Espiral #43: Minha vida como analfabeta em Berlim
Aprender a alemão, Lei de Parkinson, Patti Smith, Blessed Madonna e Claudia Assef, Coachella, Muriel Barberi e Otessa Moshfegh.
Kraftwerk assina a trilha sonora desta newsletter com “Trans-Europe Express”
“Die Sprache ist der Spiegel einer Nation; wenn wir in diesen Spiegel schauen, so kommt uns ein großes treffliches Bild von uns selbst daraus entgegen.” - Friedrich Schiller
Me mudei para Berlim muito empolgada para mergulhar no curso de alemão, mas após um mês estudando 3 horas por dia, eu terminei o primeiro módulo mais exausta do que já estive na vida inteira e sabendo menos do que quando comecei. Lembrei-me o porquê do “curso completo de alemão” comprado em CD em 2007, época em que decidi morar em Berlim de qualquer jeito, repousava numa caixa empoeirada e intacta na casa dos meus pais.
Parece que não nasci com o gene da desenvoltura para falar outras línguas. A busca pela perfeição me fez não sair muito do lugar, porque eu morro de vergonha de falar errado. Esse é o primeiro erro de quem quer falar outro idioma. Eu sei e continuo errando. Travo, gaguejo e pareço nunca evoluir, o que é uma frustração constante.
A afirmação de que não precisa falar alemão para morar em Berlim, porque dá para viver em inglês, é uma grande falácia. Dá para se virar? Sim, estou me virando há mais de dois anos e tem gente se virando bem há mais de uma década. Dá para ficar satisfeita? Não.
O idioma que falamos molda a maneira como enxergamos as coisas. É falando a língua que percebemos as várias nuances de uma cultura e o que nos permite participar dela (ou entendê-la melhor).
Na Alemanha eu me sinto analfabeta quase o tempo todo, seja quando interajo com a burocracia alemã, ou quando vou ao supermercado comprar algo específico - e o Wi-fi sempre me deixa na mão quando tento consultar o nome de algum ingrediente em alemão, ou mesmo na simples tarefa de comprar pão na padaria.
Há dois anos eu compro o mesmo tipo de pão na mesma padaria com a mesma atendente. No início eu chegava toda orgulhosa e soltava: “Ein Dinkelkeim-Kruste, bitte”. Mas há dois anos eu recebo o mesmo olhar da mesma atendente de “não entendi”. O orgulho foi substituído por uma tensão constante. Meu maxilar se contrai, meu corpo enrijece, eu fecho a cara e aponto o pão. A atendente sorri, não sei se por escárnio ou por simpatia, e me entrega o meu pão favorito. Sempre que acaba o pão em casa, eu começo a suar frio se for a minha vez de buscá-lo. Quando estou de TPM eu opto pelo pão congelado para não passar nervoso.
Já tentei trocar o tipo de pão, porque tem alguns com nomes mais “simples” como o “Körnerkruste”. Quando achei que esse era meu tipo de pão só porque a mesma atendente me entendia, ela começou a fazer perguntas extras, o que voltou a me intimidar. Mas aí qualquer qualquer coisa que ela falava, eu respondia “halb” fazendo sinal de “metade” com as mãos. Ela sorria satisfeita desconfiando que meu alemão tinha progredido. Porém, não me adaptei muito a este pão, que é maravilhoso nos primeiros dias, mas depois fica massudo demais para o meu gosto. Voltei para o de nome impronunciável e fico repetindo o nome dele no espelho como mantra antes de sair de casa.
Outra tensão rotineira é quando o meu interfone toca e ele toca bastante porque o Ola está sempre comprando uma pecinha para alguma coisa. A maioria dos entregadores não fala inglês. Então eu atendo, eles falam algo que eu não entendo, eu pergunto “Paket?”, ouço “Ja” seguido de mais alguma coisa que nunca entendo. Então eu desço os 4 andares de escada voando por não saber se era para descer, já que alguns serviços de entregas, como a DHL, não levam até a porta. Confesso já ter fingido que não tinha ninguém em casa só para não atendê-los. O trabalho é maior depois, pois preciso ir até o apartamento onde meu pacote foi deixado, interagir com alguém e/ou ter que ir até um posto na rua para pegá-lo.
