Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Trilha sonora para essa newslleter: “Atlas”, o novo álbum de Laurel Halo
Viajei para São Paulo sexta-feira passada, o que me deixou bem atrapalhada causando atraso nesta edição. Estou agora instalada entre a casa dos meus pais e na casa de uma amiga com quem fiz um “home swap”. Ela no meu apartamento em Berlim, eu em um dos apartamentos mais solares que já fiquei em São Paulo.
Hoje, fugindo do formato das demais edições, eu me dedicarei a falar sobre a Florentina Holzinger, coreógrafa e performer austríaca de 37 anos, que está dando o que falar com seu trabalho de vanguarda nos palcos. Nada é simples neles.
"[…] no espetáculo de variedades, era muito importante que a ação fosse divertida, enquanto em uma galeria de arte, às vezes, parece que é o oposto. No final das contas, vejo como minha responsabilidade entreter o público. Não para que desliguem suas mentes, mas precisamente para permitir que eles observem coisas mais complexas." - Florentina Holzinger
Com vocês: Florentina Holzinger
Quem me segue no Instagram deve ter se visto alguns Stories que fiz das performances da Florentina Holzinger. Caso não seja o caso, eu vou apresentá-la à você, mesmo que não da maneira como eu gostaria, porque ainda sigo digerindo tudo o que ela me provocou no último mês. Gosto assim, quando a arte me tira do prumo. Desalinha meus pré-conceitos. Instaura o caos. Dentro e fora de mim. A obsessão pode vir no pacote.
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Sempre há um momento na vida em que nos deparamos com algum(a) artista que vira o nosso mundo de ponta cabeça. Ficamos monotemáticos. Queremos conversar com outras pessoas que também foram impactadas como nós. Saímos evangelizando e gritando por todos os lados “você precisa ver ao vivo, pelamordedeus!”. Aí a pessoa vai lá, assiste e odeia. Não entende o que você viu que ela não viu.
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Esse é o papel da arte. Muitas vezes a gente não alcança a mensagem do artista. Falta repertório. Pode ser também que a obra não se conecta com nossa história de vida. Ou às vezes a obra só tem mesmo o vazio, mas insistimos em buscar significado. No entanto, quando mexe com a gente, quando nos emociona, chegamos a nos sentir especial por ter captado a mensagem. Uma grande bobagem, claro! Afinal, quem é especial num mundo peçonhento como o nosso? Esse inferno quente. Queimando pelas bordas. Quarenta graus aqui dentro e lá fora. Há tempos eu não suava tanto como neste momento.
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Não faz muito tempo que ouvi falar pela primeira sobre a Florentina. Vou chamá-la assim, de maneira íntima. Uma amiga já está chamando-a de Flo. O Mateus, meu parceiro no
, é rato de teatro. Está sempre dentro de um. Viaja atrás de espetáculos. Foi ele quem me contou sobre o concorrido “Ophelia Got Talent”. Ingressos esgotados em poucas horas e pessoas viajando de outras cidades e países para Berlim só para vê-la.Um mês depois, um outro amigo me convidou para assistir a performance “Florentina Holzinger & Team 'Schrott-Etüde (Scrap Etude): An Etude1 for Extinction”. Contou-me que tudo que viu com ela sempre foram experiências fora do comum. Comprei os ingressos que se esgotaram tão logo o convite foi feito.
Primeiro Ato
Às 7 horas da noite de uma quarta-feira ensolarada, eu estava sentada desconfortável no chão de uma calçada suja, atrás de uma corda que delimitava área do estacionamento do Estádio Olímpico de Berlim.
À nossa frente, um carro pendurado por um cabo de aço, preso a um guindaste muito alto. Abaixo dele, um carro batido. Destroçado. Nas laterais, duas baterias ocupadas por duas senhoras nuas tocando numa intensidade crescente.
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Duas performers caminhavam, como numa passarela do desespero, arrastando uma grande capa de metal provocando um barulho ensurdecedor. Uma maestra regia as bateristas como se à sua frente tivesse uma orquestra. Entrou então um carro sendo dirigido apenas com as duas rodas laterais. Do banco do passageiro, a Florentina sentada nua no alto da porta arranhando-a com um arco de violino.
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A plateia não piscava. Tudo atrás da corda parecia congelado esperando o próximo ato. Uma trilha sonora apocalíptica se instaurava. Atrás de nós, uma bola gigante vermelha descia devagar no oeste como o prenúncio de fim do mundo.
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De repente, de maneira inesperada, o carro pendurado despencou em cima do carro batido causando uma explosão. Gritos! Fogo, pessoas vestidas de pretos (as únicas vestidas) entraram no fogo para depois caminharem em chamas em nossa direção.
