Espiral #107: O funeral das rosas
Uma odisseia por São Paulo e tudo que está à minha volta nos últimos dias
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Na semana que vem tem o dossiê de janeiro exclusivo para assinantes pagos.
Trilha sonora para essa edição: 'Afroglow', de Ianaê Régia.
🍑
Tive uma fase bastante entusiasta de filmes pornôs do início dos anos 1970. Tentei explorar outras décadas, mas não rolou. O que eu curtia na pornografia da época era o fato de ela ser mais 'gente como a gente': nem sempre os corpos eram esculturais, o sexo era menos explícito, não havia tanto contorcionismo, rolava uma sedução não forçada e os filmes tinham um storytelling bem sacana e divertido. Um dos meus favoritos da época é 'The Private Afternoons of Pamela Mann'.
Nas décadas seguintes, os corpos ficaram perfeitos demais, tão depilados e lisos que se tornaram meio plásticos, com peitões, caras, bocas e posições que me fazem questionar como alguém pode ter prazer daquele jeito.
Em casa, tínhamos uma pequena coleção de filmes, todos baixados via Torrent. Na época, meu marido e eu até cogitamos criar um Tumblr para divulgar tais preciosidades, mas o projeto ficou no papel e os filmes ao nosso alcance acabaram.
👘
Apesar de não ter nenhuma relação direta, essa lembrança veio à tona enquanto assistia 'O funeral das Rosas' (1969 - Japão), de Toshio Matsumoto, um filme queer em preto e branco, esbanjando beleza, erotismo e muita confusão no pós-guerra. Falei dele rapidamente na última Espiral, mas agora vou me alongar mais a respeito.
'O Funeral das Rosas' é uma viagem cinematográfica alucinante que nos leva pela labiríntica história da trans Eddie. Livremente inspirado em Édipo Rei, o filme subverte um mito clássico e desconstrói o papel de gênero pós-moderno. A história se passa na vibrante cena queer underground de Tóquio nos anos 60, desdobrando-se em uma narrativa retorcida e nada linear.
O filme acompanha Eddie, empregada em um bar gay em Tóquio, em uma sequência caleidoscópica de cenas entrelaçando filmagens documentais, performances artísticas, entrevistas com os não-atores, backstage, paródias e momentos pastiches. São vários filmes dentro de um só filme. É um metafilme?
Tem cenas lindas e poéticas; outras parecem erro de edição, e há cenas de luta que parecem ter inspirado Jaspion já nos anos 1980, mas foi Stanley Kubrick que se inspirou na estética para fazer 'Laranja Mecânica'. Filmado nas ruas e clubes gays de Tóquio, o filme é puro delírio, cheio de referências à cultura pop, com pôster dos Beatles enfeitando a parede do estúdio, Genet dando o nome ao bar onde a história principal se desenrola, o rock como trilha sonora e as drogas presentes por todos os lados. Tem uma cena linda em que todos estão fumando maconha, começam a dançar e a tirar as roupas.
O filme ficou perdido por décadas até ser restaurado em 2017 e ganhar uma edição em 4k em 2020 para a telona, mas com a pandemia foi direto para o streaming. Achei um filme bem transgressor e ousado para a época.
Não sei se já virou um cult, mas tem tudo para se tornar um.
🏄🏻♂️
Enquanto continuo na minha temporada calorosa em São Paulo, meu marido voltou de suas férias à beira do Oceano Atlântico, onde passou três semanas surfando em uma ilha vulcânica. Ao retornar para casa, deparou-se com uma multa de pirataria de 980 euros.
Pirataria? Como assim? Uma amiga desavisada ficou hospedada em casa enquanto viajávamos pelo norte do planeta. Incapaz de sair de casa em um pós-Natal frio e cinza, entregou-se à sétima arte. O filme escolhido foi "Past Lives". A plataforma? Stremio! Nãooooooo…
Há quem jure que Stremio é uma plataforma oficial de streaming. No entanto, apesar de se posicionar como uma central de mídia, a plataforma tem código aberto e contém diversos Add-ons, ou seja, miniaplicativos adicionados ao software para personalizar e aumentar as funcionalidades. Aí está o problema, pois ele pode conter conteúdo ilegal.
Não é difícil saber se o conteúdo é legal ou ilegal. Se um filme não está disponível em nenhum serviço de streaming e, muitas vezes, sequer foi lançado em seu país, é óbvio que se trata de pirataria.
Enquanto no Brasil não existe uma decisão judicial definida para pessoas que baixam música ou filmes via Torrent para uso pessoal, na Alemanha a lei é dura. A notificação chegou como uma ameaça, incluindo uma cláusula na qual você se compromete a nunca mais baixar nada ilegal. Em caso de reincidência, a multa é muito maior que a primeira. E o medo de assinar isso?
Essa é uma das razões que sempre nos fez hesitar em alugar o apartamento enquanto estamos fora da cidade. Quem garante que a pessoa não fará nada errado em um país onde estamos sempre pisando em ovos?
