Espiral #40: Está todo mundo exausto
Os discos e livros que mais gostei em 2021 e umas rapidinhas para não perder o costume.
Para ouvir lendo esta newsletter: O DARKSIDE (aka Nicolas Jaar e Dave Harrington) fez uma trilha bem especial para a Espiral, o “Spiral”. Apenas coincidência, mas esse álbum tem muito a ver com as sonoridades que me acompanharam em 2021. :)
A chegada
O céu está num tom azul calcinha calmante que deixou um sorriso no canto da minha boca. O sol está prestes a se por dando arrego aos 37 graus que há muito tempo eu não sentia. Uma leve brisa entra pela janela trazendo um som repetitivo de clarinete. Alguém deve estar aprendendo a tocar. Ouço a sirene de ambulância muito diferente da escandalosa que costuma rasgar as ruas de Berlim. Mais lenta, contrastando com o ritmo da cidade. À minha frente, um prédio de fachada recortada rosa bebê divide minha atenção com uma construção curvilínea aos fundos que faz todo mundo olhar para trás quando passa por ela. Estou em São Paulo.
Na rua ainda estranho ter que usar máscara, já que nos restaurantes e bares que entro, ninguém checa se estou vacinada e me deixa dividir o salão fechado, às vezes com o ar-condicionado bombando, com estranhos sentados muito próximos à minha mesa. Mas entendi que usar máscara hoje é um ato político.
São Paulo e eu estamos diferentes. Não somos mais as mesmas desde nosso último reencontro. Não faz tanto tempo, mas desde então eu ganhei uns quilos, umas neuras, as pálpebras dos meus olhos avançaram, um ar cansado está mais presente em mim. Sinto-me exausta. São Paulo está mais vibrante, ansiosa e um pouco esquizofrênica. Suas feridas estão abertas e sangram muito. Enquanto um lado vibra, outro cai em abandono. Dizem que São Paulo está mais perigosa. No táxi rola uma conversa sobre quantos segundos levam para roubar seu celular se você ficar parada com ele na mão numa esquina do Centro. O meu vive na pochete enquanto estou na rua.
O medo e a ansiedade que me acompanharam na minha última visita estão presentes de um jeito diferente. Às vezes lembro que estou na minha cidade natal e relaxo, mas sigo nos altos e baixos como a pandemia. Sinto um comichão em alguns momentos. Por que mesmo você deixou essa cidade tão parecida com você para trás?
Quando cheguei ao Brasil, eu e o meu marido nos demos um tempo de duas semanas, afinal quem sai saudável de uma convivência 24x7 durante 1 ano e meio? Eu estava precisando respirar, ele também, mas gentil como é, continuou negando e declarando saudades. Foi bom senti-la um pouquinho. Fez bem para o coração e para a relação. Estou apaixonada de novo.
Reencontrar a família é sempre uma montanha-russa de emoções. Mato as saudades e me encho de culpa de tê-la deixado aqui. Voltar é sempre encontrar os pais mais idosos do que os deixamos. Voltar é sempre duvidar de que fizemos a escolha certa.
Logo que cheguei, precisei reunir a coragem e a família para juntos decidirmos a partida do Sadam, sim, Sadam, o cachorro que estava com a família há 16 anos. Antes, porém, ponderei: Quem sou eu para decidir sobre a vida de um animal? Mas aí eu lembrei que sempre que me vem aquele medo de que algo possa me deixar inválida numa cama, eu falo baixinho para o Ola (o marido): Por favor, você trate de fazer algo e me livrar dessa se isso acontecer.
Eu cuidei de tudo e foi muito difícil. Ganhei garganta inflamada, tosse e um corpo atropelado por um caminhão. Foram dois dias de cama. COVID? Influenza? Passadas 48 horas e uma noite bem dormida, eu ressurgi como uma fênix. Meu pai mostrou sinais de alívio pelo cachorro e por mim. Chorei como criancinha. Coloquei para fora a dor da partida do Sadam e de tantas outras dores acumuladas neste último ano.
Estou há um mês ocupada em São Paulo. Ainda não vi o mar e nem fiquei um dia na preguiça como sonhei. Como disse uma amiga sobre a sensação de voltar para São Paulo, “a sensação é estar fazendo aniversário todos os dias”.
Eu termino 2021 exausta, exausta, exausta. Percebo que a maioria à minha volta se sente assim também. Mas ao lado desta prostração eu enxergo sinais de esperança (só de pensar que teremos eleições!). Está todo mundo exausto, mas sinto muita gente confiante de que 2022 será um ano melhor. Eu estou neste time! E você, em qual está? Não sei o que será, mas pior do que foram os últimos dois anos não poderá ser, porque se for pior, o mundo acaba.