Bombeiros atrás. A música foi ficando sufocante. A maestra enlouquecida pulava de um lado para o outro. Fogo apagado. A música diminuindo. Fim do espetáculo.
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Demorou um pouco para entendermos que tinha acabado. Era aquilo. O sol tinha desaparecido enquanto uma super lua laranja subia no céu. O mundo consumido em chamas.
Segundo Ato
Berlin Atonal, um dos meus festivais de música favoritos. Atonal. Música dissonante. Para muitos, um festival chato. Para outros muitos em Berlim como eu, inspirador. Música de paisagem. Contemplativa. Ninguém dança. Não tem lugar para sentar além do chão. Barulhento às vezes. Quase uma ode ao silêncio em outros. Em Berlim, os ingressos se esgotam enquanto seria um fiasco em muitos lugares do mundo.
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Na programação do primeiro fim de semana, a performance “Etudes for Church”, de Florentina Holzinger, com duração de 20 minutos, seria apresentada todos os dias. À época em que eu comprei os ingressos eu não sabia quem era a Florentina. De repente, passou a ser a minha apresentação mais esperada.
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O Atonal acontece numa das locações mais extraordinárias de Berlim, o Kraftwerk, onde no passado funcionou uma usina termoelétrica. Como quase tudo na cidade, a reforma manteve sua estrutura original, incluindo a antiga sala de comandos, um dos lugares mais fantásticos do prédio. O palco principal tem 20 metros de altura de pé direito. Aos fundos, um telão fixo fica posicionado na vertical tão alto quanto o seu pé direito. É dentro desse mesmo prédio que fica o Tresor, o club de techno mais antigo de Berlim, que talvez você já tenha visto em algum filme ou série filmados na capital alemã.
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Do lado oposto do telão, um sino original de igreja foi pendurado ao centro de um palco improvisado onde aconteceria a performance. Às 22 horas, eu estava posicionada atrás de uma corda na lateral do sino. Assim como a performance anterior, esta desceu indigesta. Desconfortável. Bela. Intensa. Corajosa. Aflitiva. Potente. E eu muito zonza. Boquiaberta.
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Uma mulher escala o sino por uma corda para se tornar o badalo dele. Outras duas mulheres descem penduradas do teto, num balé acrobático, para dançarem em cima do sino enquanto batem nele. Mais duas mulheres entram, cada uma por uma lateral, para serem levantadas do chão em ganchos presos à sua carne. Suspensão. Aflição. Comoção.
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Uma senhorinha de uns 80 anos ao meu lado está de olhos arregalados. O sorriso escorregando para os lados. Ela não tira os olhos da performer, que sobe suspensa quase na altura do sino, segurada pelos ganchos presos em seus músculos. Algumas pessoas desviam o olhar. Eu não sei para onde olhar, então mantenho o foco naquela cena que faz o meu estômago revirar.
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As performers se revezaram nos diferentes papéis nos três dias de apresentação. A Florentina teve seu momento como badalo do sino e em uma outra, fez suspensão.
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Terceiro ato
Eu descubro duas apresentações de “Ophelia Got Talent” para meados de setembro com ingressos esgotados há meses. Decido ir com uma amiga tentar a sorte na porta com a placa “Kuche Karten”2 em mãos. Por lá, nos deparamos com umas 20 pessoas na mesma tentativa que nós.
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Às 19h30 eu estou sentada no fundo do teatro. A minha amiga está 6 fileiras à minha frente. A cenografia é caprichada, a produção também. Uma capitã de cabelos longos desalinhados, que me lembra a Natasha Lyonne, inclusive com a mesma voz rouca entra gritando em inglês. Ela está usando uma blusa clássica de marinheiro, botas acima do joelho e um quepe na cabeça. A maquiagem borrada, apenas um dente muito branco na boca e nua da cintura para baixo. É ela quem comandará as 2 horas e meia de espetáculo sem direito a intervalo.
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O que começa com uma paródia dos concursos clássicos dos programas de TV, se transforma em um labirinto de referências entrelaçadas entre a cultura pop e a alta cultura, executadas com virtuosismo luxuoso e um visual que é puro deslumbre. É refinado e kitsch ao mesmo tempo.
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“Ophelia Got Talent” é um comédia dramática. Ela mergulha profundamente nas raízes culturais de Ofélia, de Hamlet. Histórias pessoais vividas, muitas vezes trágicas, composto por um elenco feminino, abrangem desde anorexia até estupro entrelaçadas de maneira hábil em um mosaico complexo.