📺
Assisti "Past Lives" aqui no Brasil. Um filme bonito, mas arrastado e raso, que não vale os 980 euros da multa que estão nos cobrando na Alemanha. Alô A24?
👁️⃤
Será que a multa é pagamento do karma da fase em que baixávamos filmes pornôs indiscriminadamente dez anos atrás?
🚠
Sigo em São Paulo, mas na próxima semana desembarco no Rio de Janeiro sem o computador a tiracolo. Será a primeira vez em anos, e confesso que tremo só de pensar, especialmente em um momento em que o vento está soprando a favor, trazendo projetos bonitos de ver para o meu colo.
O calor deu uma trégua, e eu respirei aliviada. Aliás, respirei, porque antes disso passei a semana sem fôlego. Apesar de adorar dias calorentos, prefiro temperaturas mais amenas.
🎊
Visitei uma excelente exposição no IMS Paulista. 'Pequenas Áfricas: O Rio que o samba inventou' narra a história do surgimento do samba e do carnaval no Rio de Janeiro. O nome vem de 'Pequena África', como o artista carioca Heitor dos Prazeres denominou a região portuária do Rio, onde, em meados do século 20, pessoas pretas e brancas compartilhavam um círculo social comum: as rodas de samba.
Dizem que o samba carioca nasceu na Casa da Tia Ciata, que abria seu quintal para receber Clementina de Jesus, Donga, João da Baiana e Pixinguinha. A exposição conta essa história ocupando os dois andares do IMS, iniciando no Cais do Valongo, o maior porto escravista da história, onde cerca de um milhão de africanos escravizados foram forçados a desembarcar no Rio de Janeiro. A exposição inclui 380 objetos, como documentos, gravações musicais, fotografias, matérias de jornais, filmes e pinturas.
Vá com tempo, porque a exposição conta com bastante vídeos e textos. Deixo essa análise da exposição feita pelo Jornal da USP.
🍳
Retornei depois de muitos anos ao Komah, restaurante coreano badalado na Barra Funda. Fui com certo ceticismo, pois minha experiência anterior não tinha sido lá essas coisas. Na época, deparei-me com poucas opções para quem não é fã de comida apimentada.
O salão dobrou de tamanho, a fila de espera aumentou e o cardápio está mais extenso. Posso afirmar que, até o momento, foi a minha melhor experiência gastronômica na cidade. Em um restaurante convencional, paguei R$ 80 por um picadinho, enquanto lá o prato mais caro que chegou à nossa mesa custou R$ 70 e era significativamente superior em sabor e qualidade, além de bem servido.
O local está mais concorrido do que o habitual, especialmente porque o novo bar Caracol abriu recentemente nos arredores. Ou seja, é perfeito para uma dobradinha noturna, que eu não fiz.
São Paulo continua vibrante, com tantos lugares novos e projetos interessantes se espalhando pela capital. Na minha lista, por ora, está o Ephigenia. Só preciso conseguir vencer a madrugada, já que o novo club é perfeito para notívagos, algo que não sou mais. Parece que a tal idade da preguiça chegou, não é mesmo?
💁🏽♀️
Quem diria que janeiro já se foi? Um absurdo ter essa pressa toda, mas foi um dos meses mais produtivos que tive nos últimos tempos. Só não comecei bem o ano com os livros, que estão temporariamente deixados de lado. O motivo é a série "Unsecure", que já tem cinco temporadas, e eu não consigo parar de assisti-la. Criada e protagonizada pela maravilhosa Issa Rae, a história conta o dia a dia de Issa Dee (a própria Rae) como mulher negra, com seus dilemas profissionais, de amizade e amor. Como pano de fundo, a bela Los Angeles é mostrada em ângulos menos comuns em filmes e séries. É viciante.
📚
Apesar de estar de férias com a literatura, São Paulo me desvia sempre para dentro de alguma livraria. A pilha começa a aumentar conforme os dias passam. Por ora, levo na mala:
A Leste dos Sonhos: Respostas even às crises sistêmicas, Natassja Martin
O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, Anna Tsing;
Retirei da estante de casa os 'Contos Completos' de Virgínia Woolf, mas, apesar de carregá-lo na bolsa pra cime e pra baixo, mal o abri.
🎧
Assim como a leitura, tenho ouvido menos música ultimamente. Talvez seja porque estou mais em movimento e distraída em rodas de conversas. No entanto, a beleza de "Wall of Eyes", do The Smile (Thom Yorke e Jonny Greenwood), embalou alguns dias por aqui.
Recentemente, descobri o coletivo londrino "The Heliocentrics", que está programado para tocar no fim de fevereiro em Berlim. Não os conhecia, mas fui conquistada pela sonoridade repleta de influências que abrangem o funk, jazz, hip-hop, psicodélico, krautrock, música eletrônica, pós-punk e o Afrobeat. Em 2019, a banda se apresentou no Sesc Jazz, em São Paulo, exatamente no mês em que eu estava me mudando para Berlim.
