Espiral #65: Você é o que você come?
Um passeio pelos mercados, pela gastronomia em Berlim e no futuro da comida.
Trilha sonora: o popinho gostoso Tako Tsubo, do L’Imperatrice
Minha vida no supermercado
Eu sempre visito supermercados durante as minhas viagens, pois eles traduzem bem a cultura local, afinal são neles que o dia-a-dia acontece. Gosto de passear por suas prateleiras, analisar produtos, observar os carrinhos das pessoas que passam por mim e, especialmente, ver de perto as compras desfilando pelo caixa, que sempre me faz imaginar quem é a pessoa na minha frente. É solteira? Tem filhos? Trabalha muito? Gosta de cozinhar? Cozinha para os amigos? Se preocupa com o que come? E com o planeta? Tem problemas de saúde? Alergias? Compulsão com comida? A partir das prováveis respostas eu construo a minha personagem.
Prenzlauer Berg, onde eu moro, é o Leblon berlinense, bairro onde vivem jovens casais com filhos pequenos. Por aqui, lojas infantis dos mais variados tipos, incluindo brechó infantil, se enfileiram em diversas ruas da região. Eu moro a 2 quadras do “Baixo Bebê Leblon”, uma praça com um dos melhores playgrounds que vi na cidade.
Há muitas redes de supermercados ao meu redor, incluindo os maiores “bios” da cidade: Dennis, Bio Company e o Al Natura, que fica debaixo do meu prédio e é o mais barato dos três. Temos também as grandes redes em volta: Rewe - que eu chamo de “Revão”, Edeka, Lidl, Aldi e o Netto, sendo o último climão de campo de batalha de tão desoladora que são suas prateleiras.
Temos as feiras de rua, quitandas, os mercadinhos turcos, indianos e asiáticos, onde é possível comprar quiabo congelado e farinha de mandioca, que aqui se chama Gari.
Eu frequento basicamente o Al Natura e o Revão, o primeiro pela praticidade, que me faz gastar mais, mas comer melhor, enquanto no segundo eu faço as compras maiores. O público é bem diferente entre eles. O Al Natura é frequentado por famílias mais jovens, enquanto o Rewe é tudo junto e misturado, com alta frequência de pessoas idosas passeando por suas gôndolas. Em ambos, as prateleiras de vinho e água com gás são mais extensas que as de cerveja denunciando as paixões locais.
Na minha última ida ao Al Natura tinha um senhor na minha frente na fila com um carrinho cheio. Notei sua grande mochila de couro (vegano?) vazia para abrigar as compras, afinal a maioria das pessoas carrega sempre sua própria sacola, usava botas de trekking e uma calça esportiva. Ele comprava legumes, verduras, frutas, iogurte com baixa gordura, grãos, queijo amarelo e kombucha. Separado ou viúvo? Pois provavelmente mora sozinho, já que levava apenas uma alcachofra. Cozinha, se alimenta bem e se exercita. Fora do supermercado era provável que sua bicicleta o esperava mesmo com uma chuva fina caindo, o que eu acertei quando o avistei na calçada.
Olhei para a minha compra para ver o que ela dizia sobre mim: pão, croissant, queijo gouda, pera, banana, cebola, avocado, salmão congelado, tortinha de espinafre congelada e duas cervejas IPA sem álcool. Ocupada, um pouco preguiçosa e menos preocupada com o consumo de gordura, pensaria eu enquanto olhava para as minhas compras. Está praticando o “Dry January” e pelo horário em que está no mercado, ou é freelancer ou não está trabalhando. Adivinho que é casada porque tem uma aliança gorda na mão esquerda.
E você, o que seu carrinho de supermercado conta sobre você?
Como é a comida em Berlim?
Percebi com o tempo que Berlim não tem uma cultura gastronômica enraizada como alguns países vizinhos. Lendo este ótimo artigo “Como a queda do muro de Berlim moldou a cena gastronômica da cidade”, caiu a ficha de como essa cultura é relativamente nova e segue em construção.
Berlim tem a vantagem de ser uma cidade aberta à diversas experimentações e iniciativas. Nos últimos anos assistimos a abertura de novos restaurantes de cozinha criativa, tanto uma nova culinária alemã contemporânea, a fusion e a internacional, a maioria com menu sazonal baseado em produtos orgânicos e locais.
