Espiral #119: O dia em que o mar virou céu
Verão na Suécia com banhão de natureza: Notas de férias
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Playlist para esta edição: Singles do novo álbum do Desire, que será lançado em 2 de outubro.
Comecei a escrever esta edição em um dos meus lugares favoritos do mundo: Ljungskile, um vilarejo na costa oeste da Suécia com cerca de sete mil habitantes, muito mar com cara de lago ao redor e natureza majestosa. Foi a primeira vez em muito tempo que decidi pausar todos os meus projetos durante uma viagem. Quase consegui, mas não cem por cento. É difícil dar as costas para o mundo quando somos freelancer e não temos projeto fechado pela frente. #MandaJobs
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A Suécia é sempre um convite para apreciar o silêncio. Li no ano passado o livro ‘Silêncio na Era do Ruído’, do explorador norueguês Erling Kagge, um grande entusiasta do tema. Kagge explora três tipos de silêncio ao longo do livro em meio à várias referências de cultura pop: o silêncio ao nosso redor, o silêncio dentro de nós e o silêncio que precisamos criar. A Suécia oferece o primeiro e abre a porta para os outros dois.
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O que me levou à Suécia, além do verão e da visita à família, foi o Way Out West, um festival indie que estava na minha lista de favoritos. Tudo foi perfeito até a audiência dobrar de tamanho, tornando-o uma enorme muvuca. Apesar da irritação em vários momentos, morri de felicidade ao rever o Air tocando Moon Safari, ver a PJ Harvey tão de pertinho que pude até notar um mal-humor disfarçado e ficar de carinha com o Fred Again, conhecido também como o ‘simpaticão da boate’ ou ‘amigão’. Entendi o hype, e o Fred ganhou meu coração. Escrevi sobre ele no Music Non Stop e chorei emocionada com a lembrança.
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Li na praia gelada da Suécia Lutas e Metamorfoses de uma Mulher, de Édouard Louis, numa sentada. É um livro curto sobre o acerto de contas do autor com a mãe. Com uma escrita corrosiva, Louis narra a relação conturbada entre os dois a partir de uma fotografia que encontra dela ainda jovem, em um momento aparentemente feliz. Mas ela não estava sempre infeliz? Ao longo da história, ele vai descobrindo uma versão dela que até então desconhecia.
Para quem leu, há uma continuação em pré-venda, Monique se Liberta, com lançamento previsto para setembro. Aparentemente, o final do livro anterior não é tão feliz quanto parece. No entanto, confesso: há algo na escrita de Louis que me incomoda, mas ainda não consegui identificar o que é. Alguém mais tem o mesmo incômodo?
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Comecei a leitura na mesma praia e terminei na sala da minha casa em Berlim: A Polícia da Memória, de Yoko Ogawa, uma história de um mundo distópico que explora temas de memória e esquecimento. Encontrei um excelente texto de Socorro Acioli que compara a história ao contexto brasileiro da anticiência e ao apagamento de memória durante a pandemia:
Na contramão, a internet está lotada de diários da pandemia, registros íntimos de confinamento. Haverá sempre um esforço de resistência, tanto nas distopias quanto na vida real. E parece que é sempre por essas minorias que cruzam o seu tempo ao contrário que as brechas de esperança são abertas. Chegou para nós esse livro de 1994, escrito por uma japonesa aficionada de diários, lembrando que estaremos vivos enquanto pudermos lembrar e falar. Ou enquanto alguém puder ler e saber o que guardamos na lembrança. Ricardo Piglia, outro fã de diários, disse que escrevê-los é viver duas vezes: na experiência e na recriação.
A Suécia ofereceu de bandeja o que tem de melhor: a natureza. Sempre que viajo para lá com meu marido, costumo passar quase o dia todo trabalhando ou me ocupando no computador de alguma maneira. Desta vez, porém, decidi abraçar, como se fossem minhas, as férias oficiais de um amigo que viajou conosco. Como foi libertador!