Evito fazer planos, porque nos últimos dois anos em que fiz, eles foram quase todos por água abaixo. É muita frustração, então decidi que o plano é não ter plano. Já começou a dar certo! Novas notícias começaram a chegar.
Eu passei 2021 nos trancos e barrancos. Fui ao inferno, que nós somos, durante esta pandemia e voltei! Foi bom vir para o Brasil tomar sol, me reconectar com minhas raízes e matar tantas saudades que mal couberam na mala. Isso revigora qualquer pessoa. Tem me feito rir mostrando todos os dentes da boca e agradecer, porque no fim das contas eu sobrevivi, você sobreviveu, nós sobrevivemos. Seguimos adiante!
Música para ouvir nas férias
Compartilho o melhor da minha lista com discos e rádios que fizeram a alegria do meu ano, alguns deles bem “pianinho” ou numa linha mais experimental, que geralmente meus amigos chiam: “Lalai, coloca uma música pra tocar”.
O Mix de Larry Heard: Impossível falar de house music sem mencionar o Larry Heard (aka Mr. Fingers). Eu, que andei bem housera em casa, deixei ele no repeat e acabei ganhando esse mix perfeito para animar qualquer festinha em casa. Na mesma linha, a rádio Missing You também animou os pequenos encontros na minha casa durante a quarentena. E, de última hora, esse set reboleiro do Tornado Wallace (obrigada Gab!).
Biała flaga, de Hania Rani & Dobrawa Czocher: Álbum de 2015 lançado remasterizado, ótimo para momentos tranquilos (ou para ajudar a acalmar, funciona até para meditar). A pianista polaca Hania Rani foi uma das artistas que mais estiveram perto de mim em 2021, tanto que o primeiro show ao vivo que vi neste ano foi o dela. Lindo de morrer como esse álbum.
Parallels: Shellac Reworks by Christian Löffler: Este álbum é resultado de um projeto ousado produzido pelo meu crush alemão como um tributo ao Beethoven. A gravadora alemã Deutsche Grammophon tem um dos acervos de som mais antigos do mundo, incluindo uma coleção de discos de 78 rotações, comuns até os anos 1930. Este acervo foi restaurado em colaboração com o Google Arts & Culture e disponibilizado para Löffler, que o levou para seu estúdio e produziu o novo álbum a partir de músicas lançadas há 100 anos. O resultado é belíssimo e é possível criar sua própria versão da faixa “Moldau”. O show dele foi o segundo que vi ao vivo em Berlim este ano. <3
Promises: Floating Points / Pharoah Sanders / The London Symphony Orchestra: Álbum que me comove sempre que ouço, um dos mais bonitos do ano!
Ouvi muito o Curses, produtor baseado em Berlim, que toca sempre por lá e faz o tipo de set que amo: EBM. É só dar play que começo a dançar na sala (ou bater cabeça). “Surrender” provavelmente foi uma das músicas mais ouvida nos últimos meses.
As novidadeiras de 2021 que me encantaram não foram poucas: O esquisitão “Fatigue”, da L’ Rain; o batidão eletrônico “Isles”, do Bicep; a boa surpresa “Meu Coco”, do Caetano Veloso; o potente “Delta Estácio Blues”, da Juçara Marçal; o ensolarado “Na Lagoa”, dos amigos Xique-Xique; e dois dos melhores do ano, “Trava Línguas”, da Linn da Quebrada, e Vulture Prince, da Arooj Aftab, inclusive recomendo este NPR Tiny Desk com ela.
As expectativas para 2022 estão no lançamento de “TOO”, o novo álbum do duo austríaco HVOB anunciado para ser lançado no primeiro semestre. Já estou adorando os singles. Quem estiver em Berlim, poderá curtir o início da tour comigo no dia 22 de abril.
O artista que mais ouvi foi “The Avalanches”, porque o disco de 2020 é pure joy! E aqui as 100 músicas mais ouvidas por mim em 2021.
Livros para ler nas férias
Mantive a meta de 2020 e li bastante em 2021. Muitas vezes optei por livros nascidos para serem lidos à beira da piscina ou na praia, porque eu precisava de distração, leveza e/ou dar risadas. Mas também me afundei um pouco na filosofia, na sociologia e em temas espinhudos:
Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera, Giselle Beiguelman. Uma coleção de ensaios que exploram sobre a sociedade mediada por imagens que vivemos e pela vigilância que sofremos das grandes corporações. Imagem digital, selfies, memes, deep fake, internet das coisas, inteligência artificial e censura digital estão todas presentes na leitura cheia de referências artísticas para ilustrar as reflexões. Dele, eu parti para o “O Instagram está padronizando nossos rostos”, Camila Cintra, que foi um ótimo complemento do livro.
