Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos. Essa é uma edição gratuita, mas considere apoiar a Espiral. ♡ ̆̈
Caso você more ou esteja visitando Berlim, não deixe de conhecer a minha newsletter The Next Day Berlin.
Trilha sonora para essa edição: Habibi Funk 024: The Father of Libyan Reggae
Não sei estou passando por uma crise de identidade, uma crise de meia-idade, uma crise criativa ou se faço parte de uma crise global. Tenho me sentido a própria crise encarnada. Gorda e espaçosa. Gulosa. Uma crise sufocante. Às vezes me deixando sem ar.
O paradoxo dessa crise é que eu estou bem, obrigada. Ou melhor, estou de boas. Tem um pouco de desânimo. Adicione aí um litro de preguiça. Misture o outono com cara de inverno e bata com os dias cinzas. Não esqueça de incluir a chuva para deixar a mistura cremosa. Cozinhe em temperatura baixa por 2.920 horas. Sirva quente. Tome de olhos fechados. A preguiça de existir descerá macia pela garganta. O inverno será servido em seguida, como uma xícara de chá fumegante, acompanhado de uma escuridão amarga que promete durar até o Carnaval. Se tiver sorte, ganhará um bilhete premiado que permitirá descartar a escuridão e voar para sentir massas calorentas embaladas em céu azul. Dos 4 aos 40 graus, sem conexão.
🛌🏻 💭 📦 🌊 🐈 🐆
Tenho dormido bem, mesmo tendo tantos sonhos estapafúrdios. No último, a minha faxineira, que na vida real sou eu mesma, tinha colocado meus seis gatinhos bebês - que eu não tenho - numa grande caixa branca com água até a borda. Encontrei-os batendo as patinhas e, no olhar, era só desespero. Não acreditei na crueldade da faxineira (ou era a minha?) em colocá-los ali para morrerem afogados. Tirei um por um de dentro da água, enquanto a mãe deles esperava-os afoita do lado de fora da caixa. Detalhe: A mãe era uma leoa laranja de pelúcia, sem um olho e com uma orelha destruída colada no meio da cabeça. Toda puída, a coitada.
Quando tirei satisfação com a faxineira, ela me disse que era para evitar que eles fugissem na madrugada. Porém, logo alguém correu para contar que se tratava de prevenção para eles não sujarem a casa e ela ter que limpar tudo de novo.
🥱 𓊳 📒 ✍
Acordo sempre esbaforida recontando o sonho para mim mesma (ou para o marido) para não esquecê-lo, enquanto tateio a mesa de cabeceira em busca do caderninho para anotá-lo. Meus sonhos são como psicografias de Leonora Carrington. Ou do Dali, se assim preferir.
Você já sentiu seus sonhos noturnos vazando para o dia? Os meus vazam…
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Eu passei alguns dias olhando para a tela em branco e dela nada saiu. Recebi um email da
convidando os assinantes pagos da newsletter para uma oficina de planejamento. Ao ler o convite, caiu uma das várias fichas sobre a minha crise. Eu, que sempre adorei planejar os meus projetos em uma fantástica fábrica caseira de keynotes, deixei tal tarefa de lado nesse último ano.Então, estarei eu em crise por falta de planejamento? Sem planejar, a vida apenas acontece. Quando mudamos de país, ela corre o risco de deixar de acontecer. Quando nos damos conta, estamos sobrevivendo com aparelhos.
💥 📑 💡 💭 ☀︎
Enquanto eu pensava no caos que a minha vida se tornou por (talvez) ter falhado no planejamento, o texto “Como se manter criativa”, da
, entrou na minha caixa de entrada. Corri para ler, já que a crise pode ser criativa:“Se a criação está estéril, é porque alguma coisa na vida pede atenção. Não existe boa arte onde a vida não é exercida. Às vezes é questão de pegar o cachorro para passear e abrir os olhos para observar o mundo de outra maneira. Ou às vezes é preciso cuidar da saúde mental e física. Em alguns casos, os silêncios também ensinam muito.”
