Espiral #60: Como Berlim tem me ensinado a relaxar
Uma história sobre minha vidinha interiorana em Berlim
Oi! Segura a emoção e clica na linda trilha sonora escolhida para essa newsletter: A.R.O - Especial Gal Costa, na Veneno.
A minha mudança para Berlim me aterrou num lugar muito diferente de onde eu vim, São Paulo, uma cidade tão ansiosa quanto eu. Aliás, me aterrou, porque antes daqui eu era ar.
A ansiedade me persegue desde que eu me entendo por gente. Minhas unhas e as horas gastas no Candy Crush são testemunhas vivas dos meus momentos de angústia! Para facilitar para o meu lado, eu sempre concedo tal característica ao meu signo solar, Gêmeos.
Uma das coisas que eu amo em Berlim é o fato dela ter clima relaxado de cidade de interior, o que tem sido saudável para a minha ansiedade. Vou elencar alguns sinais que denotam a minha vida interiorana:
Esperar o semáforo abrir
Pode não ter nenhum veículo ou bicicleta à vista ou ser tarde da noite e a rua estar vazia, todavia só atravessamos a rua quando o semáforo estiver verde para pedestre. No início eu ficava tão ansiosa, que nos meus primeiros meses da minha vida por aqui eu furava o semáforo vermelho sempre que me sentia segura o suficiente para seguir em frente. E se uma primeira pessoa fura o sistema, outras seguem atrás, contudo raramente alguém quer ser a primeira a fazê-lo.
Nunca ouse furar o semáforo vermelho quando tiver crianças ao redor, porque assim daremos um mau exemplo que poderá vir acompanhado de uma bela bronca “Es ist rot! Hier sind Kinder!”. Bronca em alemão dói mais. Os mais idosos também torcem o nariz e reclamam com quem se comporta mal. Se for pego atravessando no vermelho, será cobrada uma multa de 5 euros.
Eu, hoje em dia, raramente transgrido a regra. Só o faço quando de fato estou atrasada ou com pressa, o que é cada vez mais raro por aqui. Quase não tenho mais pressa e aproveito a espera para observar as pessoas que sempre me parecem interessantes demais.
A escada rolante
Você pode estar na movimentada estação Alexanderplatz ou numa estação bucólica, como Wansee, as pessoas estarão na maioria paradas à direita na escada rolante. É raro alguém ultrapassar pela esquerda. Eu, que sempre saía correndo pela escada, agora fico ali encostada até ela me entregar na plataforma.
As filas
Se tem um lugar que para mim denota sossego é encarar fila para qualquer coisa desnecessária. Aqui tem filas imensas para comprar sorvete, para comer um lámen, para comprar pão, para entrar em shows ou na balada. Durante o lockdown corria solta a piada de que o lugar mais próximo que você poderia chegar de uma festa era ficando numa fila.
A padaria Sofi, no Mitte, ganhou o status de ter a fila mais interessante da cidade durante o período. Mas agora com a vida de volta ao normal, é provável que a maior fila da cidade seja a do Berghain, que é um programa por si só. Tem gente que já ficou 8 horas nela e não se arrependeu.
Jantar antes das 19h
No início eu achava esquisito demais os horários das refeições em Berlim, onde muitas cozinhas de restaurantes fecham às 21h. O horário mais disputado para conseguir uma mesa para jantar é às 19h e o mais fácil, após às 20h30. É bem comum as pessoas jantarem no fim do dia para não correr o risco de ficar sem mesa caso queiram comer fora de casa. Eu já jantei nos mais diversos horários por aqui, incluindo às 17h30. Não era um almoço tardio e sim um jantar cedo. Meus almoços são feitos por volta do meio-dia.
Na minha última ida à São Paulo eu estranhei as pessoas marcando jantar às 21h, mesmo lembrando ressabiada que eu costumava jantar às 22h muito de boas. Mas hoje quando bate 8 horas da noite no relógio, eu já estou virando os olhos mal-humorada caso não tenha jantado.
O comércio fecha aos domingos
Lojas e farmácias funcionam de segunda à sábado até às 19h. No domingo praticamente todos os estabelecimentos comerciais fecham, com exceção de museus, cafés, bares e restaurantes. Por isso, é mandatório aprender a se planejar, porque no domingo não há muito espaço para improviso na cozinha. Certa vez decidi fazer um prato que necessitava de cebola e eu não tinha nenhuma em casa. Fui em vários späti, lojas de conveniência que abrem diariamente até tarde, do bairro e não achei. Acabei negociando a compra da cebola com o dono do restaurante turco ao lado de casa, que me cobrou 1 euro por ela.