Nos restaurantes mais locais raramente há menu em inglês. No geral, eu aprendi a decifrá-los, mas costuma sempre ter algo que me deixa com dúvidas. Falho miseravelmente em algumas escolhas, o que me deixa sempre chateada. Um dia eu estava muito faminta e escolhi um prato de arroz com frango num restaurante asiático bem moderninho. Esqueci que o fato de ser “moderninho” pode atrapalhar porque eles estão sempre inventando moda e um prato de arroz com frango pode não ser o que você espera. Quando o meu almoço chegou, senti lasers radioativos saírem dos meus olhos para tentar fazer desaparecer o prato mais feio que eu já vi. Era uma espécie de mingau com frango cozido por baixo com gosto de canja, que eu detesto, e o sticky chicken era feito somente com a pele de frango. Olhei para o prato, o prato olhou para mim e nos abandonamos. Passei a tarde com fome.
Teve uma vez que eu tomei água para limpeza achando que era natural. Comprar água na Alemanha nem sempre é uma tarefa fácil. O país tem provavelmente sommeliers de água para decifrar seus 500 tipos de água disponíveis. Água mineral, ou Mineralwasser, significa quase sempre que vai ter gás que é, inclusive a bebida favorita do povo alemão (ah, você pensou que era cerveja, né?).
No supermercado encontramos a Mineralwasser Classic (com mais gás), Medium (com menos gás) ou Still, a stilles Wasser, que é sem gás. Até aí está fácil, mas saiu da gondôla do supermercado, a coisa pode complicar, porque você se depara com outros rótulos escritos como Sprudel, que é com gás, ou Naturelle. Para sofrer menos, eu aprendi a gostar de água com gás, já que a regra garrafa vermelha é sem gás e azul com gás também não rola.
Quem acha o Brasil um país burocrático, é porque não conhece a burocracia alemã. Para praticamente tudo o que você precisar, vão te dar um formulário muito extenso para preencher, geralmente à mão, que deverá ser enviado posteriormente pelo correio ou entregá-lo pessoalmente. Os alemães não confiam muito na internet. Em casa temos reservada uma cartela grande de selos e um pacote de envelopes para atender as demandas que sempre aparecem. Impressora é algo também muito útil de se ter em casa. E, claro, preencher qualquer formulário geralmente requer um conhecimento avançado de alemão.
Para tomar uma dose da vacina contra a COVID eu precisei imprimir e preencher um formulário de muitas páginas com muitas perguntas. Eu gastei cerca de 1 hora entre a tradução e o preenchimento. Quase chorei quando na segunda dose eu tive que preencher tudo novamente e precisei traduzir porque não me lembrava de quase nada.
As minhas aulas de yoga e pilates são todas em alemão. Na última de pilates que fiz, a professora chamou a minha atenção várias vezes, mas nas posições sempre difíceis em que eu me encontrava, eu não consegui ter certeza se era comigo com quem ela falava. Quando a aula terminou, eu fui elogiar sua aula e avisá-la que não falo alemão. Ela deu uma risada alta e disse que achou que eu era surda de tantas vezes que eu ignorei suas chamadas mesmo olhando para ela.
O alemão é um idioma que a gente acha que nunca poderá dominá-lo. Admiro cada estrangeiro que conheço que fala bem a língua. Coincidentemente algumas das minhas melhores amigas em Berlim falam alemão impecavelmente, o que me deixa ainda mais envergonhada com minha ignorância e a falta de talento com idiomas. É muito comum morar anos em Berlim e falar um mínimo de alemão para se virar, um mínimo o qual eu ainda não alcancei.
Eu achei a minha vida muito difícil nos últimos dois anos, então preferi usar o meu tempo livre para aprender a me comunicar com as plantas ao invés dos humanos. Usando a Lei Parkinson como uma boa desculpa, eu decidi que mergulharei no alemão após o próximo verão me mantendo analfabeta ainda por alguns meses.
