Amiga Genial #2: Priscila Gama
Dia da Consciência Negra, Flip, Malalai, Quarto de Despejo, Alice Coltrane, Marina Silva, Lélia Gonzalez, Bernardine Evaristo
Deixo duas trilhas sonoras para abrir a newsletter: Mundo Novo, da Mahmundi; e Vagabon.
A Priscila Gama é uma das pessoas mais fascinantes, inteligentes, debochadas e divertidas que conheci este ano. Uma grata surpresa que aterrissou na minha vida através de um grupo de WhatsApp. Ajudei-a num job e desde então não tirei mais os olhos dela. Com ela, eu tenho aprendido bastante.
Quando a ouço falar, sempre pego o caderninho para anotar as reflexões que ela me provoca. Pode ser após assistir a sua palestra sobre racismo no TED, o vídeo que fez para falar sobre nossa presença no presente para assim organizarmos nosso futuro ou ouvir o podcast em que falou sobre empreendedorismo.
Uma coisa é certa: a sua presença é magnética. Por onde passa, deixa sempre bastante coisa pra digerir. Então, se você é branca privilegiada como eu, pode ser ser chamada na xinxa porque ela chama mesmo, mas dá a mão se precisar.
A dona da coisa toda
A Pri é do Espírito Santo, onde é considerada uma das pessoas mais influentes do estado, é mãe de dois meninos, ativista, empreendedora social e ama hip-hop. Está à frente do Instituto das Pretas, do Festival Bekoo das Pretas e do Taja Preta Hip Hop Festival. Rumo aos 40 anos, ela tem um currículo bonito de ver: É Consultora Jurídica especialista em Direito Público e Direitos Humanos, está terminando um mestrado em Sociologia Política, é Pesquisadora (e fazedora) da Economia Criativa Afrocentrada e Periférica, além de coordenar vários projetos de Ação Afirmativa.
É a amiga genial que a gente aplaude em pé. Está também continuamente envolvida em projetos de impacto social em Estratégias Culturais de Inclusão e Equidades. Bati dois papos ótimos com ela para escrever essa newsletter. Na primeira, ela estava no aeroporto rumo a São Paulo para apresentar um aplicativo que vai lançar em breve para investidores. Na segunda vez, estava no escritório Das Pretas.
Ela não para porque pessoas como ela não conseguem (e não podem) parar. O mundo precisa delas e é melhor com elas.
Das Pretas
Um de seus principais negócios, o Das Pretas, é uma startup associativa sem fins lucrativos, atualmente com três projetos sociais incubados. Para a Priscila, é uma startup que tem um processo contínuo de aprendizado, pois ninguém ensina pessoas pretas a ganharem dinheiro e muito menos a lidar com grandes corporações. Estar “à frente da Das Pretas é como cavalgar num cavalo do futuro.” Como ela mesma disse, ela é presidente de um unicórnio do futuro mostrando que é possível fazer muita coisa (e diferença) sem muito dinheiro. Já são 10 anos de história, sendo 5 rolando formalmente, contando atualmente com 20 pessoas das mais variadas áreas de atuação trabalhando diretamente com ela, além de diversos colaboradores que se plugam por projeto.
Ela afirma que a arte, a cultura e o esporte são o que tiram as pessoas periféricas da margem de vulnerabilidade. Porque a educação não chega na periferia. Por lá, chegam apenas o esporte e a cultura, tanto que é o hip-hop que traça a história da Das Pretas, que também tem a Educação como um de seus pilares com projetos destinado para pessoas de todas as idades, de crianças aos idosos.
Sobre abundância
Para a Priscila, a abundância não é ter muito, mas sim o suficiente para que o outro tenha o suficiente também. É menos sobre acúmulo e mais sobre compartilhamento. É sobre o que você faz com seu dinheiro que, no seu caso dela, ela guarda parte e investe o restante em negócios pretos. Como ela diz, “a abundância não é parar no mesmo espaço, no mesmo corpo, na própria casa. É invadir, transformar e criar novas perspectivas para que outras pessoas também possam ter o que querem e/ou precisam.”