A cozinha no dia-a-dia em Berlim são as turca, vietnamita, coreana, indiana e árabe, todas elas com farta opções vegetarianas e veganas. Já a cozinha alemã tradicional é menos popular, talvez por ser mais cara e baseada em carne. Claro que há demanda de currywurst, mas eu mesma comi apenas duas vezes desde que cheguei aqui. Aliás, o prato tem uma boa versão sobre sua história, que conta que a alemã Herta Heuwer criou-o em 1949, quando Berlim foi dividida em quatro setores: soviético, americano, britânico e francês. Ela combinou salsichas de porco alemãs com ketchup do setor americano e curry em pó dos britânicos.
Há muitos restaurantes, inclusive vários estrelados, totalmente dedicados à cozinha vegetariana e/ou mesmo somente a vegana, tornando Berlim um oásis para quem não come carne e nem seus derivados. O “Veganuary” é levado à sério e vários restaurantes aderiram à campanha criando menu exclusivo para o mês.
O Cookies and Cream tem uma estrela Michelin e serve menus de 6 ou 7 tempos somente nas opções vegetariana ou vegana; o Kopps é um restaurante vegano que só oferece menu degustação; já o FREA, além de ser vegano, tem uma política de desperdício zero na cozinha, é estrela verde no guia Michelin e é considerado o restaurante mais sustentável de Berlim ao lado do Daluma, que tem três lojas e expandiu o negócio para a área de cosméticos, suplementos e sucos detox. Tudo vegano e caríssimo.
Outra coisa imbatível em Berlim são os pães. A cidade é a meca para apaixonados por café da manhã e brunch. Não visitei ainda nenhum país com tamanha qualidade de pães, capaz de agradar todos os gostos contando com boas opções para quem não come glúten. Tenho algumas favoritas: Zeit Für Brot, Albatross, Sofi e a tradicional BioBackHaus, mas a lista é grande e os supermercados costumam contar com boas padarias.
Food is still hot: Como comeremos no futuro?
Após uma zapeada em relatórios de tendências, artigos, iniciativas que vejo acontecer em Berlim e especulações sobre o futuro da comida, compartilho um pouco da minha leitura, inclusive as diferenças entre os hábitos alimentares por geração - Z, Millenials e a X, de acordo com a WGSN:
Com a recessão avançando a passos largos, nós comeremos cada vez mais em casa, hábito em especial da Geração Z, que tem deixado para trás culinárias tradicionais, inovando como e quando podem. Também optam por experiências figitais, como a parceria feita entre o app Deliveroo com a Playstation e chefs australianos oferecendo os pratos mais famosos dos games.
Já os millenials fazem parte da primeira geração “foodie”, tendo a comida como sinal de status (fotografa tudo), e são adeptos aos jantares com amigos em casa mais do que qualquer outra geração. Sofrendo de males crônicos, diabetes e depressão, os millenials estão agora mais preocupados com a saúde e têm consumido dietas personalizadas para atender às suas necessidades. Nos Estados Unidos, uma pesquisa detectou que cerca de 60% dos millenials consomem carne produzida à base de plantas. É também a geração do “snack funcional” a tarde.
Enquanto isso, a geração X está num outro patamar buscando por experiências refinadas. São mais nostálgicos na alimentação, inclusive são menos adeptos a testarem novos sabores e texturas. É também a geração que mais come carne.
Pesquisando sobre as tendências em comida no TikTok no Brasil, eu me depareci com a hashtag #receita dominando o ranking, ou seja, a GenZ está cozinhando em casa. Já #alimentaçãosaudável, que eu achei que estaria mais em alta por ser começo de ano, aparece em 9º lugar, enquanto na Alemanha aparece em 2º lugar e nos Estados Unidos, em 5º lugar.
De acordo com um relatório da Springwise, teremos até 2043 uma variedade de novas proteínas e outros alimentos disponíveis diferentes de tudo que já vimos. Um exemplo são as carnes produzidas à base de plantas, que ainda estão em fase de desenvolvimento inicial, mas que, futuramente, espera-se que esses produtos se tornem mais saborosos por si só sem tentarem mimetizar o sabor de outro alimento já existente.
Cresce o mercado de microproteína, biomassa, produtos de agricultura celular e sabores criados a partir de fermentação de precisão, permitindo criar os mesmos ingredientes encontrados na carne animal, sem os animais, colaborando assim com a redução da emissão de gases de efeito estufa, já que muitas dessas tecnologias usam pouca ou nenhuma terra arável ou água doce.
O mercado de proteínas à base de plantas continua crescendo de vento em popa com previsão de saltar de US$ 10 bilhões para US$ 17,4 bilhões até 2027 e US$ 34 bilhões até 2032, ou seja, a carne vai ficando cada vez mais para trás.