Favor fechar os olhos: Em busca de outro tempo, Byung-Chul Han: Livro curtinho acerca do encolhimento do tempo que reflete sobre “as vantagens de fechar os olhos para buscar um tempo menos focado em si, e mais voltado ao outro”.
O ano do pensamento mágico, Joan Didion: O livro narra a história da autora sobre o ano após a morte repentina do marido. É uma história sobre luto escrito de uma maneira simples e poética falando sobre como a nossa vida pode mudar após perder alguém tão próximo da gente.
Suíte Tóquio, Giovana Madalosso: Leitura vertiginosa em que a autora “constrói a história de vidas possíveis e do que elas se tornaram.”
As inseparáveis, Simone de Beauvouir: Uma história de amor sobre amizade.
Grande Magia: Vida criativa sem medo, Elizabeth Gilbert: Uma verdadeira aula sobre criatividade mostrando que todos nós somos criativos. É ótim, divertido e inspirador.
Tudo é Rio, Carla Madeira: Provavelmente um dos meus favoritos do ano. Uma paulada. Obra difícil e sensível. A leitura termina, mas o mal estar nos acompanha por uns dias.
Casta, a origem do nosso mal estar, Isabel Wilkerson: Uma análise contudente sobre a estruturação do racismo nos Estados Unidos comparando-o com a formação das castas na Índia e o nazismo. Leitura difícil e obrigatória.
Um brasileiro em Berlim, João Ubaldo Ribeiro: Uma pérola esta crônica do sobre a época em que o autor viveu em Berlim. Ri do começo ao fim!
Filosofia do tédio, Lars Svendsen: Leitura que não apenas me salvou do tédio enquanto eu lia, como me fez entender a importância do tédio nas nossas vidas.
O avesso da pele, Jeferson Tenório: Terminei há pouco e está entre os meus livros favoritos de 2021. É um romance sobre identidade e as complexas relações raciais, sobre violência e negritude.
Nesta minha passagem por São Paulo, eu fui conhecer as novas livrarias maravilhosas que a centro da cidade ganhou. Recomendo todas elas (ainda tem algumas na lista para conhecer) e recomendo também que comprem livros em livrarias independentes. São elas: Ponta de Lança, dedicada às humanidades tem por trás o Bruno, um apaixonado por livros. Se ele estiver presente, não deixe de puxar conversa com ele, que te indicará leituras fora do seu radar para você levar para casa; a charmosíssima Gato sem Rabo, dedicada à literatura escrita por mulheres; e a Megafauna, no Copan, que tem uma curadoria apurada e dá para ficar horas por lá se perdendo entre suas estantes.
Coisas que li por aí e recomendo
Para quem se interessa e/ou pesquisa música no universo da Web3 (NFTs, metaverso, DAO, etc), o Water & Music lançou o seu último report completíssimo dividido em 5 partes acerca do assunto com tudo de importante que rolou em 2021 com análises, entrevistas, etc., tendo tido a participação de mais de 40 pessoas para fazê-lo. É pago, mas se esta é a sua área, vai valer cada centavinho de dólar investido.
Agora as rapidinhas, não necssariamente novas:
O projeto Holly+, da Holly Herndon, foi o meu favorito de música + NFTs + DAO. Ele aponta o início de uma nova era da música + AI + web3 que está por vir.
Um mergulho profundo na obra de João Gilberto escrita pelo artista inglês Fred Thomas.
O gênero musical está prestes a desaparecer. O que vem depois?
A lista de melhores exposições do ano que rolou no Brasil em 2021, na Revista Select. Corra porque ainda tem algumas em cartaz.
Seria “Random Acess”, do Daft Punk, o melhor álbum de todos os tempos? Uma análise feita por Harley Lovegrove.
Demorei para voltar, mas voltar não é fácil, porque muitas vezes fugimos de fazer as coisas que mais gostamos. Mas deixo aqui um abraço e desejo uma ótima passagem de ano e que 2022 seja o ano que sonhamos. Muita paz, muita saúde e muito amor. <3
Boas festas!
Se você gosta dessa newsletter, não deixe de indicá-la para outras pessoas. Para se cadastrar é só acessar lalai.substack.com. Se caiu por aqui recentemente, me dê um alô se apresentando, que eu vou adorar saber quem é você. Comentários, feedbacks, dicas e críticas são super bem-vindos. Até o ano que vem!