Síndrome de Impostora e o dinheiro
Não resisti em perguntar pra Priscila se em algum momento ela sofre da Síndrome de Impostora, que atinge muito mais mulheres negras do que brancas, mas parece passar longe dela. Apesar de ser uma Mulher-Maravilha, ela contou que tem seus momentos de descrença e aí se vê precisando negociar com si mesma. Mas apesar disso, ela nunca deixou de fazer algo por conta desses momentos em que a Síndrome de Impostora bate em sua porta. Ela dribla e segue adiante.
A Síndrome de Impostora também nos prejudica na hora de precificar um trabalho, pois se não confiamos no nosso trabalho, cobramos menos por ele. Numa palestra sobre empreendedorismo feminino, a Priscila disse que “apesar da ancestralidade da prática empreendedora vinculada ao povo negro, mulheres negras, em geral, não sabem falar de dinheiro, por viverem na escassez de recursos e à margem da sociedade. Mas essa realidade vem se transformando e passamos a ter mais acesso a dados, a tecnologias e sermos precursoras de inovações.”
Entendi melhor esse “mais acesso” quando ela me contou que hackeou o sistema para saber quanto cobrar pelo seu trabalho. Ela foi pedindo pra ver modelo de planilha de projetos e perguntando como e quanto nós profissionais brancas cobramos. Deu-se conta de que cobrava muito menos do que deveria. Mudou a estratégia, acabou não fechando alguns projetos por algum tempo, mas manteve-se firme até começar a virar o jogo e a ter seu trabalho reconhecido.
É só para aparecer ou é de verdade?
A palestra que ela deu no Festival Latinidades é uma verdadeira aula. Eu recomendo assistir, pois ali aprendi um monte, inclusive separei essa fala dela que eu achei bem pertinente ao momento: “As pessoas têm falado sobre diversidade para potencializar seus negócios, mas eu faço parte dessa diversidade e não sou chamada para falar ou operar sobre o assunto junto ao governo ou empresas? Isso porque a diversidade tem sido usada para fins lucrativos para trabalhar exponencialmente o lucro. Aí estamos falando sobre a manutenção do poder, ou seja, a manutenção da desigualdade. É feito de forma muita rasa essa publicidade diversa que não nos integra de fato. Ela só aumenta a população consumidora. Não tem promovido a inclusão e a equidade. Continuamos fora do jogo. A apropriação cultural continua sendo feita.”
A minha amiga genial Priscila é a pessoa para ouvirmos sempre o que ela tem pra falar. Em cada uma de suas falas eu aprendo coisas novas e expando meu horizonte. Sua próxima investida é o Encontro das Pretas, que rolará online, de 20 a 29 de novembro. Cola lá e nela também.
Para se inspirar com outras mulheres geniais
Lélia Gonzalez em imagem sem data - Acervo Pessoal (El País)
Playlist para esse bloco: DJ set bem housero da Due, uma das minhas DJs favoritas de São Paulo
Lélia Gonzalez era um nome desconhecido para mim, mas essa matéria sobre ela no El País acerca do lançamento de uma coletânea com seus livros me deixou completamente fascinada. Mineira, nascida em 1935, viveu apenas 59 anos, Lélia “foi uma das grandes pioneiras nas discussões sobre relação entre gênero e raça, ao propor uma visão afro-latino-americana do feminismo.” Ela chegou a entrar para a política, mas não foi o campo em que se saiu muito melhor, trabalhando ao lado da Benedita da Silva. Teve encontros com a Angela Davis, que chegou a questionar em sua passagem no Brasil em 2019: “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo.” O texto termina com uma frase sua falada num discurso feito em 20 de novembro de 1983, Dia da Consciência Negra, nas ruas do Rio: “Vamos à luta, companheiros, para que a exploração e a opressão terminem nesse país. Para ser uma democracia racial, esse país precisa ser efetivamente uma democracia”. Mais atual do que nunca.
