Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Trilha sonora para essa edição: “Three”, novo álbum do Four Tet.
Um dos meus amigos mais antigos confidenciou ter temido ver nossa relação esfriar com a minha mudança de país. Em quase vinte anos de amizade, somos pessoas bem diferentes das que se conheceram no início dos anos dois mil. Assistimos as transformações um do outro, em especial nesse período em que estamos longe, mas nos adaptamos a essas novas pessoas que nos tornamos. Continuamos gostando um do outro.
Nos falamos menos do que outrora, não sei tantos detalhes de sua vida pessoal, enquanto ele sabe mais sobre mim porque lê a Espiral. Nossa amizade sempre foi leve, com ótimas trocas, viagens anuais só nossas e puxões de orelha. Nos visitávamos sem aviso prévio, às vezes só para ver TV juntos, e o silêncio entre nós nunca incomodou. Sei que nossos colos continuam disponíveis um para o outro. Basta chamar.
Ele disse estar feliz, pois continua se sentindo conectado comigo. É recíproco. Ele é uma das primeiras pessoas que encontro quando vou ao Brasil, pulamos juntos o último carnaval no Rio e foi como se estivéssemos sempre lado a lado. É um amor de irmão, como se nas nossas veias corresse o mesmo sangue. É o amigo companheiro que, desconfio, me conhece tão bem quanto eu mesma me conheço.
No entanto, eu me vejo distanciando de outras pessoas a cada viagem que faço a São Paulo, não porque gosto menos delas, mas porque a vida se encarrega disso naturalmente. O círculo de amizade no Brasil diminui aos poucos para dar espaço para novos amigos entrarem na minha vida em Berlim.
Não é triste porque não tem ruptura. Quando encontro a maioria desses antigos amigos, os encontros são animados e cheios de conversas. A diferença é que sabemos que não recorreremos ao outro se precisarmos. Não há cobrança, apenas saudades de um tempo que não volta. Mas afinal, de quantas relações íntimas nós damos conta? Dizem que são cinco.
Quando decidi ir embora do Brasil, escolhi Berlim por conhecer muita gente na cidade. Acreditei que isso facilitaria a integração local. Favoreceu de fato, me levando a lugares que sozinha eu não teria ido, mas também me acomodou. Estacionei logo nas primeiras portas que se abriram sem atentar se existia afinidade suficiente para uma relação tão próxima. Me senti como na época em que era nova na escola, quando me agarrava à primeira pessoa que me dava atenção, com medo de ficar sozinha no recreio.
Quando cheguei em Berlim, tratei logo de me conectar com pessoas conhecidas. Fui um pouco descuidada. Ansiosa. A falta que sentia dos colos que eu tinha em São Paulo me levou a mergulhar em relações intensas muito rapidamente, mas não necessariamente melhores.
Esqueci que a carência pode nos levar a lugares tortuosos e difíceis. Ficamos vulneráveis demais. A vida pode ficar tão desafiadora que viver a vida do outro se torna mais fácil.
Me doei mais do que eu poderia dar conta. Quando percebi, o meu ‘eu’ tinha evaporado. Rolou crise de identidade. Demorei até entender que o vazio e o esgotamento constante que sentia era por estar vivendo um ‘eu’ que não era o meu.
Claro que me culpei por não ter lido sinais, por ter me abandonado tão facilmente, mas esse é o risco da ânsia em querer sentir pertencimento.
Não podemos esquecer que relação não é miojo. Não somos melhores amigos das pessoas instantaneamente. Me sentia sortuda por ter encontrado um círculo de amigos tão rapidamente em Berlim, mas o que eu tinha ainda era apenas um halo solar, brilhando intensamente, porém, prestes a desaparecer.
Ouvi uma conversa muito bonita sobre amizade com a Maria Homem, na qual ela fala sobre quem escolhe ser atriz, ter amigos ou viajar como estratégias para viver outras vidas, buscando transcender o 'eu'. A amizade, segundo ela, é uma das primeiras possibilidades que temos na vida em vivenciar vidas diferentes, o que permite expandir o nosso mundo e o nosso ‘eu’.
No entanto, muitas vezes, não basta apenas ter um amigo; queremos ser o amigo, o que pode levar ao apagamento do próprio 'eu' em favor do outro. Isso resulta em uma ausência de troca genuína, colocando em risco essa perda de identidade que eu tive.
Meu lado Poliana vê tudo como aprendizado. Dei um salto no autoconhecimento. A história aconteceu há algum tempo e eu já voltei ao meu eixo. Sou uma pessoa diferente, mas ao menos sou 'eu'. Vivi um luto longo, porque amizades também são histórias de amor. O fim delas pode doer mais porque acreditamos que são para sempre. E não é porque uma amizade deixou de existir que ela não era real.
