Espiral #83: Desassossego pós-Barcelona
"Uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna"
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura. Mensalmente eu me dedico a destrinchar um tema com profundidade, como a felicidade, comida, comunidades, criatividade e inteligência artificial e um dossiê sobre Berlim. Considere apoiar mensalmente a Espiral ou me pague um café.
Trilha Sonora para esta edição: ¡Ay!, de Lucrecia Dalt
“A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.” - Fernando Pessoa
Olá!
Ainda estou abalada com o fim repentino das mini-férias. Eu juntei o que sobrou das lembranças de uma paixonite inesperada e reúno aqui os fragmentos de pensamentos nada lineares. Uma conversa alta. Desajeitada. Prometo voltar na próxima semana ao eixo e com as tradicionais (cof, cof, cof) edições da Espiral.
Pensando ainda alto sobre o que acabei de escrever, a Espiral é um espelho meu. Ou seja, muitas vezes uma confusão mental. Outras, apenas melancolia. Uma baguncinha gostosa que eu adoro compartilhar, porque assim eu me ouço e ouço vocês, que adoram me responder e sempre tiram sorrisos largos quando escrevem de volta. ♡
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Uma semana em Barcelona bagunçou a cabeça. Talvez resultado de conversas inesperadas que levaram para cantos que ando evitando em mim. Alerta! Joguei tudo para o alto e abracei. Voltei para a pista, eu, que adoro dançar com tantos amigos em volta. Cadê o holofote? Encontrei. ✨
A facilidade em conversar em portunhol, fazer os pedidos sem medo e recebê-lo sem surpresas, comer bem e barato e ter dias ensolarados enfileirados, balançou meu amor por Berlim. Foi um flerte de verão, daqueles que não darão em nada, mas sigo derretida. Passei dias avoada, com um sorriso idiota no rosto, e o coração festeiro dançando com dias felizes. Inebriados. Rindo alto. É para lá que eu quero voltar.
Mas atenção! Férias devem ser relembradas com cuidado. A rotina pode ser esmagadora, porém, confesso, ultimamente eu ando gostando dela. Mas hoje não. O tempo lá fora chora, como se fosse eu ocupando todo o céu, com as saudades que sinto delas. As férias. Cercada de amigos. Esquecendo os dilemas que carrego debaixo dos braços.
Criei alerta nos sites de viagem. Quem sabe aparece uma passagem barata para fugir escondida. Afinal o verão ainda não acabou. Dá para namorar mais um pouquinho.
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Um dia, lá atrás, eu planejava o meu aniversário. Bati o martelo que seria uma viagem, não a minha, mas de uma amiga que queria ir para o seu lugar favorito de sempre. O festival, que eu disse contente ser o lugar onde eu queria celebrar meus 50 anos, caiu por terra. Fui fisgada pela promessa de dias quentes com a bunda cravada na areia branca, sol alto, mar azul infinito, sossego e nada para fazer.
Ah, mas sorte que a ficha caiu que não era lá que eu queria estar. Mudei os planos. Primeiro, festejei no parque com piquenique, num dia em que me senti popular com tanta gente que foi. O ápice do sucesso chegou quando a polícia apareceu perguntando de quem era a festa. Engoli o riso e corri para dar explicações. O balão dourado gigante, voando pra lá e pra cá denunciando a chegada da meia-idade, amoleceu o coração do policial. Ganhei um abraço e parabéns. As crianças ganharam carona na viatura e fotos no volante. Prometi que às 10 horas eu desligaria o som e mandaria todos para casa. Cumpri o trato! Mas antes, cantamos parabéns e assoprei velas em dois bolos. Cinquenta é assim. Todo mundo te dá bolo, aquele de comer.
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Ontem passei oito horas trabalhando numa apresentação. Eram 10 horas da noite e eu estava olhando para um slide branco. Absorta em Berlim. Não lembro quando foi a última vez que eu trabalhei até tão tarde. Foi um jeito de aquietar a paixão que tem feito o coração bater nas têmporas.
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Barcelona foi a primeira cidade internacional que eu pisei fora do Brasil. Era 1997, o mundo era diferente, a internet menos acessível e meus cabelos iam até a cintura como um manto. O Parc del Fórum não existia, nem o Primavera Sound. O Sónar também não. Era setembro, mas guardo na memória uma cidade escura, suja e nada solar como a que dessa vez me tirou do prumo. Me deixou com esse sorriso idiota no rosto. O marido também foi atingido. Passou três dias com febre! Não era COVID. Está apaixonado também.
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Ontem à noite uma tempestade assolou Berlim. Ficamos nós dois (eu e o meu marido) sentados na cama, no quarto escuro, embriagados com a luz que fez a noite virar dia. Os trovões era tão fortes que ressoaram no estômago. Fizemos vídeos. Rimos juntos. Apaixonados. O frescor entrou pela janela dando uma trégua na temperatura alta que eu trouxe na mala.