Quem tiver uma emergência e precisar comprar algo em supermercado ou farmácia num domingo ou feriado terá que ir até às grandes estações da cidade, como a Central, único lugar onde eles estarão abertos.
Aqui se leva à sério a antiga ordem do Imperador Constantino de domingo ser dia de descanso.
Tem floresta perto de casa
Se eu pedalar por 15 minutos a partir da minha casa, eu chego numa floresta, pedalando mais 15, eu estarei numa fazenda de búfalos. A natureza exacerbada em Berlim a coloca no topo da lista de cidades mais verdes da Europa. Um terço da cidade é ocupado por parques e áreas verdes, além das ruas serem ladeadas por cerca de mais de 750 mil árvores, praticamente todas plantadas no pós-Guerra. Temos até uma plataforma para as pessoas ajudarem a cuidar das árvores da cidade.
Atrás da minha casa tem uma alameda de cerejeiras que é toda de terra. Não é um parque, é uma rua de terra no meio da cidade, que se estende na lateral de uma linha de trem. Ao final dela um pequeno morro nos leva para uma nova estradinha, também de terra, que segue até o bairro ao lado. É tão bucólico que certa vez eu vi um cara com uma cadeira de praia tomando sol por lá.
Quando penso na crise de moradia que está acontecendo em Berlim e assistindo prédios novos subindo por todos os lados, eu me pego refletindo se esse lugar tão inóspito, onde outrora passava o muro, irá resistir vazio por muito tempo.
Kleingärten, as colônias de verão
A Alemanha tem uma cultura datada do fim do século 19 de colônias de verão dentro das cidades. Em Berlim elas ocupam cerca de 3% de toda a área urbana e são, na maioria, arrendadas, sendo 75% desta área pertencente ao governo. Para conseguir uma casinha é necessário entrar numa fila que pode durar anos. Ter uma é também aceitar seguir diversas regras. Morar numa das casinhas, por exemplo, é proibido. É necessário cultivar um jardim, afinal foi por isso que elas foram criadas, além de precisar mantê-la em ordem. Parece que ter um gnomo no quintal também faz parte das condições obrigatórias.
Geralmente elas ficam perto de ferrovias e muitas estão no meio da cidade, inclusive há uma atrás da minha casa.
Entrar numa destas colônias é uma viagem pelo tempo e espaço, às vezes um choque quando ao fundo há prédios residenciais que contrastam com a paisagem rural que elas têm. No verão elas são ótimas para reunir amigos e família para churrascos e banho de piscina inflável ou de mangueira.
Comer fiado
Certa vez eu almocei num restaurante chiquezinho no Mitte, região central e a mais turística da cidade. Quando fui pagar a conta eu percebi que estava sem o cartão do banco e sem dinheiro. Como eu tinha um documento pessoal comigo, eu sugeri deixá-lo no restaurante para pegá-lo quando pagasse a dívida. O dono, que veio me salvar, disse que não precisava. Demorei uns dias para voltar lá, mas quando retornei, a nota com o valor da conta estava colado na parede do caixa.
Numa outra vez eu comprei um pacote de café desses bem caros e me vi novamente sem a carteira. Dessa vez nem documento eu tinha, então devolvi o café, mas o rapaz sugeriu que eu pagasse quando voltasse para renovar o meu estoque de café. Pendurei a conta sem cerimônia.
Algumas pessoas que moram em Berlim há mais tempo que eu podem discordar dos pontos acima, mas essa é a maneira como eu enxergo a cidade e não o que ela talvez seja de fato.
Por isso….
Com esse modo de vida que me é tão diferente do que eu tinha em São Paulo, a ansiedade gerada pelo dia-a-dia praticamente não existe. Continuo ansiosa? Sim, mas por outros motivos que não vem ao caso explorar nesse momento. E, somado a tudo isso, tem o fato de em Berlim eu fazer quase tudo de bicicleta.