Quando fui procurar o TED que a Priscila Gama fez, eu descobri sua xará de nome e sobrenome, a outra Priscila Gama, arquiteta, mineira e também com uma trajetória notável. Na palestra “Incomodada é o meu estado permanente”, a Priscila narra sua história desde sua infância em Minas Gerais até chegar ao seu projeto Malalai, um aplicativo que ajuda a proteger as mulheres para que elas possam andar pelos centros urbanos com maior segurança.
Em 2018 e 2019 eu assisti as palestras da Bozoma Saint John no SXSW. Nas duas, ela falou muito sobre humanização. Para ela, as marcas são como pessoas: têm personalidade, acertam e erram. Ela já passou pela Apple, Uber, Endeavor e assumiu recentemente o marketing global da Netflix. Este ano entrou pra lista das 100 pessoas afro-americanas mais influentes dos Estados Unidos e foi eleita a pessoa mais fashion do Vale do Silício pela Vogue. O seu lema atual? A vulnerabilidade te faz autêntica. A Gama deu uma stalkeada nela, mas deixou de fora uma de suas histórias mais geniais.
Eu tenho minhas questões com a Marina Silva, mas a entrevista que a Milly Lacombe fez com ela me apresentou uma Marina muito diferente da que eu tinha na minha cabeça. Gostei bastante da conversa em especial porque ela não fugiu de perguntas como sobre o aborto e a religião. Achei-a bem coerente nas respostas e me trouxe a possibilidade de dar meu voto à ela caso ela se candidate para a presidência em 2022.
Esse texto “Isolamento é um fantasma contínuo: a escrita colaborativa versus a repressão acadêmica e o confinamento emocional na vida de estudantes negras”, de Antônia Gabriela Araújo, me comoveu bastante. Ela é doutoranda em Austin, onde se viu isolada com mais duas outras estudantes negras brasileiras durante o lockdown. Ela conta como é ser imigrante negra nos Estados Unidos num estado conservador com o Texas neste momento em que o racismo, que antes era camuflado, se tornou explícito: “Com algumas lembranças dos escritos de Toni Morrison na sua obra “The bluest Eye” (1970) a sensação que fica é que o confinamento social tem um verso e um reverso; para que algumas pessoas possam voltar a viver “being outdoors”, isto é, sendo livres, num estado de viver ao ar livre outras precisam ser “being put outdoors”, isto é, são colocadas, expulsas e empurradas para fora, precisam ser postas para fora, seja de casa, do território estado e da condição de humano.”
Conversas sobre Síndrome da Impostora têm rolado regularmente, inclusive eu mesma fiz uma newsletter dedicada ao assunto. Mas a discussão é antiga. A youtuber Gabi Oliveira fez um vídeo em 2017 a respeito com foco nas mulheres negras e junto compartilhou uma lista ótima de referências sobre o tema, que continua bem atual. Em 2015 a Alexandra Loras fez uma palestra no TEDxSP também trazendo esse assunto à tona, mas focando na importância de ajudar a melhorar a auto-estima das crianças afro-descendentes.
Neste sábado rolará uma edição especial no TEDxSãoPaulo, o “Ideias Negras Importam”, que conta com a participação da cientista da computação Nina da Hora, a humorista Thamyris Borsan, a chef Lili Almeida, entre outras. Para se inscrever é só entrar aqui. Eu não perderia a Nina da Hora, que fala às 16h.
A genial Igi Lola Ayedun publicou a nova edição do MJournal abordando os macro-pilares culturais que influenciarão comportamentos, estética e dinâmicas de interação, sociais e econômicas em 2021.
