Espiral #17: o poder do som e da escrita
A influência da música sobre nós, som 4D, escrita afetuosa, wabi-sabi, a percepção do tempo
MONOM: foto divulgação
Um show do Bonobo no Melt de 2017 como trilha sonora para essa newsletter.
Eu me conectei com a música mais do que nunca durante essa pandemia. Foi ela quem me salvou várias vezes durante minha quarentena. Na primavera o sol entrava pela janela do meu quarto por volta das 17h. Todos os dias nesse horário eu mergulhava em sua luz esparramada pela minha cama. Para acompanhar esse momento eu comecei a ouvir um disco na íntegra todos os dias. O primeiro foi Cenizas, do Nicolas Jaar, que tinha acabado de ser lançado. Eu fui tomada por uma emoção e felicidade tão grandes que fiquei lá deitadona no meu sol particular com um sorrisão teimoso na cara. Foi tão bom que fiz várias viagens pelo tempo e pelo mundo resgatando álbuns que marcaram a minha vida durante meu banho de sol diário. Você sabia que a música que ouvimos entre os 10 e 30 anos de idade é o que nos define pelo resto da vida? Isso diz muita coisa sobre como eu me sentia nesses dias.
A música, como sempre digo, move a minha vida mesmo quando ela não está tocando. Às vezes eu escolho o silêncio, mas ele sempre vem acompanhado de sons. É o zumbido amiudado nos meus ouvidos me lembrando dos anos em que o grave orbitava a minha vida, é o barulho contínuo quase inaudível da geladeira, os pássaros de plantão na minha janela, o som do teclado, o trem que passa a alguns metros da minha casa, o farfalhar das folhas, as vozes nos corredores, o rangido da escada do meu prédio. A ausência de som não existe para mim, por isso gosto de ter música em volta.
Na semana passada eu retornei ao MONOM, um local de experimentação de som espacial (4D) formado por 57 caixas de som, sendo 9 subwoofers (o grave) posicionadas no chão debaixo de uma grade por onde a gente anda, senta ou deita. Fica à nossa escolha como queremos vivenciar essa experiência sonora. Não é lugar pra festa. É um templo para quem ama som. Esta nova temporada traz apresentações de peças de “esculturas sonoras”. O convite é para um mergulho no nosso inconsciente promovido pelo som. Pode ser uma viagem linda se você se permitir ir. O som e suas vibrações podem nos mover para lugares inesperados. Caso um dia você venha pra Berlim (ou esteja aqui e nunca tenha ido lá) eu recomendo: não deixe de conhecer.
Essas experiências que eu tenho tido com o som me faz acreditar na meta do Elon Musk de transmitir músicas diretamente para o nosso cérebro sem interferência de um fone de ouvido ou de qualquer objeto externo. Eu não sei como ele fará isso, mas desde 2016 já existem óculos (Bose e Zungle) com sistema de áudio em realidade aumentada acessado via bluetooth. A qualidade do som e a experiência com os óculos é incrível. É um outro jeito de ouvir/sentir a música. O problema é que você não quer tirá-los.
Antes de eu pular para auto-ajuda e a escrita, eu deixo a música Instante, do Nuven, para você acompanhar a leitura.
Sempre tive preconceito com auto-ajuda, mas nesse momento é o que me resta. Não tenho achado ruim. Ao contrário, eu tenho me inspirado e me animado bastante com o assunto. A minha auto-ajuda tem sido a escrita que, além de ter um poder gigante sobre a gente, nos conecta genuinamente com o outro. Essa newsletter tem sido um grande exercício para me conectar com amigos e desconhecidos.
Eu tenho buscado nessa fase “auto-ajuda” exercer a minha criatividade. Minhas amigas Amanda e Dani Arrais falam com muita empolgação sobre as páginas matinais que ambas têm feito. As “páginas matinais” são um dos exercícios sugeridos pela Julia Cameron no livro “O Caminho do Artista”. Por 12 semanas escrevemos diariamente 3 páginas (à mão preferencialmente) como primeira atividade do dia. A ideia é soltar tudo o que está vagando pela nossa mente. O objetivo não é aperfeiçoar a escrita e sim liberar a criatividade.
Eu posterguei o quanto pude, mesmo com uma coceirinha pra começar as minhas páginas. Como o meu mundo tem girado em torno do “acaso”, caiu nas minhas mãos o podcast “O caminho do artista” focado no livro. São 12 capítulos, cada um dedicado a uma semana do curso. O podcast segue exatamente essa ordem. Ouvi, me animei e comecei a fazer minhas páginas antes mesmo de começar a ler o livro (que agora estou lendo). Estou completando minha primeira semana e tem sido um exercício maravilhoso. São 45 minutos meditativos que eu recomendo bastante.
