Espiral #41: A guerra está na esquina de casa
Byung-Chul Han ou Hannah Arendt?, blockchain e a guerra, Severance, leituras de 2022 e outras "cositas más"
Trilha sonora para esta newsletter: “Life is a film”, uma mixtape com curadoria da Hania Hani.
8 de março 2022
“Qual foi o “destino” dessa família?”
Demorei para responder. Fiquei olhando para a tela do celular até a minha visão esvaziar. As lágrimas lotaram meus olhos. “Eu não sei.”, respondi para então chorar todo aquele rio que seguia dentro de mim.
O Dia Internacional das Mulheres é feriado em Berlim. Acordei às 7h15, tomei um banho, fiz café da manhã e às 8h30 eu estava no tram rumo à Estação Central. Céu limpo azul e sol alto anunciando a chegada da primavera. No termômetro -1 grau.
A estação ainda estava calma com poucos passageiros, mas a chegada de pessoas trajando colete amarelo limão denunciava que o dia seria puxado. Vesti o meu enquanto ouvia as instruções de como receber os refugiados ucranianos que chegam em Berlim. As notícias não eram boas. Berlim já está com a ‘casa’ lotada. Não há espaço no momento para dar abrigo às milhares de pessoas previstas para chegarem nesta terça-feira ensolarada.
A organização do espaço estava diferente da que vi no sábado anterior quando passei pela estação para deixar doações. Disponibilizaram uma grande área extra para colocar a doação de roupas, comida e bebida, brinquedos, ração para animais, produtos de higiene, ambulatório médico, área para distribuição de SIM card e uma bancada para auxiliar na busca por hospedagem para ficar na cidade.
O primeiro trem do dia vinha de Varsóvia e estava 1h atrasado. Ao longo da plataforma, uma fileira de coletes amarelos limão e outros laranjas, diferenciando quem fala ucraniano e/ou russo de quem fala inglês, se formava no infinito.
Veio um trem muito velho, daqueles que já são desconfortáveis quando estão vazios, mas nele, mil pessoas chegavam acotoveladas à Berlim. O trem passando por mim em câmera lenta foi uma cena que nunca vou esquecer. Os rostos assustados colados nas janelas, a maioria de mulheres e crianças. Eu nunca tinha visto nada igual a não ser em filmes.
Eu e meus amigos nos distribuímos em duplas. Quando a porta se abriu, eu me deparei com uma cena tão marcante quanto a primeira. Uma senhora muito idosa se equilibrava em pé na escada na tentativa de sair do trem. Atrás dela, sua cadeira de rodas. Ela não conseguia se mexer e ali eu só tinha meu amigo para ajudar. Pegamos-a no colo e com muita dificuldade, descemos ela para a plataforma. Enquanto meu amigo descia a cadeira, metade de seu corpo pesado ficou apoiado nos meus braços e a outra metade no chão. Ela estava assustada e falava bastante. Colocamos ela de volta na cadeira enquanto eu devolvia sua bolsa e a ajudava a se acomodar. Inesperadamente ela riu. Nessa hora foi possível ver um sinal de alívio ou esperança na imensidão de seus olhos azuis. Rimos juntas e eu a abracei. A máscara, no fim das contas, virou um disfarce para abrigar toda a comoção que vai nos abatendo em ritmo acelerado.
Eu vivi muitas histórias diferentes nas horas em que trabalhei. Praticamente todas as famílias que auxiliei não falavam inglês. O jeito foi conversar pelo Google Translator e por gestos. No final, estávamos sempre rindo como velhas amigas e às vezes nos abraçando. O choro eu escondi no bolso do casaco pesado que eu vestia.
Não falar a língua da pessoa causa uma frustração, pois impede proporcionar o afago tão necessário nesse momento. Uma senhora muito chique, mas sem nenhuma mala, me contou, com palavras soltas em inglês e gestos, que vinha de Kiev e estava viajando há três dias sem dormir. Viu sua casa explodindo ao partir. Queria ir para Friburg. Comeria só depois que tivesse o ticket do trem nas mãos.
