Espiral #89: A escuta como estado contemplativo
Minha experiência com bares de audição (ou os "listening bars")
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Considere apoiar mensalmente a Espiral ou me pague um café para eu tomar enquanto penso nas próximas pautas. A foto da capa é divulgação do Bar Neiro, em Berlim.
Trilha sonora para esta newsletter é o álbum “Hidari Ude No Yume”, de Ryuichi Sakamoto, que inspirou esta edição.
Uma grande nuvem ameaçava a serenidade da minha quarta-feira. O calor tinha dado trégua e eu, que sei o quanto abuso em querer juntar todo mundo no mesmo lugar, convidei todos os amigos que passeavam em Berlim para me encontrar numa sessão de audição. Junto, mandei o recado: “Vá caso não se incomode em ficar uma hora apenas escutando.” Todos foram.
O “after” é um dos lugares mais especiais de Berlim, mas não está em nenhum guia e nem pretende estar. É um estúdio construído por amigos para amigos para promover audições sonoras. Ele fica num salão amplo com pé direito alto, talvez 6 metros de altura, no térreo de um prédio residencial.
Alguns tapetes no meio, cadeiras empilhadas num canto, 4 torres com várias saídas de som e subwoofers estão posicionadas em cada uma das pontas da sala. Aos fundos, mais 4 caixas de som aguardam o momento de envolver sonoramente cada uma das pessoas ali presentes. Numa das paredes laterais, um toca-disco. O sistema de som hi-fi foi todo desenhado e construído por Jürgen Pack, que é cego, o que, para uma pessoa com um sentido a menos, me parece deixar a qualidade sonora ainda mais perfeita. A acústica do local também foi tratada por um estúdio especializado no assunto. Tudo pensado. Nada por acaso.
Não tem cobrança de valor de entrada e um bar improvisado nos fundos do salão oferece algumas opções de bebidas. Tudo minimalista, porque o som é a atração do lugar.
Às 8 horas da noite em ponto, o anfitrião pede para todos se sentarem, mas na falta de cadeira, sugere que ninguém sente no chão, porque a partir dele a experiência sonora não será a mesma. A qualidade se perde no caminho. Lotamos o espaço e algumas pessoas se espalham em pé aos fundos do estúdio.
O silêncio recai sobre nós enquanto algumas pessoas tentam achar a melhor posição na cadeira e outras correm para pegar o último drink antes da viagem começar. O toca disco é aberto e o álbum “Hidariude no Yume” (lançado na Europa com o título “Left Handed Dream”), de Ryuichi Sakamoto, é colocado delicadamente no prato, uma obra obscura de 1981, com arranjos complexos, exuberantes com incontáveis instrumentos eletrônicos e analógicos, oscilando entre o pop e a música de vanguarda, com referências do oriente e do ocidente, do jazz e da música neoclássica. Uma obra-prima. Dá vontade de dançar.
Por 50 minutos ouvimos a música numa experiência imersiva. O som reverberava em cada poro do corpo. Diferentemente de um sistema de som comum, no “after” sentimos cada nota, cada instrumento e cada movimento. O som ganha forma de tal maneira que eu vejo a banda tocando ao vivo no meio do salão. O som é limpo. Puro. Bonito.
Tivemos um banho sonoro. Ao redor, algumas pessoas se remexem, uma tem um rápido ataque de riso baixinho, uma ou outra pessoa fotografa ou grava a cena em volta, poucos sussurros e algumas poucas pessoas se entregam a um estado meditativo. Vestiram o som. Deixaram ele atravessar a pele. Sumiram dentro da música.
Para mim foi uma experiência terapêutica como sempre é quando me entrego à música. Foi aconchegante. Ao final, voltamos ao mundo real de olhos arregalados como se pudéssemos ainda ver o som se desfazendo no ar. Ninguém sabia muito bem o que falar. Mas para que falar num lugar que foi feito para escutar?
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Eu sou grande fã dos bares de audições. Em Berlim temos quatro, o Bar Neiro, Rhinoçeros, Kwia e o Unkompress, além de mais dois anunciando a abertura.
Nós, seres humanos, temos dificuldade para escutar. Quando permitimos escutar e fechamos os olhos, viajamos na experiência. Voamos. Vamos para onde a música nos levar.