Como tenho usado a escrita como um exercício pra tudo na minha vida nesse momento, eu me deleitei um bocado com o bate-papo com a Ana Holanda, editora-chefe da revista Vida Simples, sobre escrita criativa e afetuosa no podcast “Arte de inspirar”. Nesse TEDxSP ela conta como a escrita afetuosa pode transformar a nossa vida. Aqui está dando certo.
Os dois podcasts que citei acima me levaram ao filme “O poder da coragem”, da Brené Brown, na Netflix. Eu não a conhecia e me emocionei. O filme é na real uma palestra sobre a importância de assumirmos nossa vulnerabilidade, pois sem ela não criamos e nem inovamos. Para a Brené não existe coragem sem vulnerabilidade. É uma aula! Não deixe de assistir, principalmente se você anda aí na corda bamba como eu.
O Kalaf Epalanga é um artista que pratica bem a escrita afetuosa. Sempre que eu o leio, eu sinto como se estivesse sentada com ele conversando e ele ali me contando as histórias que escreve. Aliás, descobri que ele mora em Berlim. Espero um dia cruzar com ele e, quem sabe, tomar uma cerveja juntos para ouvi-lo ao vivo. Ele e o Tricky, que mora aqui também.
“O destino da Patti Smith”, resenha dos livros “O ano do macaco” e “Devoção” feita pela revista Quatro Cinco Um, toca bastante na relação da Patti Smith com a escrita:“Quando comecei a escrever estas palavras eu ainda não sabia, e é possível avançar ou retroceder, mas o tempo dá um jeito de continuar passando, tiquetaqueando, coisas novas que não se podem alterar, não se podem processar rápido o bastante. (...) você escreve no tempo e então o tempo passou e na tentativa de agarrá-lo você escreve um livro totalmente diferente.” A música, onde ela se consagrou, foi a mídia que ela usou para propagar a sua escrita. Hoje ela afirma em “Devoção”: “Sou só uma escritora.”
Wabi-Sabi: a beleza nas coisas simples, na imperfeição e na impermanência….
Tenho me conectado com a natureza este ano mais do que me conectei com ela nos últimos dez. Essa conexão me traz um tempo diferente no meu dia-a-dia. Passei a perceber a mudança lenta e diária em cada uma das árvores que moram na frente da minha janela. Talvez por isso, esse podcast com a Luisa Matsushita (aka Lovefoxxx) me tocou de maneira especial. Ela, que passou uma década na estrada com a banda CSS viajando o mundo, trocou toda a agitação e hype por uma vida auto-sustentável em Garopaba. Ela construiu uma casa de 12m2 (que ela chama de barraco), fez um banheiro seco e tem seus sistemas próprios de água e esgoto.
Não estou pensando em fugir pro mato. Gosto da cidade, mas tenho gostado de ter as duas coisas tão próximas. Estou lendo o livro “Wabi Sabi”, de Beth Kempton, que explica sobre esse conceito/pensamento japonês permeado pela natureza que, muito resumidamente, é sobre simplicidade, imperfeição e impermanência. O povo japonês reverencia e enxerga a natureza como uma extensão de si mesmo. Para mim é também. Hoje a newsletter da Pen trouxe como sugestão um texto sobre Wabi-Sabi. Olha o “acaso” aí me rondando.
Como anda o seu tempo?
O tempo tem sido um dos temas mais recorrentes nas discussões nessa pandemia. O coronavírus criou seu próprio relógio. Há muitos textos sobre o assunto:
O The Atlantic trouxe um texto do Ai Wei Wei sobre o tempo ter perdido seu significado nessa época de pandemia. Nele, o artista questiona o que é o tempo, fala sobre as novas rotinas que cercam o nosso dia-a-dia como contagem de mortos, perda de empregos, cidades vazias e a natureza voltando a ocupar o seu lugar. Para o escritor brasileiro Julián Fuks este “é um tempo de falências em que a pandemia provoca a ilusão de um futuro desfeito”.
O Nexo publicou um artigo sobre a alteração na nossa percepção do tempo: “Os “tempos do coronavírus”, na realidade, consistem em diversos tempos, como “o tempo de lockdown”, “a quarentena” ou “o tempo em home office”. Aprendemos a viver esses novos tempos presentes. Essas lições são profundamente pessoais e diferem para cada família. Ainda assim, fala-se de uma experiência compartilhada em todo o mundo.”