Lei de Parkinson: Uma boa desculpa para nossa procrastinação
A Luiza Voll fez um post sobre a Lei de Parkinson, que explica porque desperdiçamos nosso tempo procrastinando. Eu não conhecia tal lei e achei a explicação tão interessante quanto pertinente para justificar porque nunca sobra tempo para fazermos as coisas que queremos. Claro que tem um livro sobre o assunto escrito pelo criador da teoria, Cyril Northcote Parkinson.
A lei parte do princípio de que “o trabalho se expande de modo a preencher o tempo disponível para a sua realização”. Eu tenho o dom da procrastinação, então fui pesquisar mais. Parkinson começa o livro com um exemplo simples para explicar como funcionamos: “uma senhora idosa escrevendo um cartão para a sobrinha. Como ela não tem mais nada para fazer, a tarefa que poderia ser simples ocupa seu dia todo.” Ou seja, se temos 4 horas para fazer algo que fazemos em 1 hora, provavelmente gastaremos as 4. Tá tudo explicado.
Patti, minha amiga genial
Desde que a Patti Smith lançou sua newsletter, eu tenho me sentido bem próxima dela. Adoro ler suas ideias, ver suas fotos, ouvir sua voz, seja cantando ou contando histórias. É como se toda semana ela abrisse a sala de sua casa para me receber. O The Guardian publicou uma ótima entrevista com ela com perguntas feitas pelos leitores. Ela fala sobre o Bruce Springsteen, Mapplethorpe, Bob Dylan e tantos outros grandes personagens que cruzaram sua vida. Vale a leitura para saber algumas curiosidades a mais sobre a Patti.
Para puro “Deee-lite”
Fui catapultada por esse projeto editorial e visual que conta a história de superação de Alenka Artnik, a primeira mulher a fazer o mergulho livre mais profundo da história.
Não sei como fui parar no site, mas não paro de clicar para ler os textos e ouvir “the sound of love”, que conta com belo repertório muito bom de indie rock.
Se você ainda não ouviu o episódio do Mano a Mano com o Emicida, separa 3 horas e ouça, porque vale a pena demais. E presta atenção nos detalhes para ver como Brown conhece bem e respeita demais sua audiência.
A Anitta estreou no Coachella nesta sexta-feira no palco principal, ora preenchido ora por uma favela carioca, ora por paredões de som, levando o público ao delírio. E aqui dá para ver uma palhinha do show da Pabblo Vittar. Lindo demais ver duas artistas brasileiras levando uma multidão para os seus shows no horário nobre de um festival do porte do Coachella.
Muriel Barbery virou celebridade após seu livro “A elegância do ouriço” (que, aliás, recomendo muito a leitura para quem ainda não leu) virar um best seller e filme. Foram 6 milhões de cópias vendidas em 40 idiomas. Com o sucesso inesperado, Barbery tirou um sabático de 2 anos em Kyoto e o resultado foi seu novo livro “Uma rosa só”. É uma narrativa poética e existencisalista, com provérbios japoneses intercalando cada capítulo, que nos leva por uma inóspita viagem por Kyoto no início da primavera. Uma história de amor e sobre segundas chances. Se está em busca de um soprinho de esperança por aí, manda bala na leitura.
Estou na metade e devorando o suspense “Meu nome era Eileen” (2015), livro anterior ao odiável e maravilhoso “Meu ano de descanso e de relaxamento” (2018), de Otessa Moshfegh. A perturbada Eileen é uma personagem muito bem construída (ou desconstruída, depende do ponto de vista). Estou um pouco da metade do livro numa ansiedade de que algo muito sinistro vai acontecer, mas ainda não aconteceu nada. É, pelo jeito Moshfegh não escreve nada muito fácil de digerir.
Fecho esta parte com o trabalho da artista Mariia Loniuk mostra a guerra na Ucrânia através da sua arte digital.
No fone de ouvidos
Para animar a pistinha em casa, cola na “Rumba Congolosa”, playlista do Kalaf Epalanga. Mas se a mood está para uma pista mais pesada, dá play nesse Boiler Room com a Shanti Celeste, e aproveita para doar dinheiros para a Ucrânia. Se o mood estiver mais soturno, a gente tem sempre o Curses, que lançou há pouco tempo o álbum “Incarnadine”.