“Mas não fui eu quem quis assim
Aconteceu você pra mim
E eu não vou negar o que o acaso quis pra nós
A chama desse amor me faz
Sorrir cantar, te quero mais
Te chamo só pra repetir ‘te amo’”
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Quando planejei ir embora do Brasil, eu pensei em diversas cidades possíveis. Uma delas era Barcelona. Uma amiga, que me conhece bem e mora na cidade há anos, foi categórica: “Lalai, você vai morrer de tédio. Não venha.”
Então sobrou a paixão. Os encontros furtivos e generosos. Sei que se me mudar para lá, tudo vira rotina e vai matar esse comichão que está morando no meu estômago.
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O Sónar foi inesquecível. Fez 30 anos e, assim como eu, continua jovem. Gosto da ousadia, da inclusão e da diversidade. Um festival que está atento ao mundo. Durante o dia o festival acontece num lugar e leva uma audiência que varia de 1 ano de idade, carregando fones de ouvidos maiores que suas cabeças, a 80 anos. Tem gente de todo lugar do mundo, inclusive do Brasil. Todo mundo dançando com um drink na mão.
Música de videogame e de meditação, reggaeton, amapiano, eletrônica, barulhenta, experimental, trilha sonora de filme e muitos lasers. São vários palcos e não demora para entender o conceito de cada um deles. O da meditação tem 5 telões, um na horizontal no meio do palco e três na vertical em cada lateral. Lindíssimo! Às vezes rola festa, às vezes as pessoas ficam deitadas no chão. O Nosaj Thing e Daito Manabe fizeram um show lindíssimo transformando música e imagens em poesia.
O palco ao lado, onde num passado distante eu assisti a Rosalía pela primeira vez, era dedicado às experimentações visuais. Uma surpresa atrás da outra. Ryioji Ikeda foi o meu favorito. A Deena Abdelwahed levou o segundo lugar. Dois shows muito distintos. No primeiro, partimos juntos para uma guerra estelar em preto e branco. Noisy, muito noisy. Eu estava hipnotizada. Cores surgiram no telão trazendo a galáxia que explodiu num final catártico. Fecho os olhos e ainda posso voltar para lá. No segundo, eu dancei sob batidas eletrônicas misturadas à típica sonoridade do Oriente Médio. Fiquei fazendo ondinhas com as mãos no alto. Parecia uma odalisca.
O Village, o palco principal e o único aberto, recebe os artistas mais populares que, muitas vezes, nos jogam numa farofa gostosa e rebolera. Black Coffee e a Blessed Madonna foram os meus destaques. O 2Many DJs, acompanhado do Tiga e da Peach, começaram bem, mas desandaram para um lugar desconhecido que só restou a plateia bem jovem. Isso que eu chamo de se atualizar e não envelhecer com o seu público.
No palco ao lado, fechado, vimos um trio da África do Sul, Omagoqa, que botou todo mundo para dançar com um set amapiano e uns pops embutidos no meio.
Eu, que tenho um lado “amo música estranha e cabeçuda”, passei várias vezes no palco, que fica numa sala de teatro, para assistir os shows sentada e debaixo do ar-condicionado. Foi lá que vi o show lindíssimo da Lucrecia Dalt, que assina a trilha sonora desta newsletter.
Já o Sónar Noite acontece num outro lugar e é maior. É uma correria e muita disposição para dar conta de tudo. O público, bem mais jovem e diferente do de dia, lotava todos os palcos. No principal, nós vimos o show mais high-tech de que se tem notícia, o famoso “Holo”, do Eric Prydz. Uma loucura visual 3D que parece avançar sob a plateia. A música já não dá para dizer o mesmo. Entrei às 22h30 e saí às 23h50 com a sensação de que a música era a mesma e eu saía de uma aula de spinning.
A compensação veio com um show, também visualmente apelativo, do Aphex Twin, que recentemente deu entrevista dizendo que não sabe bem o que está fazendo quando está no palco. Eu, que estava lá, entendi, pois a segunda parte do show me deixou entediada. Nesse mesmo palco, quem me ganhou pela enésima vez foi o Bicep, num show com menos lasers do que vi em Berlim, quando aguardava a apuração do resultado da eleição para eleger o novo presidente do Brasil.
Gostei também do show do Fever Ray, mas o que vi no Primavera Sound me encantou mais. No Sónar, foi um show mais minimalista e mais bonito. O outro que vi foi mais divertido. Karin Dreijer sabe o que faz no palco e estava acompanhada de uma ótima banda formada só por mulheres.
Rodamos todas as pistas, brincamos de carrinho bate-bate (quer mais infância do que isso?) e dançamos até doer o quadril e o sol nos chamar para casa.
Convido você para a caravana Sónar Barcelona 2024, pois ao lado do “Way Out West”, ele é o meu festival favorito.