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São diversos atos se desdobrando por meio de dança, circo, pirofagia, magia e mais um monte de outros meios, todos entrelaçados por uma narrativa cinematográfica, com câmeras captando cenas ao vivo, exibidas no telão. Muitas dessas imagens são transportadas para o telão cheias de poesia.
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Entre os momentos memoráveis estão uma performer acorrentada dentro de um aquário, outra que perfura a própria bochecha com um gancho, uma dança ousada e hipnotizante num pole suspenso no alto do palco, uma artista engolindo espadas. O ápice chega com um helicóptero descendo do teto para ‘ejacular’ na piscina abaixo, em uma cena de sexo simulada.
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O kitsch, o belo e o chocante coexistem de maneira harmoniosa num universo destemido e feminista desta obra.
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Em um outro momento alto do espetáculo, entra um grupo de crianças no palco, todas elas vestidas, que cantam, encenam, nadam e interagem com o elenco, tão diverso de um jeito que pouco vemos nos palcos.
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Florentina Holzinger coloca em seus palcos diferentes tipos de profissionais e mulheres. São idosas, brancas, negras, com Síndrome de Down e uma anã. Uma mulher trans surge da plateia para ser tatuada no meio da peça.
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Algumas pessoas abandonam o teatro no meio do espetáculo. Uma delas passa mal com as cenas e corre para fora da sala para não voltar.
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Florentina Holzinger entrega um espetáculo poderoso de todas as maneiras. É feminista e radical. É aplaudida em pé por longos minutos. Todo mundo de boca aberta. Gritos. Aplausos. Ninguém consegue sair do lugar.
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Florentina Holzinger mergulha em diversas formas de representação feminina, buscando criar um espaço libertador para dar vazão a todo o potencial do físico humano.
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O corpo feminino, em suas variadas habilidades, é desvinculado de fetiches e reafirmado por essas mulheres encarnadas em uma performance que se ergue sobre transições fluidas entre o passado e o presente, a arte e o entretenimento, a delicadeza e a brutalidade, o grandioso e o íntimo. A pergunta que fica é o que vem depois de tudo isso.
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Eu e minhas amigas seguimos para um restaurante em frente ao teatro para nos recuperarmos dessa porrada. Eu preciso conversar. Ouvir. Quero mostrar Florentina Holzinger para o mundo. Quero ser aquelas mulheres que se libertaram de seus traumas lá no palco.
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Terminamos a noite agradecendo a Florentina na fila do caixa pelo terremoto que ela causou. Ela está exausta, nos agradece e se despede.
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Florentina Holzinger faz todo mundo se sentir desconfortável. A sua obra reverbera dentro de mim porque ser mulher é carregar esse desconforto constante.
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Ela contou numa entrevista que os objetos motorizados que costuma colocar no palco simboliza a produção capitalista, essa coisa malcheirosa que está destruindo o planeta com suas emissões. Mas, que ao colocar de maneira suspensa, ela dá outro significado a esses objetos.
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Caso você esteja em Berlim, a peça “Tanz”, também de Florentina Holzinger, será apresentada nos dias 28, 29 e 30 de outubro. “Ophelia Got Talent” terá noas apresentações em novembro e dezembro, no Volksbühne, em Berlim. Quem estiver com planos de viagem em junho para a Europa, a peça “Ophelia Got Talent” será apresentada em junho, na Antuérpia, Bélgica.
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Eu ainda sigo digerindo essa sequência de espetáculos que assisti. Por ora, só quero falar dela, mas sei que nos próximos dias viverei coisas em São Paulo que têm o poder de ocupar a minha mente com outras belezas, reflexões e inspirações.
When it’s going wrong
Hoje a rapidinha mais rapidinha do ano:
📺 Estou devorando a quarta temporada de “Sex Education”;
🖤 Chorei no avião assistindo “Narcosis”, um filme holandês sobre luto;
👁️ Reli “História do olho”, de Georges Bataille, numa sentada. Ele me impactou da mesma forma quando o li há uns 25 anos;
👵🏻 Estou lendo “Envelhecer é para os fortes”, de Helena Celestino;
💬 Saber estar no silêncio, que me fez resgatar esse papo com o Emicida sobre silêncio e ruído na pandemia, mas que segue atual.
Tchau e nos falamos em breve! Sigo em São Paulo até dia 8 de outubro.
Estudo em português
Procura-se ingresso em alemão.
Eu sei exatamente essa sensação de sair de um espetáculo e não consegui falar sobre mais nada rsrs. Nossos amigos que lutem.
E adorei essa ideia desse house swap rsrs. Beijos de um canto muito lindo de Berlin 🤍🤍🤍