Quando mudamos de país, ficamos mais ansiosos com novas relações. Estamos mais abertos para conhecer gente nova, mas não podemos esquecer que levamos uma vida toda para construir as amizades que deixamos do outro lado do oceano.
Quando analiso meu círculo de amigos deixado no Brasil, percebo que as pessoas que permanecem nele são, na maioria, aquelas que estiveram ao meu lado por mais de uma década. Aqui, aos poucos, estou construindo um novo círculo, talvez de uma maneira diferente, mais cuidadosa e sem pressa desta vez. Tenho poucos e ótimos amigos em Berlim, com quem eu sei que já posso contar se precisar, mas são processos em construção.
Aprendi de maneira dolorida que 'pertencer' nada tem a ver com o outro; essa é uma jornada pessoal de cada um.
SXSW
Tive uma ressaca pós-SXSW mesmo não tendo ido. Como faço todo ano, me debrucei na programação musical e fiz um guia de shows imperdíveis para guiar amigos que foram para Austin. Me achei bem generosa, com eles e comigo, afinal é um deleite de tarefa. Como sempre, descobri algumas jóias raras. Vale a pena dar uma conferida na lista. Queria muito ter visto o show do Desire, banda do Johnny Jewel, que descobri ter tocado no SXSW também em 2023, mas que me passou despercebida. Tentei achar algum vídeo dessa edição, mas não achei nada, então deixo esse vídeo de um show recente deles em Dallas.
Alguns amigos torceram o nariz para esta edição, dizendo que o SXSW não é mais o festival de inovação de outrora. Me mandaram esse artigo do Valor Econômico questionando para onde o festival está indo. Enfim, ele saiu da minha rota. A pergunta que algumas pessoas fazem é: Qual é o novo SXSW? Alguns apostam no House of Beautiful Business, mas ele é ainda mais elitizado e para poucos. Tem uma ótima curadoria de palestrantes e é todo desconstruidão. Porém, me pergunto: Será que o novo grande evento de inovação está mesmo na mão de um bando de gente branca?
Apesar de tudo, o SXSW tem muito bom conteúdo. Com um patrocinador brasileiro, temos acesso gratuito aos keynotes com tradução para o português. Uma das palestras mais concorridas, a da Amy Webb, já está disponibilizada. Recomendo a leitura do artigo escrito pela Taís Farias sobre o ‘superciclo’ tecnológico, que Webb afirma que estamos vivendo com a convergência de inteligência artificial, ecossistemas de dispositivos interconectados e biotecnologia. Gostei também do conceito cunhado por Webb sobre a ‘Geração T’, de transição:
Coletivamente, todos nós estamos passando por uma coisa importante agora, o que faz de nós a geração T. Nós somos a geração da transição. Todas as pessoas que estão vivas hoje, cada um de vocês, faz parte de uma grande transição, o que significa que a nossa sociedade será muito diferente quando essa transição estiver completa, explicou Webb.
Para se debruçar nos relatórios de tendências apresentado por Webb, é só baixá-los aqui.
Adorei a escolha da poeta laureada Ada Limón para a palestra de abertura do festival. Limón foi convidada pela NASA para criar um poema, agora inscrito em uma placa de metal da aeronave que será lançada em outubro para uma lua de Júpiter. Ela inicia a palestra com discurso e depois bate um papo com a Dra. Lori Glaze, da Divisão de Ciência Planetária da NASA. Para quem ama poesia, essa palestra é puro deleite:
Ao contrário de trabalhar com essas mentes incríveis que trabalham para a NASA, eu trabalho em um espaço que não tem respostas. A poesia literalmente dá espaço para um desconhecimento. Dessa forma, sim, é uma busca constante, mas também é um pouco de rendição ao desconhecido. Há uma parte da poesia que se sente muito confortável com os mistérios, que se sente muito em paz por não saber as coisas. Pode parecer elevador mesmo quando há algo disruptivo nisso, porque parece um espaço para refletir. Dessa forma, ela se harmoniza muito bem com a exploração, porque você não sabe o que vai acontecer. […] A poesia, mais do que outras formas de escrita, abraça o lugar onde a linguagem falha. - Ada Limón
Como não abraçar o óbvio: “Pessoas que entendem pessoas sempre vencem.”
“A qualidade de sua vida está diretamente ligada à qualidade de seus relacionamentos”, Esther Perel em conversa com a Brené Brown. Que encontro! Ele pode ser ouvido aqui (em inglês). Acho que essa frase se conecta diretamente com o meu texto sobre amizade.
