas que separam o mundo e sim a internet dividida.
Eu ando fascinada em como o TikTok está remodelando a indústria da música, avançado como ferramenta de educação e de ativismo social e político. Vemos no Brasil como a estética dos “desafios”, que movem a plataforma, estão direcionando as novas produções musicais. Hoje o objetivo é criar hits para o TikTok o que pode colocar uma música nos primeiros lugares nos charts. Não vai demorar para a história da música se dividir em era pré e pós TikTok.
Vamos falar de novo sobre as lives? Vamos…
Quem me acompanha aqui desde o início da quarentena sabe o quanto fiquei obcecada pelas lives para entender para onde elas estão indo (e se estão indo).
A indústria do entretenimento tem se ajustado muito rapidamente ao novo cenário criando arenas digitais cada vez mais sofisticadas, em especial para abrigar eventos de música.
Turnês online e pagas serão cada vez mais comuns com calendários de apresentações “locais”. Ou seja, a partir de geolocalização são feitas apresentações distintas para cada região/cidade/país (e até mesmo dividindo por fuso horário). Uma das precursoras do formato é a Laura Marling que fez uma mini turnê online no início de junho. A artista, que teve 41 shows cancelados por conta da Covid-19, fez 2 apresentações na Union Chapel em Londres com um show para o público europeu e outro para o público dos Estados Unidos. Todo os 4 mil ingressos foram vendidos a 14 libras cada.
Para resolver o problema da espacialidade que as plataformas digitais como Instagram, Facebook e Youtube têm, cada vez mais surgem espaços 3D oferecendo uma experiência muito mais imersiva.
Philip Rosedale lançou em 2016 o High Fidelity, ambiente virtual muito mais sofisticado que sua criação anterior, o Second Life. A gente mal ouviu falar dele na época, mas agora o High Fidelity tem potencial para ganhar espaço para abrigar eventos imersivos que respondem aos três pontos cruciais da espacialidade: a presença, o movimento e o mapa (o espaço em si). Ou seja, você tem ambientes diferentes, se movimenta por ele e conversa com as pessoas que estão ao seu redor (quanto mais longe no ambiente, menos você escuta como no mundo físico). Utilizando o mesmo conceito, a agência brasileira Hood lançou o Tromaverso. Um amigo afirmou ter tido nele a melhor experiência de festa virtual até o momento.
A Sony tem apostado alto no universo dos games há algum tempo. Ela acaba de investir 250 milhões de dólares na Epic Games (Fortnite e Unreal Engine). Dizem que tem projeto secreto rolando aí.
Na semana passada rolou o festival Lost Horizon (a área Shangri-la do Glastonbury) no Sansar, outra plataforma 3D criada para abrigar eventos ao vivo, essa possível de ser usada com VR. Nessa mesma linha, o Hacienda ganhou sua versão em realidade virtual e até a festa brasileira Gop Tun ganhou a Fabriketa em 3D numa plataforma proprietária.
Para quem quer saber mais se o video game é a nova casa de show, eu recomendo ouvir esse podcast.
Indo na contramão disso tudo, o Lollapalooza Paris se reuniu com a Balmain para criar uma edição do festival por um dia com um belo piquenique. Se eu não andasse escondendo os euros no fundo da gaveta, eu me aventuraria por lá.
“Eu quero sonhar
Eu tenho direito de sonhar
Eu quero o meu futuro
Um sonho que possa me levar, me conduzir, com suas asas, com suas grandes asas de euforia, de otimismo e de prazer em direção ao meu futuro
Quem?” - Renata Sorrah - Em Companhia
O teatro tem se saído muito bem nessa jornada e ouso dizer que está criando uma nova forma de arte, já que misturam teatro, performance e/ou um novo “cinema ao vivo”. Assisti ao espetáculo “Peça”, com Marat Descartes, e foi um soco no estômago, diferente de tudo que já vi. Chega a ser claustrofóbica em vários momentos. É um monólogo potente em que o ator consegue navegar por vários tempos e lugares diferentes.
O Sesc também lançou a série “Em casa com o Sesc” com uma lista de espetáculos, muitos deles traduzidos do físico para o digital de maneira impecável. Não consegui ver todas ainda, mas “Desconcerto”, com o Matheus Nachtergaele; “Mãe Coragem”, com Beth Coelho e “Em Companhia”, com Renata Sorrah já estão entre as peças favoritas que vi.
Outra peça que está na minha lista é “Tudo que coube numa VHS”, do grupo recifense Magiluth, que promete uma vivência cênica diferente. Ainda não conciliei com o meu fuso horário.
A dança também encontrou o seu lugar para criar espetáculos no meio do lockdown. Tem muitos exemplos, inclusive deixo aqui o “Swan Lake Bath Ballet”, que é belíssimo. Não assisti nenhuma live de dança, apenas espetáculos gravados nesse novo formato. Alguém assistiu algo? Me conta?
Foi lançado o report “Culture and Community in a Time of Crisis” em que entrevistaram 124 mil pessoas com o objetivo de entender os pensamentos sobre o papel da cultura pós-pandemia. Os resultados não são bons, mas trazem um bom panorama dos desafios que o setor enfrenta.
Gente, mas e o drive-in?
O drive-in é a onda da vez na solução física, mas eu aqui com os meus botões não boto fé que ele tem um futuro glorioso como essas novas arenas digitais. Eu vejo o drive-in como paliativo enquanto o distanciamento social é necessário, mas é uma solução elitista (e não muito sustentável). Não tenho dúvidas que ele continuará a existir, mas não na profusão como agora.
No Brasil os drive-ins já começaram a ter problemas com direitos autorais como aponta esse artigo sobre como os filmes piratas estão se multiplicando por eles nessa quarentena. Mas é o que tem de seguro pra hoje e o drive-in tem se espalhado mundo afora. Marcas como Walmart também tem surfado essa onda oferecendo projetos de verão para a família toda com seus drive-ins particulares.
Já rolou até drive-in para abrigar uma rave religiosa em Seattle com aprovação do governo local. Mas a ação mais divertida que soube de drive-in foi essa performance de terror que está rolando no Japão.
O tempo continua voando, não é?
Esse artigo da Reuters analisa porque o tempo soa tão diferente em 2020 distorcendo nossa noção dele. Tem vários testes ao longo do texto que provam que sim, estamos vivenciando o tempo de um jeito diferente. Eu me senti o perfil da aposentada. Por aqui a rotina, que há tempos não fazia parte do meu dia-a-dia, está fazendo meus dias voarem. Esse é, inclusive, o tema da próxima edição da Casa TPM que será totalmente digital.
Ufa, chega, né? Mas antes de ir eu deixo aqui um pouco de inspiração:
Para relaxar dê um play nesse vídeo de uma vivência de dança estática (que eles chamam de “Cacao Dance”) muito linda no meio da floresta na Guatemala. Deixe seu corpo se levar pelo ritmo. Garanto uma dose de felicidade se você se deixar ir.
Ou jogue na TV essa live do Monolink que rola acompanhada de uma linda viagem aérea por Berlim.
Na minha nota de leituras pendentes tem:
- It’s 2022. What does life look like?
- Imagining the live of others
- The Vampire Problem
- O rock está vivo. Mas por que se tornou clássico e com fama de conservador?
- Next gen entertainment
- A nova edição do MJournal da Igi Ayedun
- How the pandemic will shape the near future by Bill Gates
É isso! Tchau e obrigada por ter chegado até aqui. :)
“O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar” - Milton Nascimento
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