Surgido no Japão nos anos 1950, os bares de audição (os listening bars como são chamados mundo afora) têm conceito simples: Fale menos, escute mais. Quando estive em Tóquio, eu visitei vários deles. Por lá, eles levam a sério assim como é o “after.” Conversar é falta de educação. Você senta, pede seu drink e escuta. Contempla. Medita.
Nestes bares, o sistema de som é sempre hi-fi, projetado para capturar e reproduzir uma ampla faixa de frequências e nuances musicais, incluindo tons altos, médios e baixos. Uma lindeza só para enaltecer esse sentido que às vezes nos parece deslocado.
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Durante a pandemia eu retomei o hábito de ouvir discos na íntegra. Graças ao marido nerd, temos duas caixas de som Dynaudio em casa, que são excelentes e deixam nossa experiência auditiva mais potente. Nesta época, fazíamos sessões de audição aos sábados. Escolhíamos um álbum e ouvíamos juntos ele na íntegra. Foi uma fase maravilhosa, porque a música é capaz de nos reconectar com pessoas que já fomos. Alcança outros “Eu.” Ela nos permite voltar a sonhar.
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Em 2021 lançaram ao vivo em streaming, no YouTube, o álbum “Promises”, do Floating Points e Pharoah Sanders. Eu e o marido sentamos no sofá, baixamos a luz da sala e passamos os quase 47 minutos dentro na música. Sem mexer. Sem falar. Só escutando. E chorando de tão lindo e intenso que é o álbum e a arte de escutar. Voltei nele sempre que uma tristeza aterrorizante queria tomar conta de mim. Escutar, ao lado da escrita, foi minha terapia durante as quarentenas. Ainda é.
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Eu tenho problema para escutar. Sou ansiosa e inquieta. Falo pelos cotovelos. Demorei bastante para aprender a deixar as pessoas falarem. Às vezes eu sou a mal-educada que corta a fala das pessoas, mas aprendi a me policiar. A ouvir.
Eu sofro de um zumbido infernal no ouvido. Tinnitus. Não existe silêncio na minha vida. Então é a música o que me deixa em paz. Não sou fã de fones de ouvido. Gosto de ouvir o som saindo da caixa, porque assim eu o sinto atravessando o meu corpo. Eu o vejo no ar.
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O Rick Rubin, em seu maravilhoso “Ato Criativo: Uma Forma de Ser”, tem um capítulo dedicado à escuta. Ele fala justamente sobre a escuta ser sobre o presente. “Quando escutamos, só existe o agora. […] Embora os olhos e a boca possam se fechar, o ouvido não tem tampa, nada para fechá-lo. Ele aceita tudo que o cerca. Recebe, mas não pode transmitir. O ouvido está simplesmente presente no mundo. […] dizer que escutamos com os ouvidos ou com a mente talvez seja uma concepção errada. Escutamos com o corpo todo, com todo o nosso eu.”
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Minha amiga Stefanie Egedy pesquisa os sons graves e seus efeitos terapêuticos. As frequências baixas. Ela tem viajado pela Europa oferecendo banhos de graves para sua audiência em locações belíssimas, muitas delas em meio à natureza. Música e mato. As pessoas saem revigoradas das sessões.
A Stefanie usa multicanal com 12 subwoofers, ou seja, alto-falante projetado para reproduzir frequências de baixa frequência, os graves. O subwoofer é capaz de produzir os tons mais baixos que os alto-falantes convencionais não conseguem reproduzir adequadamente, proporcionando uma experiência sonora mais rica e imersiva. Ela apresenta hoje a maior instalação deste tipo do mundo.
Sua obra “Bodies and Subwoofer” é uma verdadeira massagem corporal. Capaz de alcançar lugares do corpo que as mãos não alcançam.
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Eu gosto muito que em Berlim fotografar em festas é proibido, então o celular é esquecido na bolsa tão logo entramos em um club. Você dança e escuta a música.
O Berghain tem um sistema de som tão requintado, que faz jus ao título de “templo do techno”, porque quando na pista, é fácil se entrega à música. Escutar. Todo mundo olha para a direção de quem está tocando enquanto se entrega para as ondas sonoras que atravessam a pista. O som é tão limpo, perfeito e na altura certa que, mais do que uma experiência de festa, o Berghain nos convida a escutar. E as pessoas escutam.
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O MONOM hoje tem funcionado apenas como estúdio para residências. Raramente abre para o público. Ele é também um dos melhores lugares de Berlim para ter uma experiência sonora. Eu tive experiências que pareceram lisérgicas de tão imersivas que foram. Não precisa de absolutamente nada para alterar os nossos sentidos. A entrega à escuta faz o trabalho todo.