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No início do livro sobre o silêncio, Kagge fala sobre a busca dos aventureiros: o deslumbramento. Para ele, o deslumbramento é uma das maiores forças inatas do ser humano e uma das capacidades mais bonitas que existem. O silêncio absoluto é algo próximo ao deslumbramento.
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Meus sogros, Dan e Annika, vivem em um dos lugares mais bonitos que conheço. A casa da família está encrustada numa montanha pedregosa, de frente para o mar. O arquipélago ao redor forma uma paisagem deslumbrante, com ilhas salpicadas por todos os lados. O pôr do sol é sempre um espetáculo, mesmo para a família que o vê todos os dias.
Na minha casa, na casa dos meus cunhados e na dos meus sogros, o descanso de copo é um conjunto de várias fotos do pôr do sol tiradas pelo Dan, que é um excelente fotógrafo.
— Não há pôr do sol igual; cada dia é diferente. — diz Annika, contemplando o horizonte.
Eu vivo em permanente estado de deslumbramento quando estou na Suécia.
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Estávamos navegando no final da tarde. Quando voltávamos para casa, vi uma lua enorme e rosa, cortada verticalmente ao meio. Atrás de mim, o sol se punha no horizonte. Eram nove horas da noite. Enquanto o barco se aproximava do continente, a lua ia descendo atrás da montanha. Foi a primeira vez que vi a lua se pôr. Em volta, o mar silencioso.
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Estou preparando um guia de viagem “Verão na Suécia além de Estocolmo”. Viajei muitas vezes pelos arredores de Gotemburgo e posso afirmar que a lista de lugares bonitos é extensa, com a maioria deles sempre rodeada pelo mar e alguns até com fiordes. Quero escrever um guia para que as pessoas fiquem deslumbrada antes mesmo de pisar no país.
A cozinha sueca é uma das que mais gosto; o peixe e os frutos do mar são sempre frescos, e os suecos são, na maioria, gentis. Foi na Suécia que aprendi a amar sopa de peixe, que hoje é um dos meus pratos favoritos. Annika preparou uma para o nosso jantar de despedida, e ainda sinto o abraço que foi tomá-la.
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Perguntamos à Tove, minha concunhada de trinta anos, como é viver em um lugar tão insólito. Ela, que cresceu no meio da floresta em uma família de caçadores (uma ótima história para outra edição), disse que tentou morar em Gotemburgo por cinco anos. No entanto, concluiu que prefere viver na natureza e ir para a cidade quando tiver vontade, em vez de morar na cidade e ir para a natureza quando der vontade.
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Berlim é uma cidade barulhenta. O som que define a cidade é o da sirene de ambulância. Ela está presente em todos os lugares e a qualquer momento. Ouvi dizer que ela é estridente o suficiente para que qualquer pessoa, mesmo tentando fugir do mundo com fones de ouvido, consiga ouvi-la. É difícil encontrar o silêncio por aqui.
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A Tove está de férias de verão e não viajou. Um dia, a encontrei na praia, tomando sol com meu cunhado e um amigo. Parei para pedir protetor solar emprestado — afinal, quem disse que o sol escandinavo não queima? Ela ela olhou para mim e disse: ‘A vida é muito boa, não acha?’. É isso: feliz com o que tem ao seu redor. Quando questionada se não gostaria de viajar nas férias, ela retrucou: ‘Para que, se tenho tudo isso à disposição?’. Ela prefere viajar no inverno, mas não se engane: ela vai para lugares tão frios quanto onde mora, mas para lugares onde possa esquiar.
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Meu amigo perguntou à Annika: ‘Mas e quando o verão acaba?’ Ela respondeu: ‘Eu continuo gostando de estar aqui.’
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Foram dias tranquilos povoados com silêncio. Eu acordava tarde, tomava café da manhã sempre com uma vista esplêndida à minha frente, fazia caminhadas pela floresta ou à beira-mar, ia para a praia, improvisava um almoço ou saía para almoçar nos arredores. Por que eu prefiro morar em uma cidade grande que me causa uma ansiedade enorme? Não seria mais simples trocá-la por um paraíso como este? Porque Berlim me mantém deslumbrada também.