O último episódio do podcast Mixtape no BBC Sounds, da Blessed Madonna, foi gravado em São Paulo com a minha amada Claudia Assef, que abriu o case e mostrou um cadinho da nossa música brasileira. É puro brilho e suíngue.
Depois de ler “Uma rosa só”, eu caí de cabeça nesta lista de artistas experimentais de Kyoto, cidade onde eu vi um show experimental muito lindo num lugar chamado Urbanguild. Anota essa dica se Kyoto estiver na sua lista de próximo destino.
Caso você esteja em Berlim, essa é a última chamada para dançar comigo no próximo sábado na turnê de “Too”, do HVOB. “Too” é o álbum mais duro, intenso e suave ao mesmo tempo já lançado pela banda (que eu amo).
Fechando esta sessão, deixo um mix da Wendy Carlos, “The Imaginary Numbers”.
Aguardando leitura (ou o play)
A primeira entrevista de Adam Neumann desde que ele deixou o WeWork.
O dia em que encontrei dois presidentes, um texto de Pedro Neschling sobre o dia em que teve um encontro com o Lula e com a Dilma.
Memes e colagem x direitos autorais. Spoiler: o artista por trás da colagem ganhou o caso processual contra ele.
Mary Gartside, a mulher que redefiniu as cores antes mesmo de Goethe lançar a teoria das cores de Goethe, mas era mulher, né?
O metaverso mais fofo vem aí: Lego & Epic Games.
A Dois Pontos fez uma lista de livros para entender a guerra da Rússia e Ucrânia, todos eles escritos por autores russos e ucranianos.
Essa newsletter está sendo cozinhada há umas duas semanas, mas fui postergando porque entrei num redemoinho de projetos que me engoliram. Enquanto ela foi sendo escrita, eu me senti uma globetrotter: há trechos escritos em Berlim, em Ljungskile (Suécia) e está sendo fechada aqui em Trysil (Noruega). Uma newsletter viajada, chic e incompleta, mas saiu.
Despeço-me com uma foto minha tirada hoje, neste domingão de Páscoa, vestida de forma tão colorida como não me vejo há tempos (essa foto poderá ser usada contra mim). O sorriso animado existiu antes de eu cair sete vezes nas descidas fazendo cross country. Se eu desaparecer é porque a temporada tardia de esqui não foi bem sucedida.
Espero voltar em breve ou te vejo do outro lado. :)
*O header (não tão novo e visto só no e-mail) foi criado pelo Alexandre Bobeda há quase um ano e só agora rolou usá-lo por aqui.
Desconfio que o arroz que vc pediu era o congee que os chineses amam e chama 粥 🥣. Pra piorar, falar “comer zhou” e “beber álcool” é quase a mesma coisa (considerando nossa dificuldade cognitiva para diferenciar tons). Hoje eu riu, mas já chorei muito. E passei meses bebendo o mesmo café (americano, que eu odiava) porque não conseguia pedir coado. Quando aprendi me perguntaram se eu queria quente ou frio e eu queria só falar: só quero café, vc já entendeu que é isso, só me dá meu café! 🤯
Por fim, a procrastinação (vou deixar pra outro dia)
Eu não poderia me identificar mais com este texto. Comprar pão era um problema na China. Eu ia sempre de bicicleta até o local pra apontar o que eu queria e não ter que usar nada de chinês. Um dia eu precisava de pão e estava me contorcendo de cólica, então usei o app em inglês e pedi feliz e contente. Mas eu morava numa espécie de labirinto e o entregador (que não falava inglês) não achava minha casa. Entre ligações da loja com tradução e muita confusão, passadas quase duas horas o pão chegou. Eu não conseguia nem usar o pagamento eletrônico (em chinês) pra dar uma boa gorjeta pro entregador. Na China o pagamento em papel caiu em desuso.
Eu também aprendi a decifrar os caracteres pra pedir comida (os cardápios sempre estavam no QR Code). 菜 era vegetal, 肉 carne e 豆腐 tofu. Eu evitava qualquer coisa parecida com 肠 porque indicava algum miúdo, mas uma vez pedi uma coisa que achei que fosse salada de rabanete e veio nabo