A agricultura urbana ganha cada vez mais espaço nas cidades ocupando lajes, quintais e áreas livres. Em Berlim as hortas urbanas estão espalhadas por todos os lugares, incluindo cemitérios. Para mim, duas das mais impressionantes são o Prinzessinnengarten, que ocupa uma grande área numa região privilegiada onde a especulação urbana corre solta, e a Allmende Kontor, uma horta comunitária no antigo aeroporto Tempelhof, que hoje funciona como parque. Descobri ouvindo o podcast Panela de Impressão, que Cuba é o país com o melhor exemplo de agricultura urbana no mundo.
A inteligência artificial também ganhará cada vez mais espaço na cozinha, tanto na produção da comida quanto para monitorar desperdício e otimizar uso de utensílios domésticos. O CES 2023 apresentou diversas novas tecnologias na área de comida que prometem melhorar nossa relação com a cozinha.
Mas, apesar de todas as inovações na indústria alimentícia, eu gosto muito desse olhar:
“Na alimentação […] estamos olhando para nossos ancestrais para buscar soluções por meio de como eles se relacionavam com as antigas práticas alimentares, como o forrageamento e a fermentação. À medida que o mundo se torna cada vez mais digital, desenvolvemos ferramentas para aplicar o aprendizado ancestral em escala com eventos online que visam curar traumas em níveis individual, ancestral e coletivo — e até mesmo refazer a internet baseada nesta imagem.” - Radar Resolutions: 10 Visions of 2023
Notes to you
Recentemente foi anunciado o encerramento do restaurante Noma no fim de 2024 para dar lugar a uma versão 3.0, onde funcionará um laboratório de inovação na área alimentícia e contará com versões pop-up mundo afora de sua cozinha, incluindo um já confirmado em Kyoto.
O Atlantic publicou uma ótima reflexão sobre o quanto o Noma ajudou a piorar a cultura de jantares requintados, transformando-o numa indústria insustentável e tóxica.
Em 2022 implementaram a tecnologia Pick & Go no Rewe vizinho, onde ao entrar é só escanear o aplicativo na catraca e, a partir de então, todo produto retirado da gôndola é debitado de sua conta. Não é necessário fazer nada além de colocar os produtos na sacola e sair sem qualquer burocracia.
Hunger
🍿 Dois filmes na Netflix para quem gosta de humor ácido: o novo “O menu” que mostra fim da era do chef como estrela e não deixa de ser mais um filme está curtindo a onda de filmes e séries satirifzando a riqueza, e o brasileiro “Estômago”, que retrata de maneira fidedigna os aspectos da gastronomia italiana na cidade de São Paulo. Pode, porém, ser indigesto para alguns.
🎥 “Soul”, no Netflix, é um ótimo documentário sobre a excelência da cozinha com alma dos chefs Jiro Ono e Eneko Atxa.
✈️ Viajei com o Anthony Bourdain nos episódios de “Parts Unknown” gravados em Copenhagen e em Berlim.
📚 Devorei com gosto o livro Formação da Culinária Brasileira, de Carlos Alberto Dória, que proporciona uma surpreendente viagem pela história da nossa cozinha, e Cozinha Confidencial, do Anthony Bourdain, um dos livros mais viscerais que já li. Perguntei para um dos meus cozinheiros favoritos, o Jo, criador da CURI Comidaria, sobre seu livro favorito e a dica foi “Sangue, Ossos e Manteiga”, de Gabrielle Hamilton.
🖼 Criando arte com comida e transformando comida em arte.
🥦 Estou viciada nesta receita.
💌 Três newsletters para abrir o apetite:
, e .🎧 Na cozinha com a diva Jessie Ware e sua mãe.
🥢 O dia em que fui alimentada por monges budistas e o que tive uma experiência magnífica num restaurante estrelado Michelin por engano. Ficam as dicas para quem, for visitar o Japão e Portugal.
Obrigada a todos que responderam à pesquisa sobre a Espiral. As respostas superaram as minhas expectativas sobre quem são os meus leitores. Vocês compartilharam muitas dicas e críticas excelentes, que me deram ótimos insights. Aos poucos vou testando novos formatos, como o de hoje. Me dê um alô se chegou aqui agora me contando sobre você ou manda bala nas críticas ou sugestões.
Excelente edição, com esse review dos supermercados alemães rs! Realmente se aprende muito sobre a cultura local numa visita ao supermercado, e muito sobre as pessoas pelo que elas passam no caixa. Também fico brisando nesse exercício de criação de personagens. A pesquisa de tendências para o futuro da alimentação e como comem cada geração também está uma beleza. Muito a digerir por aqui, com a licença do trocadilho.
Amei como sempre! Também amo ir a supermercados , não importa onde esteja.
Em setembro vou para Berlin e já estou anotando as suas dicas ♥️