Eu estava na mesa da sala de casa com a tela ainda em branco na minha frente. É isso, estou com crise de criatividade porque não planejei, o que me levou a estar sobrevivendo, não vivendo.
Na minha sobrevivência não cabe criatividade, porque nela nada acontece.
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Fechei o computador e abracei o clichê “a arte salva”. Encarei o metrô fedido por 10 minutos e uma caminhada debaixo da chuva por mais 15 para ir a um dos meus museus favoritos em Berlim, a Berlinische Galerie. Na saída da estação eu me deparei com a grande antena de TV, o cartão-postal da cidade. Sempre que a vejo gigante na minha frente, eu me lembro que estou em Berlim, a cidade onde sempre quis morar. Essa lembrança vem sempre acompanhada de contentamento. Conquista. Então porque a vida parece vazia? Tem crise mesmo por aí.
Segui para o museu, onde mergulhei por algumas horas na vida de Edvard Munch, retratada em uma exposição focada nas obras produzidas durante os períodos em que o artista morou em Berlim. Foi interessante notar nessas obras que, ao longo de um século, algumas coisas permanecem inalteradas. Ri ao identificá-las. Ao meu lado, uma senhorinha curvada, apoiando-se em uma elegante bengala, parecia compartilhar do mesmo sentimento. Ela olhou para mim e disse: 'Berlin immer Berlin' (Berlim sempre Berlim). Nesse instante, experimentei uma rara sensação de pertencimento. Respondi sorrindo, 'Genau' (exatamente), uma das poucas palavras presentes no meu vocabulário alemão. Rimos juntas.
A obra que me deixou sem fôlego, no entanto, não era de Munch. Foi “Sol da Meia-Noite em Lofoten” (1891), de Adelstein Normann, uma pintura ensolarada capaz de tocar a minha pele de tão radiante. Fiquei ali, imersa em saudades do sol, o do dia e o da meia-noite. E, de Lofoten, na Noruega, um dos lugares mais bonitos que já visitei. A imagem resgatou essa vida apagada que anda me habitando.
Saí de casa em um dia frio e chuvoso para ser arrebatada por um sol da meia-noite em Lofoten. Fiquei contemplando a pintura enquanto Normann me estendia a sobremesa em um grande pote, metade sol, metade vida.
😰 🫀 ❤️🩹 ☀️
No fim das contas, não me importa mais se é uma crise criativa, uma crise de planejamento, uma crise de meia-idade ou uma crise de identidade; são todas uma só. Ou se é apenas o outono convidando a me recolher. Às vezes, eu tenho medo é de não sentir mais nada. Sentir em crise pelo menos me faz sentir viva.
Aproveito então o momento para questionar o que podemos aprender com as nossas crises.
A parte boa foi que essa crise me trouxe novas leituras, discos, filmes, referências e beleza para os meus dias. Estar em crise, me colocou logo de cara em um estado apático, mas querer investigá-la me colocou em movimento.
Não é sempre fácil encontrar motivação nessas fases da vida. O máximo que muitas vezes conseguimos é procrastinar por horas enquanto rolamos quilômetros de tela que, no fim das contas, não nos acrescentam nada, apenas contribuem para aumentar nossa ansiedade.