A comunicação é escassa, mas a gente se vira. A última família que auxiliei estava sentada no meio da estação com duas crianças de uns três anos. Uma delas chorava muito. Fui falar com elas, mas elas estavam muito assustadas e não conseguiam se comunicar nem mesmo por sinais. Eram 4 mulheres, uma delas idosa que só fazia sinal para eu ficar com elas. Tentei achar alguém que falasse ucraniano ou russo para entender o que elas precisavam, mas o horário estava concorrido. Logo surgiu uma quinta mulher muito jovem no grupo. Correu para pegar o menino que chorava, abraçou-o e chorou junto com ele. Eu segurei firme para não chorar também. Ela, que falava inglês, se recompôs e disse que a família queria ficar em Berlim, pois estava esperando mais uma pessoa. Precisavam de lugar para ficarem até o dia 10, ou seja, duas noites. Junto com uma amiga, eu as levei para comer, a mostrar onde pegar um SIM Card e a tentar encontrar um lugar para se hospedarem. As crianças devoraram o pain au chocolat que peguei para elas. A garotinha Nastia já sorria para mim e pegava na minha mão enquanto eu me despedia delas deixando-as à sorte do dia.
Assisti uma leitura do Byung-Chul Han, o cara mais pop da filosofia da atualidade, na última edição do festival Transmediale. Ele leu por duas horas um tratado em alemão sobre o ócio e a “vita contemplativa”, temas de seu próximo livro. Para Han, a vida perdeu o seu esplendor porque não sabemos mais contemplar e nem lidar com o ócio.
Ele mergulhou nos sonhos de Marcel Proust, na profilaxia do silêncio de Nietzsche, no tédio profundo como descanso para a alma de Walter Benjamin, na exaustão de Gilles Deleuze - “o esgotado é muito mais do que o cansado, olhe para nós”, que se conecta com a espera por Godot, de Samuel Beckett, para embasar o seu pensamento sobre a importância da contemplação e do ócio nas nossas vidas. Só homem (branco) na extensa lista de referências.
Discorreu também sobre termos perdido a habilidade de escutar. A prova viva de que ele está certo foi eu bocejando por trás da máscara enquanto ele falava.
Por fim, Han atacou longamente a filósofa alemã Hannah Arendt, que defendia a ideia de que nascemos para a ação, a “vita activa”, enquanto para Han, nascemos para a “vita contemplativa”. Para ele, Arendt estava equivocada. O ataque incomodou muita gente na plateia. Mas para quem escreveu “A Sociedade do Cansaço”, não há surpresa em suas críticas (e nem muitas novidades para quem acompanha suas ideias).
Coincidentemente eu estava terminando de ler “Arendt - Entre o amor e o mal: uma biografia”, de Ann Heberlein. A vida de Arendt foi ativa do início ao fim, tanto como pensadora, quanto pela sua vida social agitada e por ser judia alemã em plena Segunda Guerra. Ao fim da biografia, um texto extra fala sobre como a sua obra “A origem do totalitarismo” ganhou os holofotes nos últimos anos devido a ascensão do conservadorismo e da autocracia pelo mundo. O texto começa com papo reto: “Leia e aja”.
Nada me soa tão atual no momento de guerra em que estamos. Mergulhando nas ideias dos dois pensadores, eu concluo que ter uma vida contemplativa e/ou se sentir entediado são para pessoas privilegiadas, além de ser também uma visão muito masculina. Afinal, quando nós mulheres tivemos espaço para ficar na contemplação e não agir? Nós estamos em ação o tempo todo. Ontem, a maioria das pessoas voluntárias eram mulheres. Nas ruas de Berlim, muitas mulheres deixaram de lado o feriado, o dia ensolarado e a temperatura gostosa que chegou aos 12 graus, para protestarem nas ruas pelos nossos direitos.