Literatura
Bernardine Evaristo (NYTimes)
A Flip 2020 anunciou sua edição online que acontecerá entre 3 e 6 de dezembro. Entre os destaques está a abertura com um papo sobre diásporas com a escritora britânica Bernardine Evaristo, mediado pela Stephanie Borges. “Garota, mulher, outras”, de Evaristo, ganhou recentemente edição brasileira da Companhia das Letras e foi a primeira obra escrita por uma mulher negra a ganhar o Booker Prize, o principal prêmio da literatura inglesa. A agenda completa da Flip está aqui.
A Livia Aguiar, minha amiga genial que mora em BH, criou um podcast durante a quarentena para usar a literatura contra a falta de ar que andamos tendo esse ano. Uma de suas leituras que eu destaco aqui é um trecho de “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, que me causou um belo “respiro”.
Comecei a ler “Esse cabelo - a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteira”, da angolana Djaimilia Pereira de Almeida, que além de falar sobre o cabelo crespo, fala também sobre racismo, padrões de beleza e identidade. Ainda estou no início, mas a leitura já me envolveu. A autora esteve na Flip 2017 e a Arte1 fez um vídeo com ela percorrendo a feira, conversando com pessoas, lendo trechos do livro. A Stephanie Borges escreveu uma ótima resenha do livro para quem se interessar em saber mais a respeito.
A ficção científica é um território dominado por homens e pouco amigável para autores negros, mas Octavia E. Buttler quebrou as barreiras nos anos 1970 e hoje é um dos principais nomes do gênero. Sua trilogia “Lilith's Brood”, escrita nos anos 1980, é protagonizada por uma mulher negra que acorda 250 anos após um holocausto nuclear. Ninguém até então tinha colocado na literatura uma mulher negra habitando o futuro. Ela está sendo agora publicada no Brasil pela Editora Morro Branco. O El País traçou um breve perfil dela para quem quiser conhecê-la um pouco mais.
Um pitada de moda, música e dança
Beyoncé por Kennedi Carter para Vogue UK Dez/2020
Kennedi Carter tem apenas 21 anos e é a fotógrafa mais jovem a fotografar uma capa da Vogue britânica. Beyoncé pediu que uma mulher negra fizesse a capa da edição em que estrelaria e escolheu Carter para fotografá-la. De acordo com a descrição em seu site, o trabalho de Carter “explora os aspectos estéticos e sociopolíticos da vida negra, bem como as belezas negligenciadas da experiência negra: pele, textura, trauma, paz, amor e comunidade.”
A série “Overture of Something That Never Ended” com sete episódios, da Gucci, tem dado o que falar essa semana. A série, dirigida pelo Gus Van Sant, faz parte do projeto GucciFest criado para substituir os desfiles da marca. Deixo aqui o episódio dois estrelado pela Arlo Parks.
Sou apaixonadíssima por dança, então escolhi dois vídeos inspiradores de duas bailarinas que encontraram sua voz na dança: um da Ingrid Silva, e o outro com a Marie-Astrid Mence.
Você já ouviu falar sobre a Alice Coltrane? Ela foi esposa de John Coltrane e também era uma excelente compositora, pianista e harpista. Com a morte do marido, ela embarcou numa jornada mais espiritual o que mudou bastante a sua trajetória musical e a levou a abrir um ashram na Califórnia, em 1976. Deixo a sugestão para ouvir seu álbum Journey In Satchidananda e assistir essa raridade, um mini doc dos anos 1970 com ela falando de John Coltrane, da família e da espiritualidade, incluindo a sua relação com a meditação.
Para animar a pistinha de casa nesse fim de semana, eu deixo dois DJ sets bem rebolantes de duas DJs que me encheram de doses de felicidade no último Flow Festival que fui: um da Carista e outro da Ash Lauryn. Para quem quiser explorar música clássica de compositoras negras, eu fiz essa playlist. Já para quem gosta de indie pop e rock, eu fiz uma outra playlist com algumas artistas que gosto. Encontrei também essa extensa playlist bem diversificada em estilos apenas com artistas negras.
Tchau e nos vemos na próxima semana.
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