Espiral #115: O fim do bloqueio criativo
Morri um pouco, vivi em excesso, me permiti ficar sem fazer nada, me ocupei com outras coisas sem ser a escrita. Voltei!
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, uma newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim até música, arte, cultura, inovação e literatura. Além disso, sempre trago dicas de assuntos que estão revirando meus sentidos. Neste momento, estou em São Paulo, então compartilho aqui um texto retirado do meu diário.
Se você mora em Berlim ou passará alguns dias na cidade, não deixe de acompanhar o
.🇩🇪Fiz uma playlist para abrir os trabalhos de verão para a minha newsletter “The Next Day”. Dê um play e seja feliz.
"Eu acho que já dei o que tinha que dar. Todos nós temos uma pequena veia dentro de nós e acho que a minha está esgotada." - Françoise Hardy
Entrei num beco sem saída com a minha escrita. Ela, que assisti evoluir bem nos últimos anos, escorreu inteira pelos dedos. Passei semanas abrindo e fechando páginas em branco sem que nada satisfatório saísse. A alegria contínua com essa melhora no desempenho a cada texto escrito desapareceu. Não tinha mais escrita.
Sofri um curto-circuito criativo, não apenas para criar, mas também para fazer o que mais gosto, me deleitar com a criatividade alheia. Passei os dias lendo apenas notícias, pois as leituras que me inspiram viraram um borrão.
O desânimo chegou de mãos dadas com o desespero. Não lia, nem escrevia. Caí na espiral do tédio. Fui sugada de maneira tão profunda que aproveitei o tempo para fazer coisas que não exigiam escrever. Trabalhei em projetos paralelos, fiz eventos, criei playlists temáticas por encomenda, aprendi a fazer Reels, criei uma empresa nova, assisti mais televisão do que costumo me permitir. Passei horas jogando e deslizando o dedo indicador na tela do celular. Morei em grupos no WhatsApp. Reclamei aqui e ali, não consegui sequer abrir o meu diário, então colecionei áudios para não perder as memórias desses dias nebulosos.
Para ter de volta a minha escrita, morri um pouco. Deitava no sofá e passava horas olhando para o teto. Pela primeira vez, não fiz nada por dias. Assistia ao pôr do sol pela janela da sala, enquanto escolhia os discos mais bonitos do mundo, para que eles me ajudassem a ligar esse plug interno, que conecta palavras de maneira tão orgânica, criando os textos que compartilho com vocês. Ele queimou, mas nem fumaça saiu.
Dormi mais do que o normal, li bulas de remédio, fiz listas intermináveis, planejei viagens, comprei passagens, fui e voltei de São Paulo, cozinhei bastante, pedalei, pedalei, pedalei, flanei pelas ruas de Berlim em busca de inspiração. Nada adiantou.
Sofri com a insônia, essa faceira que não costuma me importunar. Ela me sugou para o seu buraco branco do tempo, onde a escrita reaparecia tão nítida que eu queria pular da cama, abrir uma página em branco e escrever, escrever, escrever. Sabia, porém, que se o fizesse, ela me trairia, desfazendo-se no caminho. "Olé, te enganei!" Deixava então o texto se formar bem bonito dentro da minha cabeça. Era só lá que ele era capaz de existir. Ora bolas, por que nesse vácuo noturno, ele surgia formoso, redondo, mas querendo desaparecer tão logo eu queria tirá-lo de dentro de mim?
A exaustão me fazia apagar, levando-me para pesadelos onde gritos sufocados tentavam escapar de mim no meio da noite. Seriam textos tentando fugir? O marido ao lado me sacudia. Ouvi várias vezes ao longe "Lalai" e voltava a dormir. Acordava cansada todos os dias, como castigo por não conseguir escrever. Como se os textos não escritos estivesse entupindo minhas veias.
Estaria eu em um inferno astral tão potente que roubou de mim as coisas que mais me dão prazer na vida? Atribuí então o bloqueio às tantas desgraças acontecendo ao nosso redor. Como se inspirar quando o mundo está colapsando? Mas ele parece sempre estar. Não seriam momentos como esses que deveríamos tentar proporcionar respiros para seguirmos em frente?
Um dia desses, pedi ajuda em um grupo de escritoras do qual participo no WhatsApp. Uma das sugestões foi compartilhar o desespero por aqui. Tentei fazê-lo sem sucesso. Escrever sobre não conseguir escrever pareceu uma tarefa árdua.