Estamos todos tentando sobreviver, uns mais que os outros. Estamos exaustos por uma pandemia que não acaba, com as fake news, com governos ditatoriais e com o mundo desabando à nossa volta, seja por guerras ou por catástrofes naturais.
Eu estive em Kiev em outubro. A viagem foi muito especial e um respiro na época. Foram dias vividos com sensação de normalidade. Me diverti em festas, comi muito bem, fiz passeios lindos e conheci muita gente nova. A capital ucraniana me deixou arrebatada com sua beleza e hospitalidade. Voltei para casa com planos de ir para lá tão logo o verão chegasse. Mas ele não vai chegar. A senhora ucraniana chique, que me contou sobre a explosão de sua casa, sorriu quando contei que gostei muito de sua cidade. Seus olhos brilharam e viajaram para outro lugar. Quando ela voltou, só conseguiu balbuciar já com os olhos marejados “Kiev is beautiful”.
A guerra está praticamente na esquina de casa. A forma como eu e a maioria dos meus vizinhos sentem esta guerra é que ela é nossa também. Eu nunca vou me esquecer das cenas que vi ontem. Saí da estação após umas 6 horas por lá para colocar a cara no sol e aproveitar o privilégio que carrego comigo. É um baque sair para a rua e ver a vida acontecendo normalmente. Seguir o dia não foi fácil, mas tentei entender o que eu estava sentindo e se tenho condições psicológicas de voltar à estação nos próximos dias.
Já à noite em casa, tomei um banho demorado enquanto lidava com um nó que não parava de aumentar dentro de mim. Logo recebi mensagem de uma amiga, a que me ajudou a navegar como voluntária, perguntando como tinha sido o meu primeiro dia. Contei as histórias vividas até chegar na última grande família de mulheres. Não saber responder qual foi o destino delas me fez sentir que eu não fiz o suficiente e que eu deveria ter ficado ao lado delas até conseguir um lugar para irem. Mas hoje entendo que qualquer coisa que eu faça não vai ser suficiente, mas vou continuar fazendo o que me for possível. Eu escolhi agir como posso. Viva Arendt!
Como ajudar a Ucrânia
Muitos amigos têm me perguntado como ajudar a Ucrânia e tem várias formas. Eu tenho destinado as minhas doações para grupos LGBT e Bipoc. O club ∄, que visitei quando fui à Kiev, está fazendo um trabalho bem intenso para ajudar essas comunidades e recebendo doações.
O Resident Advisor tem atualizado constantemente este guia sobre como ajudar os refugiados da Ucrânia. E a Crack Magazine também publicou uma extensa lista.
Muitas pessoas estão ajudando diretamente os cidadãos ucranianos alugando suas casas via Airbnb (provavelmente algumas delas nem existem mais).
O que andei lendo por aí sobre a Ucrânia
Balenciaga e seu belo desfile protesto pró-Ucrânia (e o porquê).
Os refugiados ucranianos estão recebendo visto de três anos com direito a trabalhar em países da União Europeia, o que é novidade.
Nadya Tolokonnikova, líder da banda russa ativista Pussy Riot, criou a Ukraine DAO para arrecadar fundos para a Ucrânia. Arrecadou cerca de sete milhões de dólares em 5 dias. O The Guardian fez uma ótima entrevista com ela, onde descobri que durante a época em que ficou presa por protestar contra a Rússia, Nadya trocou correspondências com o filósofo Slavoj Žižek, que se transformaram num livro. Ah, não sabe o que é DAO? Cola aqui.
Estão rolando muitas iniciativas na blockchain, incluindo NFTs, para arrecadar fundos para a Ucrânia. No dia 1 de março já tinham sido arrecadados 22 milhões de dólares só em vendas de NFTs (incluindo a DAO citada acima). O governo ucraniano também tem recebido doações em criptomoedas e recebeu cerca de 50 milhões de dólares até o último dia 6.
O site de turismo da Ucrânia está fazendo uma cobertura em inglês bem intensa sobre a guerra. Caso queira acompanhar, recomendo assinar a newsletter do site.