O artista Scott Thrift criou o projeto de arte “The Present” em que mostra a alteração do significado de tempo. Para ele minutos e horas não fazem mais sentido.
Para mim o tempo tem voado. Quando me dou conta de que fiquei quase 90 dias em quarentena e já faz quase dois meses que eu saí dela, eu me surpreendo com quanto tempo soma tudo isso. Meu tempo de isolamento parece distante. Mas tem cientista que afirma que o tempo passa mais devagar na quarentena. Como foi ou está sendo pra você?
Aquelas rapidinhas (nem tão rapidinhas assim porque eu não consigo) pra fechar:
O Youtube vai produzir uma nova edição do documentário “Life in a day” dirigido também pelo Ridley Scott. Para participar, basta filmar a sua vida no dia 25 de julho. Depois é enviar seu filme até 2 de agosto e aguardar resposta se ele entrará no documentário.
Já ouviu o termo “droomscrolling”? Mesmo se não ouviu, já pode imaginar do que se trata: Ler obsessivamente sobre as desgraças que estão rolando no mundo. Obviamente o “droomscrolling” nos causa ansiedade. A NPR publicou um pequeno guia de como evitá-lo.
Algumas janelas pelo mundo para viajar e inspirar um pouquinho.
A revista Maggot Brain, do selo Third Man, foi liberada para baixar gratuitamente e é ótima para descobrir novas sonoridades.
O Ola, meu marido, sempre ri gostoso quando lembra da canção “Eu bebo sim”, da Elizeth Cardoso, por ela ser tão politicamente incorreta. Elizeth se estivesse viva faria 100 anos. Em comemoração à data estão sendo lançados em streaming 26 de seus 44 álbuns dessa grande artista que não teve o reconhecimento merecido. Se a tristeza bater aí, ouça o belíssimo álbum “Momento de Amor”, de 1968.
A revista “the Paris Review” está digitalizando seu extenso acervo. Nesse artigo de 1984 você pode conferir uma galeria de fotos do Andy Warhol com comentários dele sobre cada uma.
Duas exposições brasileiras para ver online: “É melhor já não ir se acostumando”, da galeria Utópica, que traz 34 artistas e o Brasil de hoje; e “Como habitar o presente - Ato 1: É tudo nevoeiro codificado”, da galeria Simone Cadinelli, que apresenta uma reflexão sobre o tempo de agora em seu texto de abertura: “Esta é uma exposição dividida em dois atos, que acontece em um mundo pandêmico onde a noção de tempo, passado, presente e futuro parece estar dilatada. Neste sentido, convido a pensarmos em uma distensão do tempo, onde habitamos três presentes: presente do passado (memória), presente do presente (atenção) e o presente do futuro (expectativa).”
Neste fim de semana será lançado o show “World’s on fire”, do Prodigy, na íntegra por 48 horas. Já deixa o lembrete ativado pra não esquecê-lo.
Vocês viram que a The Black Madonna mudou seu nome artístico para The Blessed Madonna depois de ser pressionada por uma petição online?
Por dentro da primeira arena construída focada no distanciamento social. The Libertines é uma das bandas que tocará por lá. É bem estranho e para poucos que possam bancar.
Será que o futuro nos traz shows assistidos dentro de bolhas ou usando armaduras hi-tech pra se proteger? Só sei, que se tudo der certo, neste finde vou ver um show de jazz. Se rolar, eu contarei como foi.
Um dos fundadores do Lollapalooza, William Morris Endeavor, está bem pessimista com as previsões de shows ao vivo. Pra ele, os shows e festivais não retornam antes de 2022. Só queria mandar uma mensagem pra ele pra contar que em agosto estão previstos 3 dias do festival Aware aqui perto de Berlim. Vamos ver se vai rolar mesmo.
A Folha de São Paulo lançou o blog Sons da Periferia pra ajudar a gente a sair da bolha.
A Carolina Maria de Jesus terá seus livros publicados pela Companhia das Letras, mas “Quarto de Despejo”, livro que a consagrou não está na lista.
Morreu a fotógrafa Vânia Toledo, que com “seu flash pegajoso varreu as boates do chão ao teto” e fotografou o Andy Warhol.
Rindo um pouco com a Laurinha Lero e seu Diário de Quarentena.
Se você chegou até aqui, obrigada. Lembrando que críticas, comentários, sugestões ou mensagens pra jogar um pouco de conversa fora comigo são bem vindas.
Tchau! :)
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