Em meio à leituras, cheguei ao “Diário de Anaïs Nin: 1944-1947 - Volume 4”. Nele, encontrei o trecho abaixo tão atual e pertinente aos nossos dias. Quem lembrar da aldeia global de Marshall McLuhan, que veio bem depois, por aí levanta a mão:
"O segredo de uma vida plena é viver e se relacionar com os outros como se eles talvez não estejam aqui amanhã, como se você talvez não esteja aqui amanhã. Isso elimina o vício da procrastinação, o pecado do adiamento, as comunicações fracassadas, as comunhões fracassadas. Esse pensamento me fez prestar cada vez mais atenção a todos os encontros, reuniões, apresentações, que podem conter a semente da profundidade que pode ser negligenciada displicentemente. Esse sentimento se tornou uma raridade, e está se tornando ainda mais raro a cada dia, agora que alcançamos um ritmo mais acelerado e superficial, agora que acreditamos estar em contato com um número maior de pessoas, mais pessoas, mais países. Essa é a ilusão que pode nos privar de estar profundamente em contato com aquele que está respirando ao nosso lado. O momento perigoso em que vozes mecânicas, rádios, telefones, substituem intimidades humanas, e o conceito de estar em contato com milhões traz uma pobreza cada vez maior em intimidade e visão humana." - Anaïs Nin (tradução ChatGPT)
E, também não dá para ignorar tudo o que está acontecendo no mundo, o ódio se alastrando como fogo na guerra entre Israel e Palestina, no Afeganistão, no Rio de Janeiro, na Ucrânia e em tantos outros lugares do planeta. Como não ficar nauseada quando olhamos para o lado? Como se manter sã?
Habbla Con Ella
📩 A
escreveu um ótimo texto sobre como manter interesse pela vida que caiu como uma luva no meu momento. Ela abre com uma fala da Fernanda Torres: "Meu maior medo? Perder o interesse pela vida. Acho que esse é o maior perigo. E isso pode acontecer com alguém em qualquer idade, aos trinta, aos setenta. Você pode viver setenta anos da sua vida, perder o interesse em estar vivo e então seus próximos anos serão um inferno. Viver é muito complicado, você tem que se manter interessado".♡ Simone Weil era apenas um nome o qual já ouvi falar até ler “Viver conforme seus ideiais”, de
, sobre a filósofa francesa contemporânea da outra Simone, a Beauvoir. Sigo obcecada por Weil no momento.📚 Li no fim de semana “Uma confissão”, de Leon Tolstói, autobiografia de extraordinária franqueza e bastante emocional, que também traz uma reflexão perspicaz do autor sobre dinheiro, fama e sobre escrever pelas razões erradas. Nele, o Tolstói reflete sobre sua crise espiritual, questionando o significado da vida e a busca da riqueza material. Ele busca respostas nas ciências, religião e na filosofia. O livro é um pequeno tesouro, talvez uma de suas obras-primas menos comentada.
🎧 A música “The Key to the Exit”, de Deena Abdelwahed, segue no repeat desde que a revi ao vivo na semana passada em Berlim.
👂🏼 Tenho falado tanto sobre escuta ativa que me li duas vezes o texto “Escuta Profunda”, da
, que me levou ao documentário “Deep Listening: The Story of Pauline.”📺 Estou assistindo a série “Uma questão de química”, na Apple TV.
👩🏻💻 Você cansou de performar? Sobre estar cansada de apresentar desempenho — seja no off ou no on-line.
📝 Esta nota do Ted Gioia sobre o sucesso de Taylor Swift, que fez exatamente tudo o que era considerado old school na indústria da música, causou um alvoroço no meu cérebro. Vale a pena ler os comentários também.
🧳 Mudar leva tempo, no
, me fez refletir sobre os meus 4 anos morando em Berlim. Trouxe também algumas pistas sobre a tal crise.🍑 Descobri um novo mundo ao ler “a culpa é toda da Beiçola do OnlyFans”, sobre o momento atual da pornografia na internet. Não esqueça de pegar a pipoca.
📈 Esse chart interativo dá uma aula sobre o crescimento de gêneros musicais.
É isso por hoje. ♡
Espiral sempre trazendo um fio de esperança para as imigrantes em eterna crise. Passando atrasada de trem pra avisar 🚞❤️
Estava precisando ler essa newsletter. Será que estou em crise e nem mesmo reparei? Espero que a sua passe logo assim como os ciclos das estações dos anos. Gosto de pensar assim.
E fico feliz que o meu texto da escuta profunda tenha dialogado de alguma forma com as coisas que você tem pensado sobre a escuta. Ainda não tinha visto o filme que você mencionou. Obrigada por compartilhar :)