Há várias discussões rolando sobre se a comoção em torno da guerra entre a Rússia e a Ucrânia se dá porque os ucranianos são brancos (e ocidentais). Tem tido muitos comentários xenofóbicos na cobertura da guerra pela imprensa internacional. Eu chamo atenção para essa análise feita pelo João Pereira Coutinho, na Folha em que escreve “Mas é um fato, talvez injusto, que a natureza humana é o que é. Pobre e limitada com realidades distantes.”, nos deixando uma boa reflexão para fazer.
Uma lista com músicas de artistas ucranianos, lançados no último ano, para ouvir (e comprar).
E outras rapidinhas
A minha nova série distópica do momento é Severance, na Apple TV, um mix de The Office com Black Mirror. O elenco é primoroso contando com Adam Scott e Patricia Arquette e produção executiva de Ben Stiller, que dirigiu os três primeiros capítulos. Estreou hoje o “Diários de Andy Warhol”, na Netflix, que quero assistir.
Shibuya, uma mistura de Kickstarter com Netflix, é uma nova plataforma de vídeo desenvolvida na Web3 utilizando o Ethereum em que a comunidade vota nos filmes que serão financiados.
Minha amiga Mariana escreveu um ótimo texto sobre empatia partindo da maternidade. Ela abre com uma frase da filha pequena: “Você não entende porque nunca aconteceu com você”. Essa frase fez ainda muito mais sentido para mim nesta terça-feira.
Consegui ler 10 livros entre janeiro e fevereiro. Gostei bastante de todos, mas destaco o mais novo livro da mais recente escritora-brasileira-sensação Carla Madeira, o “Véspera”, que me tirou o fôlego com sua história. O segundo foi “Nikteche: Uma História de Poligamia”, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, que também me envolveu do começo ao fim com uma história que se passa em meio à cultura muito diferente da nossa sobre sororidade. E, por fim, o aclamado “O lugar”, de Annie Ernaux. Nos últimos dias tenho andado acompanhada pela ótima biografia da Lina Bo Bardi escrita pelo Francesco Perrotta-Bosch e, claro, recomendo bastante a leitura da biografia da Hannah Arendt que citei lá em cima.
Para quem prefere festa virtual, a MixMag listou os 9 melhores clubs em video games.
Relatório saindo do forno para repensar o conceito de gerações.
O crítico de jazz Ted Gioia escreveu recentemente uma ótima crítica sobre a Amy Winehouse, que era apenas uma cantora pop para muitos fãs do jazz. Sendo fã ou não de Amy, vale a leitura (e ouvir todos as músicas que ele vai citando ao longo do texto).
“Temos que encarar que o mundo mudou”, Thiago Pethit num papo muito franco e bom no Pauliceia (você já assina?).
Para fechar, eu deixo um set do DJ ucraniano Serge Jazzmate, que me proporcionou a melhor pista de festa desde que começou a pandemia quando estive em Kiev.
Uma observação final: eu sei que no Brasil vivemos guerras silenciosas, violência diária que mata pessoas de diversas minorias, sofremos nas mãos de um governo hostil e temos também sofrido bastante com catástrofes naturais. Daqui do outro lado do Atlântico, eu me solidarizo e tento ajudar como consigo. Não estou alheia ao que acontece por aí.
Esta newsletter tem sido bastante irregular, mas o objetivo é enviá-la quinzenalmente. Dicas, comentários e críticas são sempre bem-vindas. Pode ser no comentário ou no meu email. Se você chegou por aqui há pouco, não deixe de se apresentar para mim. Vou adorar saber quem você é. Por fim, se gostar da Espiral, não deixe de recomendá-la para os amigos.
Grato pelo teu testemunho Lalai, me emocionei contigo daqui. Obrigado também por todos os links, referências e formas de ajudar. Já fico aqui na expectativa da próxima news.
Lindo relato, Lalai. Não consigo alcançar o sentimento de ter que largar sua casa de uma hora para outra. Que essas mulheres tenham uma melhor sorte, a altura da sua sensibilidade.