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Soube de uma padaria no meio da floresta e quis conhecê-la. O problema era chegar lá, pois estava sem carteira de motorista válida e a família ocupada com assuntos pessoais. No final, a Tove decidiu me levar. Fui de bicicleta elétrica até a casa dela, mas no caminho eu caí numa estradinha como uma fruta madura. Ploft! Não sei como caí. Quando percebi, estava estatelada no chão e machucada, mas decidi não estragar o passeio e pedalei, mesmo sofrendo um pouco. Sigo machucada sem conseguir voltar à aula de yoga.
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O dia estava chuvoso, mas ainda assim afirmo: foi a padaria mais bonita que já visitei. A Brödbacken fica em um antigo celeiro datado do século XVII. Cercado por prados floridos, montanhas e um lago, o casarão de madeira vermelha tem dois andares, é decorado com móveis rústicos e possui janelões, além de manter as vigas e troncos originais expostos. No andar de baixo, há uma sala de estar com sofás, poltronas e mesas baixas, enquanto em cima, mesas e cadeiras de diferentes modelos estão espalhadas por todos os lados. Ao redor, apenas a floresta e animais pastando. No menu, há torradas, sanduíches suecos típicos — como os abertos e cobertos com camarão, saladas e bolos. Eles fabricam seu próprio pão, apenas de fermentação natural. O café é coado, e o capuccino é o nosso tradicional café com leite.
Oferecem workshops, vendem produtos locais de design e cosméticos, promovem exposições temporárias e têm uma agenda de shows, sempre com ingressos esgotados. Nada é afetado no local. É simples, tradicionalmente sueco e está em seu habitat natural: a natureza. O hipsterismo — quando chegou a ser algo positivo — poderia ter nascido ali, mas, por trás disso, está Christina, uma senhora que sonhou por anos em ter sua própria padaria de fermentação natural e passou dois anos reformando o antigo celeiro da família para realizar seu sonho. Ou seja, é um lugar genuinamente autêntico.
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Fui almoçar com meu amigo em um restaurante na praia. O grande salão estava vazio, enquanto a área externa era disputada por prováveis donos de barcos atracados na marina ao lado. Comemos bacalhau fresco, um dos meus peixes favoritos do norte do planeta, acompanhado de uma taça de vinho branco. Duas garrafas de água da casa foram colocadas na mesa: uma com gás e a outra natural. Na garrafa estava escrito ‘Thoreau’. Ri por dois motivos: levei ‘Walden’ em uma tentativa frustrada de terminá-lo e porque seu autor, Henry David Thoreau, remexeria no túmulo se soubesse disso.
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Praticamente todos os restaurantes na Suécia oferecem água gratuita antes de você pedi-la. Acho tão chique!
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Eu e meu amigo decidimos cozinhar para toda a família. Após caminhar por quarenta e cinco minutos até o supermercado e ganhar uma carona na volta, passamos algumas horas na cozinha preparando um jantar italiano. A mesa foi montada no terraço de madeira em frente à casa, onde um pequeno penhasco se debruça até o mar. O sol estava alto quando nos sentamos para comer. Tivemos um dos pores do sol mais bonitos da nossa temporada. Seguimos deslumbrados.
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A Annika não precisa de motivo para entrar no mar. Ela nada pelo menos uma vez por semana durante todo o ano. Quando a água congela, ela faz um buraco no gelo e mergulha nele. Simples assim! Eu aplaudo, mas tremo de frio só de pensar nisso. Acredito que o mar é para ela um dos lugares onde o silêncio mora.
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O verão também é a temporada de plâncton bioluminescente, que brilha no escuro sempre que há movimento na água. Após o jantar, a Annika sugeriu um mergulho noturno. Apenas o meu amigo se animou a acompanhá-la, mas todos descemos juntos para a praia. Com bastante álcool na corrente sanguínea da maioria, estávamos todos efusivos. Os dois pularam no mar e começaram a fazer movimentos rápidos com as pernas e braços, transformando o mar em céu estrelado, graças ao brilho dos plânctons. Eu, emocionada, acabei caindo de novo. Nesse dia não houve silêncio.