Chegou então a hora de fazer uma viagem planejada há um ano. Aterrissei em Barcelona em uma quarta-feira.
O clima solar da capital catalã, o reencontro com amigos que amo tanto, passar três dias pulando, dia e noite, como uma gazela de pista em pista no Sónar - ouvindo sons tão graves ou agudos que derreteram meus ouvidos, assistir o Air tocando um dos meus discos favoritos da vida, dançar agarrada ao marido até o sol raiar, comer bem, dormir mais ou menos, passar uma noite em um castelo, catar limão siciliano do pé, fritar no sol esticada na areia branca do mar Mediterrâneo - ajudaram a reconectar meu circuito interno. Os textos começaram a brotar.
Barcelona foi como consumir um pote inteiro de Vick Vaporub pelo desbloqueio tão potente e gostoso que sinto. Fecho então os olhos e aspiro fundo para senti-lo ainda mais amplo.
Estou no avião voltando para casa. O voo está atrasado uma hora, o que pode fazer eu perder minha conexão. Não me importo muito. Choro. Transbordo e esparramo emoção por todo o corredor enquanto escrevo. Há dois meses, esse mesmo papel nada via. As teclas macias do meu laptop não se moviam a não ser que estivessem trabalhando em uma proposta comercial. A vida virou números. Euros. Reais. Voltei a ser uma fantástica fábrica de powerpoint. Mulher de negócios.
No entanto, agora sinto os dedos velozes e apressados querendo vomitar dois meses de silêncio. Na janela do avião, o sol se põe imponente, como em um filme de final feliz, enquanto sobem os créditos. Choro de novo.
***
Aos que me apoiam, peço sinceras desculpas. Pausei a cobrança quando me dei conta de que iria desaparecer, mas me senti mal todos os dias por ver a Espiral ficando para trás. Para vocês, eu vou enviar um presente sonoro bonito e especial, criado nesse momento de desespero.
Volto, talvez aos poucos, porque preciso dar conta desse desague todo. Preciso organizar as ideias, contar as novidades, inclusive sobre a reading party, que foi a coisa mais linda que fiz em Berlim nos últimos tempos. Coloquei quarenta pessoas em uma sala para fazer o tempo parar e todo mundo ler junto por uma hora. Foi um dia mágico que vai se repetir.
Ah, tanta coisa para contar. Por ora, agradeço minhas amigas Sarah e Amanda pelas generosas estadias na Espanha; ao Ola por toda a paciência e generosidade que tem comigo; aos amigos que fazem a minha vida ser mais especial e a vocês, que me proporcionam uma alegria imensa por acompanharem minhas aventuras (e desventuras).
François Hardy
A cantora francesa Françoise Hardy foi minha musa quando eu tinha uns vinte anos. Eu andava, na época, de quatro por tudo que carregava selo francês. Rimbaud. Baudelaire. Gustav Flaubert. Simone de Beauvoir. Françoise Hardy.
Ouvia o álbum “La Question” todos os dias, obcecada com sua voz meio sussurrada em meio à letras melancólicas embaladas em um pop sofisticado. É uma obra-prima. Soube bem depois que “La Question” nasceu a partir de um trabalho colaborativo com a compositora brasileira Tuca, tantos nos arranjos quanto na composição de praticamente todas músicas. Das doze faixas, Tuca não participou de apenas duas.
Meu Deus, como ouvi Françoise Hardy! Como essa francesa maravilhosa, linda de morrer, que encantou Bob Dylan, Mick Jagger, David Bowie e tantos outros olhos e ouvidos, me trouxe uma perspectiva maior sobre ser mulher quando eu ainda me via sem futuro na periferia de São Paulo. Ela, com seus cabelos lisos e franja reta, os quais imitei por anos, os lábios perfeitos e o rosto sorrindo. Um sorriso francês, claro. Elegante, tímido e sexy.
Hardy escrevia seu próprio material, ao contrário da maioria das cantoras da época que dependiam de compositores. Em seu álbum de estreia, conhecido como "Tous les garçons et les filles", 10 das 12 faixas eram composições próprias, um feito extraordinário para a música pop em 1962, algo que na época era mais comum entre grandes bandas de rock (todas formadas por homens).