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Sempre que divago sobre música e escuta, eu lembro da obra “The Murder of Crows”, de Janet Cardiff e George Bures Miller, em Inhotim. Foi nela que eu tive a minha primeira imersão sonora. Fiquei duas horas na sala de olhos fechados escutando. E sentindo. O corvo estava no meu ombro. Eu mergulhei nos sonhos. Uma das obras mais bonitas que já ouvi ao vivo.
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Escutar é contemplar.
Quando foi a última vez que você parou tudo para escutar? Não pegou no celular, não levantou, não conversou, não fez absolutamente nada a não ser ouvir. Pode ser um disco, pode ser uma pessoa te contando uma história. Você escuta?
Listen
🚴🏻♀️ Li “O mundo sem anéis - 100 dias de bicicleta”, da
. Entrei na leitura de maneira despretensiosa. Livro para matar o tempo. Fui sugada. Pedalei milhares de quilômetros com a Surina, me emocionei e o livro ainda reverbera por aqui. Quero elaborar isso melhor.🖤 Li “As pequenas chances”, da Natalia Timerman. Gostei, me emocionei e em alguns momentos fui arrastada para uma tristeza avassaladora prevendo um sentimento que provavelmente eu vá sentir um dia.
📖 Estou lendo “A autobiografia de Alice B. Toklas”, de Gertrude Stein, uma autobiografia dela mesma disfarçada de biografia da companheira. Tem tanta genialidade nesse livro, que volto nele quando terminar a leitura. Lendo em conta gotas para não acabar.
♀️ Comecei a ler “Space Crone”, de Ursula K. Le Guin.
👂 Um mini-documentário sobre a arte de escutar (em inglês).
🍷 Assisti “Drops of God”, na Apple TV. Ótima para matar o tempo e aprender algumas coisas sobre vinho, além de passear um pouco pelo Japão, Itália e França.
🌸 Estou assistindo a excelente série “The Lost Flowers of Alice Hart”, na Amazon, com a Sigourney Weaver, e “Black Bird”, na Apple TV.
🎞️ Estou atrás de “Violeta foi para o Céu”, documentário sobre a cantora chilena Violeta Parra.
🤠 Descobri que a Beth Ditto faz parte do elenco, ao lado da Susan Sarandon, do “Monarch”, da Fox, uma série sobre uma dinastia na música country. Quero assistir só para ver a Beth cantando.
🐦⬛ É possível ouvir na íntegra a obra “The Murders of Crows” aqui.
🔊 Caso você esteja em Lisboa nos próximos dias, a Stefanie Egedy está apresentando a obra dela de subwoofers no festival Lisboa Soa esta semana. É de graça.
💀 O anúncio que a crônica morreu causou rebuliço e muito texto bom para mostrar que a crônica está viva e mora no Substack.
✨ É, está todo mundo tentando essa coisa de crônica, para fazer a própria festa.
🤖 A inteligência artificial está morta.
🇧🇷 Dez artistas brasileiros que estão moldando a arte contemporânea (em inglês).
👾 Artistas mulheres cuja prática mistura o físico com o digital.
Caso esteja em Berlim: The Next Day é uma newsletter que apresenta as boas do fim de semana por aqui.
Tchau! E nos falamos em breve, porque eu estou cheia de coisas para contar. Caso tenha gostado desta edição, passa ela para a frente. ♡
AMEI essa imersão.
eu tenho hábito de escutar álbuns no toca disco de olhos fechados, que nem você descreveu. sons são meu refúgio (quando comecei a meditar com afinco, foquei em técnicas que usam o foco no som para só depois conseguir praticar sem âncora, foi uma boa passagem).
tem um álbum super clichê que todo mundo conhece, o famoso The dark side of the moon, do Pink Floyd, que é o álbum que eu mais escuto, desde criança, e percebo que a cada ano que passa eu sinto algo a mais, escuto um ruído novo, interpreto um som conhecido de outra maneira... enfim. tô anotando tanta coisa desse texto!!!
obrigada. e obrigada por listar os lugares de imersão sonora em Berlin. agora quero fazer uma visita só para visita-los.
eu amo o zeitgeist de gente chic! falamos sobre o mesmo tema e citamos o mesmo livro nas nossas ultimas edições, amei a conexão ❤️