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Um grande tesouro que encontrei durante a viagem foi um álbum de fotos da Annika e de sua mãe, Ami, ambas ainda bebês, tiradas numa época em que fotografar não era comum. Havia vários álbuns, todos organizados em ordem cronológica. Passei horas folheando-os, já que não tenho sequer uma foto minha de bebê e apenas quatro fotos da minha infância. Assim como a Suécia, sou fascinada pela família do meu marido.
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A Ami faleceu há cerca de quinze dias. Ela estava com noventa e cinco anos, tinha os cabelos brancos como algodão e olhos azuis muito pequenos. Morreu como gostaria: dormindo. Teve uma vida cheia de aventuras; foi professora de yoga, estudou na Índia, viajou para o Paquistão nos anos 1980, adorava literatura policial, lia muito, falava inglês e francês, se divorciou numa época em que não era comum se separar, dirigiu e esquiou até quase os oitenta anos e ainda topou ser minha dama de honra no casamento. Sua história daria uma bela biografia.
Ela morava sozinha em um apartamento em Gotemburgo até o início do ano passado. Uma vez, perguntei por que ela não se mudava para Ljungskile, onde ficava sua casinha de verão e o restante da família. Ela respondeu rindo: ‘Eu morreria entediada.’
Descanse em paz, querida Ami. Já sentimos muito a sua falta. ♡♥︎
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Quando descemos do avião em Berlim, sentimos um bafão quente de calor. Meu amigo me olhou e disse: ‘Passar o verão na Escandinávia é o futuro.’
“Não há nenhum livro escrito que possa nos dizer mais do que aquilo que nós próprios experimentamos. Por isso, inspirem profundamente. Não é preciso muito para entender o silêncio e o modo como podemos ter prazer em desligar-nos do mundo.” - Erling Kagge
Black Notes
Essa banda me conquistou lentamente no Way Out West. Adorei ver os novinhos fazendo um som que parecia sair de uma banda dos anos 80;
Esta conversa com o Hermeto Pascoal só prova sua genialidade;
A
também saiu de férias e levou o mesmo livro que eu levei para terminar de ler. Nenhuma das duas conseguiu. Mas enquanto divaguei sobre meu deslumbramento, ela trouxe o David Lynch para a conversa;Ebook gratuito com 12 dicas para Escritores, também da Carol Bensimon;
Você deixou de ser fubanga. Que texto
!Pop art, surrealismo, arquitetura contemporânea e a descoberta do dia: Emanuella Wojcikiewicz;
Para quem está planejando ir ao SXSW no próximo ano, vale a pena conferir essa lista sobre 10 padrões reconhecidos nas mais de 400 palestras submetidas ao festival (obrigada
pela dica);Assisti “Kind of Kindness”, do Yorgos Lanthimos, e não tenho ainda uma opinião a respeito. Se gostei? Mais ou menos…. mas a bondade passa longe do filme;
Enquanto termino de escrever esta edição, começo a ler uma edição bilíngue de ‘Crônica de Berlim’, de Walter Benjamin. Deixo, antes de ir, um ótimo DJ mix do Moby, que encontrei na
.Boa semana! Nos falamos em breve.
Que lindeza! E eu quando comecei a ler ia pedir para você fazer um post de dicas da Suécia!! Amei que já está na sua lista. Obrigada ❤️
"Eu vivo em permanente estado de deslumbramento quando estou na Suécia."
eu também e eu moro aqui haha embora tenha as fases amor-ódio, basta eu sair pela porta do prédio, descer 1 quadra e fazer as pazes pq já estou na floresta.
amei ver a suécia pelos seus olhos (e ouvidos). a questão do silêncio me pega muito, virou essencial para minha escrita inclusive.
enfim, besos