Após um tratamento de câncer em 2021, ela decidiu encerrar sua carreira alegando: "Como, devido à radiação e a uma imunoterapia, fiquei surda de um ouvido e minha cabeça ficou seca - garganta, nariz, boca - nunca poderei cantar novamente."
Françoise Hardy morreu no dia 11 de junho aos 80 anos. 🖤
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Tove Divletsen
Fui profundamente impactada pela leitura da ‘Trilogia de Copenhagen’, de Tove Divletsen (1917-1976), dona de uma escrita visceral, honesta, dolorosa e introspectiva. Tove nasceu nos anos 1920 e foi uma mulher à frente de seu tempo. Descobriu sua vocação para ser poeta ainda na infância, chorava ao ouvir coisas bonitas, era considerada excêntrica na escola e tinha poucas amizades. Tinha também uma família singular. Deixou cedo a casa dos pais e alugou um quarto de uma mulher nazista, que a convidava todos os dias para assistir aos discursos de Hitler na TV. Ela não assistia.
Casou-se 4 vezes, a primeira aos 20 anos com um editor de meia-idade, porque acreditava que ele poderia ajudá-la a ser publicada, o que de fato aconteceu. No entanto, não era apenas um casamento por conveniência; ela o admirava, mas logo se cansou do papel de esposa que ele impôs e o trocou por um jovem de sua idade, com interesses semelhantes. O terceiro marido, médico, o levou à dependência de opioides como uma maneira de tê-la sob controle.
O livro é uma compilação de três obras escritas em períodos diferentes: ‘Infância’, ‘Juventude’ e ‘Dependência’. Os livros descrevem sua infância difícil, adolescência tumultuada e a vida adulta marcada pela dependência de drogas.
É bastante peculiar a maneira como ela narra cada fase de sua vida, pois não apenas relata o que aconteceu, mas se transporta para a pele de quem era em cada época ao narrar sua história com desfecho trágico.
O resultado é uma narrativa excepcional, porém nada fácil.
Antes de sair correndo, deixo algumas rapidinhas:
🇩🇪 Sigam a Senda, um novo negócio que estou botando em pé ao lado do meu amigo Guima há um ano. Já temos 4 projetos no portfólio e prestes a começar o quinto, mas ainda não tínhamos oficializado o rolê. Em breve, novidades e anúncio oficial!
⏳ Processo criativo, produtividade e tempo (paywall) que se conectou com meu momento atual.
🇮🇱 Esse texto honesto da
sobre identidade judaica. Eu sou pró-Palestina, mas respeito os pontos (e sentimentos) dela, além de admirar sua coragem ao escrevê-lo.🤖 A Ana Holanda e o
, duas pessoas que admiro bastante, se juntaram para criar o curso 'Escrita Criativa e Inteligência Artificial'. Ainda não comecei as aulas, porque estava naquele lero lero de acreditar que nunca mais voltaria a escrever (sim, andei dramática), mas acho que agora é a hora de buscar insights por lá. Quem quiser se juntar, tenho um cupom de 10% de desconto - "LALAI10". Vambora?.🧦 Falando em tendência, uma amiga me viciou na atual guerra das meias, que nem é algo novo. A discussão já tem um ano.
📺 Estou assistindo 'Matéria Escura' (Dark Matter) na Apple TV sobre realidades paralelas. Gosto muito do plot, mas me perdi um pouco em um dos diversos mundos que os personagens vivem. Tem a Alice Braga e a Jennifer Connelly. ♡
📚 Estou lendo finalmente (no kindle) "Diorama", da
(que livro!! entendendo todo o hype!) e, no papel, "Agosto Azul", da Deborah Levy. O que me levou à leitura do segundo foi sua descrição: "Agosto azul revela os modos pelos quais buscamos nos livrar de uma história antiga, nos encontrar em outras pessoas e nos reinventar." porque eu me sinto em um processo similar.Por hoje é só! Como falei, não andei lendo muita coisa além de notícias, mas volto em muito breve para continuar colocando a casa em ordem.
Bom solstício! ☀️
Lalai
Que texto bonito. Deu pra sentir a emoção desse reencontro! Bem-vinda de volta ao mundo das palavras :) e bom demais saber que você está gostando do Diorama (teve hype, nem sei, hahaha)
ai amiga... que alegria o seu bloqueio ter enfim chegado ao fim... isso me enche de esperanças de acontecer o mesmo por aqui. Um beijo afetuoso.