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O último álbum do Fever Ray se chama “Radical Romantics.” Só não foi trilha sonora desta edição porque já passou por aqui antes. ❥︎
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Quarta-feira rolou o “Fête de là Musique”, em Berlim, com a música ao vivo ocupando todos os espaços possíveis da cidade. Berlim dançava. Eu voei para a rua porque ia ter carnaval, o Bloco do Urso, de quem eu sou fã. Fui encontrar os amigos, tomei vinho natural e comi um balde de coxinha. Seguimos para ver o pôr do sol do Tempelhofer Feld, o aeroporto antigo que virou parque, em frente ao bloco. Estava lotado. De repente, começamos a ser perseguidos por vespas peludas gigantes, que descobrimos posterioramente ser um tipo de besouro.
Todo mundo se debatia numa espécie de coreografia improvisada. As pessoas corriam, outras caíam da bicicleta. Eu colocava a mão na boca com medo de engolir uma delas. O meu vinho natural voou. Eu corri para fora do parque com os amigos. Um bando de gente vinha atrás de debatendo no ar. O bloco de carnaval lotou novamente até acabar.
Num tom confessional, enquanto eu dançava uma marchinha, minha amiga soltou “Lalai, ando pensando em me mudar para Barcelona.”
Me leva, amiga!
Confusion
Não li muito nos últimos dias e mal abri emails, então a lista abaixo está mirrada:
👩🎤 O David Bowie tinha pavor de voar, por isso em 1973 viajou de trem Japão para Berlim, passando por Moscou, Varsóvia e Paris, no Trans-Siberian Express. Seu amigo de infância e fotógrafo, Geoff MacCormack, registrou toda a viagem com fotos e um mini-doc. Tudo isso pode ser conferido na exposição “David Bowie in the Soviet Union”, no Wende Museum (Culver, a meia hora de LA). Na ocasião da expo, foi lançado o livro “David Bowie: Rock’n’Roll with me” (se ainda quiser me dar um presente de aniversário, estou aceitando) e uma playlist;
🎴 Saiu a edição 11 da Revista Unquiet, minha revista de viagem favorita. Nela, eu escrevi sobre o WHOLE, o melhor e mais inclusivo festival queer que eu já fui. Ele acontece no fim de julho, em Ferropolis, Alemanha. Dá para ler na íntegra aqui;
⚡ Um dos meus festivais experimentais favoritos, o Atonal, acontece em setembro em Berlim e tem a Caterina Barbieri no line-up;
🎥 Quero assistir “Asteroid City”, o novo filme do Wes Anderson;
💥 E, se estiver em Londres, tem exposição do Wes Anderson rolando no 180 Studios;
🎹 Onde eu estava que “Memento Mori”, novo álbum do Depeche Mode, pulou do meu radar?
🍻 Vai vir para Berlim? Ou conhece quem vai? Indica minha newsletter “The Next Day”, um guia de fim de semana para curtir a capital alemã;
🇪🇸 Caso vá a Barcelona, manda um beijo e passa no Alegria, mas não esqueça de reservar uma mesa, e siga a ótima lista da Amanda;
🔥 A revista Número aterrissou no Brasil e está sob comando editorial da minha amiga genial Antonia Petta;
📚 Estou devorando “Marcas de Nascença”, de Nancy Huston, que, provavelmente, será um dos melhores do mês de junho (obrigada pela dica
);🇧🇷 O Psicotrópicos, festival que celebra a música contemporânea brasileira, acontece nos dias 14 e 15 de julho em Berlim. O line-up está uma lindeza e eu participei da curadoria de música eletrônica;
📀 Tem música nova do Aphex Twin rolando;
📱 Você deveria compartilhar nas redes seu detox digital?
🪩 A Róisín Murphy super musa no clipe novo e se o Primavera São Paulo tiver o mesmo line-up que Buenos Aires, vá preparando o figurino bafo para vê-la ao vivo;
❣Ando babando com a chegada do Pharrell Williams, de quem sou grande fã, na Louis Vuitton.
Bem, está na hora de partir, mas deixo um motivo para armar um bailinho por aí.
Tchau! 🙋🏻♀️
Que legal ler a sua experiência em Barcelona! Estarei lá em 10 dias. Este é o meu lugar preferido da vida e muito especial para mim: estava passando uma temporada lá quando iniciei meu atual projeto profissional e exatamente (marcado no calendário e tudo!) 5 anos mais tarde, volto lá para encerrar esse ciclo e me abrir para o próximo. Já salvei o mapa da Amanda, obrigada!
Dei uma risada interna quando li "confusão mental". Calma: risada de mim mesma. Porque, na semana passada (acho), você falou dos seus 50 anos. E, antes, achava que as pessoas numa determinada idade se assentavam, se acertavam, a confusão mental cessava, elas tinham "figured out" a vida. 50 anos, ou próximo disso, será que já não era o momento?
Bom, e, hoje, aos quase 44 (ou seja, caminhando a passos largos para os 50), eu vejo que as dúvidas, as questões, persistem. Mas acho que ficamos mais à vontade com elas, não?
Beijos e parabéns pelos anos e pela news.