Bom, se você tiver algum evento focado em inovação que o mundo ainda não está olhando para ele, me conta?
New Meaning
🛸 Finalmente li “Os despossuídos”, da Ursula K. Le Guin. No livro, Le Guin aborda temas como gênero, sexualidade, feminismo, política, anarquia, capitalismo, entre outros assuntos, dentro do contexto da ficção científica. Le Guin nos mostra de maneira muito eficiente e criativa como seria uma sociedade anarquista. Nela, entendi a sua genialidade. Fiquei com vontade de me debruçar em toda a sua obra de ficção (só tinha lido seus livros de não-ficção). “Os despossuídos” foi escrito em 1974 e é muito atual, traz muitas reflexões, algumas delas existenciais.
📚 Li “A escrita como faca e outros textos”, de Annie Ernaux. O primeiro capítulo discurso proferido ao receber o Prêmio Nobel, depois o livro segue com uma entrevista concedida sobre escrita ao longo de meses ao escritor francês Frédéric-Yves Jeannet. É, como alguém comentou comigo, se sentir nos bastidores de seus livros. Ela conta de maneira muito honesta sobre sua experiência como escritora em uma grande aula para quem lê.
🎧 Decidi experimentar um audiobook. Ouvi “Saia da frente do meu sol”, de Felipe Charbel, uma história sobre o tio-avô do autor investigada de maneira muito poética e sensível. Um dos livros mais bonitos que li nos últimos tempos. Recomendo emendar a leitura com a conversa da Roberta Martinelli sobre o livro com a Patricia Ditolvo e com Charbel podcast Clube do Livro Eldorado.
📺 Estou viciada em “Constelação”, da Apple TV, série de ficção científica que narra a história da astronauta Jo, que retorna à Terra após uma catástrofe no espaço. Parece simples, mas é uma história de terror psicológico acompanhada de locações cinematográficas.
🚀 Na mesma linha, vi a minissérie “O sinal”, na Netflix, que também é a história de uma astronauta que descobre um segredo de estado enquanto está numa missão comercial no espaço. Achei vários pontos em comum com “Constelação”.
🎬 Recomendo o filme “Return to Seoul”, no Mubi, um drama coreano sobre adoção. A protagonista, vivida pela ótima Park Ji-min, visita a Coréia, onde nasceu, e decide procurar por seus pais biológicos. O resultado é uma viagem caleidoscópica acompanhada de uma ótima trilha sonora e bela fotografia.
𖨆♡𖨆 Escrevendo sobre amizade, eu lembrei desse ótimo texto que li há muito tempo: O que a não-monogamia tem a ver com as amizades?
✨ Não assisti ainda, mas amo a Jane Fonda e coloquei na lista o painel que ela participou no SXSW. Também está na minha lista para assistir “Death of the Follower & the Future of Creativity on the Web with Jack Conte” e fiquei curiosa para saber o que rolou nesse papo com o Justice (lembra deles?).
Antes de ir deixo um set da DJ com o nome mais divertido dos últimos tempos: DJ Fart in the Club, que eu quero ver tocar no domingo. E nessa quinta-feira eu vou ver o show do Gossip, que lançará seu novo álbum, que soa mais pop que seus trabalhos anteriores. Saudades de bater cabelo com a Beth Ditto.
Acho que por hoje é só. Estava com saudades de vocês.
"Não é triste porque não tem ruptura" - adorei essa ideia! Eu também me mudei pra outro país há anos e senti como minhas amizades no Brasil ou se transformaram, ou se terminaram. Mas sem mágoa, sem ressentimento. Simplesmente o que era deixou de ser e se tornou lembrança.
Foi um texto gostoso de ler, obrigada!
A sede de pertencimento nos leva a lugares difíceis.
Mesmo tendo sofrido com isso na adolescência - quem não? - ainda visitei muito esse lugar na vida adulta.
Acredito que ainda visito as vezes, até notar que estou lá e lembrar da importância de ser eu para mim, e que nem todos por mais que a gente ame ter por perto, se encaixarão nesse eu.
Quando cita a ânsia de viver uma vida além da nossa, me fez pensar no quanto eu leio desde adolescente, com um prazer enorme em visitar outros locais e viver outras experiência por meio dos livros. Demorei pra notar que era minha fuga, não que isso tenha mudado meu amor pela leitura, mas perceber é sempre o primeiro passo para tornar algo real e poder trabalhar com isso.
Li milhares de romances e na sede de ter o meu, entrei em confusões ou me frustrei procurando algo que não existe.
Hoje aos 30 tento todos os dias ser mais gentil com minha vida e com o que é real pra mim, para que eu possa ser gentil e 'o amigo' de quem esta comigo de verdade.