🎹
Em Berlim, está acontecendo um dos meus festivais favoritos de música experimental, o CTM. Adoro explorar a programação em busca de novos artistas para seguir. Duas apresentações que adoraria assistir se estivesse lá são da compositora e violoncelista islandesa Hildur Guðnadóttir, conhecida por suas trilhas sonoras em 'Chernobyl' e 'Coringa', e da organista Kali Malone, produtora de obras pós-minimalistas, que se apresentará nos próximos dias em uma das minhas igrejas favoritas de Berlim.
Este ano, a artista brasileira que representou o país na programação do CTM foi a produtora carioca KENYA20HZ, se apresentando no Berghain, na festa de abertura do festival, dividindo as pickups com o Skrillex.
🇵🇸
Em Berlim, praticamente todos os eventos culturais ocorrem por meio de fundos governamentais. Contudo, com o apoio da Alemanha a Israel, foi estabelecida uma cláusula anti-discriminação proibindo artistas de manifestarem apoio à Palestina.
A decisão alemã teve um impacto brutal, levando artistas de diversas partes do mundo, incluindo Annie Ernaux, a boicotarem associações financiadas pelo Estado alemão em resposta ao apoio a Israel no ataque à Gaza.
Alguns artistas escalados para o CTM desistiram de participar devido à uma cláusula desses fundos culturais públicos que proíbe manifestações pró-Palestina.
Com tamanha pressão, o Senado alemão voltou atrás, bloqueando a cláusula controversa.
📢
Viver na Alemanha me faz refletir sobre como a pressão da população tem o poder de impactar nas decisões do governo. Em Berlim, as manifestações ocorrem praticamente toda semana e persistem até conquistarem o que estão reivindicando. Às vezes, não se ganha, mas também não se desiste.
Essa realidade sempre me traz uma comparação com a nossa atitude no Brasil, onde raramente saímos às ruas para reivindicar nossos direitos. Seguimos com nossas vidas do jeito que dá, eventualmente nos manifestamos além das telas, mas poucas vezes nos unimos em prol de um bem comum.
Olha Só
Um giro rápido pelas minhas abas:
👩🏻🏫 O Santander lançou um curso gratuito de Inteligência Artificial Generativa em parceria com o MIT;
🤖 A Ana Freitas mergulho na IA generativa, tem dado cursos e criou o Anacron.ia com excelentes di✨cas sobre o tema;
🫡 A inteligência artificial roubou meu rosto;
✨ Uma das coisas mais bonitas e hipnotizantes de janeiro;
🥽 Meu atual sonho é caminhar pelo Holotile, o primeiro piso inteligente omnidirecional do mundo, criado pela Disney;
❗ Guardei esse texto do
para escrever sobre ele e acabei não escrevendo, mas ele foi um dos textos que mais me fizeram refletir sobre o consumo de cultura como trabalho do futuro;😶🌫 Como imaginaram em 1924 como seria o mundo cem anos depois e o que de fato se concretizou;
♡ A nostalgia está no ar: o grande retorno do Tumblr #saudades;
📈 Amantes de relatórios de tendências, uni-vos: dois compilados tão extensos que quando você terminar de ver todos os relatórios já será 2025;
🌹 Um texto em português sobre 'O Funeral das Rosas' que vale a pena a leitura;
🎧 Discutindo com amigas sobre o futuro dos livros, eu descobri a existência do Dipsea e Quinn, que são aplicativos de histórias eróticas em áudio. Uma das pessoas na discussão questionou se esse tipo de app pegaria no Brasil. Eu acredito que sim.
Por hoje é só! Deixo aqui um set bem feliz da minha amiga Barbara Boeing para alegrar seu dia. ₊˚⊹♡
Me emociona a exposição sobre a Pequena África carioca, e muito obrigada por compartilhar. Estou flertando com a ideia de ir pra São Paulo logo mais para visitar, e essa dica foi um empurrãozinho.
Da última vez que estive no Rio, fiz o roteiro da Pequena África, visitei a Casa Da Tia Ciata, e vi de perto o Cais do Valongo e também o Jardim Suspenso do Valongo, logo em cima. De todos os amigos brasileiros que citei sobre o Cais do Valongo, 100 out of 100 não sabiam o que era. Lamentavelmente. Não sei se já leu, mas o livro A História do Rio de Janeiro de Armelle Enders é uma joia, contando desde o surgimento do samba na Gamboa, passando pelas festas populares, como a da Penha, até o surgimento de personagens do imaginário carioca, incluindo detalhes da revolta da vacina. É como comemorei o Carnaval ano passado no inverno europeu, horando a nossa história.
E sobre o que disse ali: “Seguimos com nossas vidas do jeito que dá, eventualmente nos manifestamos além das telas, mas poucas vezes nos unimos em prol de um bem comum.”, talvez a forma do brasileiro se manifestar é se unindo em prol sim de um bem comum: a sátira. rsss Talvez somos uma nação do rir pra não chorar.
P.S.: eu amei Past Lives. 💛
Bisous x
Ultimamente, os DJs não têm salvado minhas noites (por culpa exclusiva minha, já que não saio), mas esse set da Barbara Boing salvou o dia. Chique demais.