Certo dia eu comentei “Estou com FOMO” num Stories que um amigo fez de uma festa em São Paulo. Ele respondeu “Eu estaria com FOMO se eu morasse em Berlim”. Mas aí saquei que Berlim não me causa FOMO como São Paulo causava, mesmo sendo uma cidade que, apesar do clima de interior, oferece uma extensa programação cultural diariamente. Toda semana, por exemplo, tem pelo menos um ou dois shows de artistas ou bandas que no passado eu daria um dedinho mindinho para ver ao vivo, mas agora o excesso de oferta faz eu escolher com parcimônia onde eu invisto meus euros.
Uma das diferenças entre Berlim e São Paulo é que, como a agenda é mais disputada aqui pela quantidade de coisas que acontecem ao mesmo tempo, as pessoas que eu conheço não estão todas no mesmo lugar como costuma ser muitas vezes em São Paulo. A segunda diferença é que as pessoas compartilham menos o dia-a-dia no Instagram, então geralmente eu não sei o que meus amigos estão fazendo quando não estou com eles. Se eu decido ficar em casa numa sexta-feira à noite, eu não sofro como sofria em São Paulo. Eu apenas curto a oportunidade de estar jogada no sofá bem acompanhada.
A mudança muito clara das estações do ano também colabora para vivermos de uma maneira bem diferente. Enquanto no verão a vida acontece intensamente na rua, no inverno ela se recolhe para dentro de casa. Ou seja, temos um chamado da natureza para momentos mais introspectivos ao longo do ano que eu estou adorando, porque eles são necessários. Só não aprendi ainda a controlar a ansiedade provocada pelo verão quando eu sofro se estou em casa trabalhando e lá fora o sol está brilhando alto.
Com tanta mudança à minha volta, retornar para a terapia foi um convite oportuno. Estou há quase 3 anos me conhecendo de um jeito diferente porque eu não sou mais a mesma pessoa que chegou aqui em outubro de 2019.
São tantas novidades sobre mim que às vezes eu fico exausta com elas. São novas fichas caindo, sensações que aprendi a nomear e até o meu sofrer tem sido menos pesaroso, porque agora eu tenho mais tempo para saber o que eu sinto, então eu me permito sentir enquanto outrora eu estava sempre ocupada demais para vivenciar direito as minhas emoções.
Percebi que se eu continuasse morando numa cidade tão acelerada quanto eu era, eu não teria me dado essa oportunidade de parar o mundo à minha volta para embarcar nessa aventura louca que está sendo viajar dentro da minha cabeça.
A yoga e a meditação têm me ajudado a aprender a respirar e a prestar atenção no agora, lugar de onde eu estava sempre escapando. Elas entraram para a minha rotina, porque a minha vida interiorana cheia de privilégios em Berlim permite tê-la.
Eu morro de saudades de São Paulo, mas não consigo me ver morando nela (ou tão cedo). Prefiro tê-la como um ex que virou amigo, assim podemos nos ver de vez em quando de maneira saudável.
A ansiedade existe com altos e baixos, mas ela me esmaga menos. Eu descobri também o quanto a ansiedade é transmissível - criei um ansioso aqui em casa além de mim, então eu não vivia só a minha ansiedade, eu vivia também a ansiedade de São Paulo e de todas as pessoas ansiosas à minha volta.
Eu aprendi a prestar mais atenção à ansiedade das pessoas com quem eu convivo e às vezes me vejo obrigada a me retirar um pouco da vida delas para poder respirar e entender o que é ansiedade minha e o que é ansiedade do outro. Você já se deu conta de que nem sempre a ansiedade que sentimos é nossa?
Stay Awhile
Achei uma lindeza sublime esse texto em homenagem à Gal Costa.
Escutar a Gal nos faz acreditar no que é lindo.
A nova onda: bibliotecas lançando plataformas de música para dar um boost na carreira de artistas locais.
A conversa de um ano entre Nick Cave e Seán O'Hagan virou o livro “Faith, Hope and Carnage”. A Maria Popova escreveu uma ótima resenha cheia de referências de outras leituras que complementam a conversa sobre auto perdão, esperança e criatividade. Aliás, os textos de Popova sempre fazem a nossa lista de leituras crescer.
O festival Bonnaroo lançou a comunidade Festiverse no Discord, que abriga no mesmo canal o Austin City Limits e o Lollapalooza. A era das comunidades finalmente abraçando os grandes festivais.
WAIT. [umas lista de rapidinhas]
O texto “O que me sustenta”, da Gabi Albuquerque, da newsletter “Tempo para você”, trouxe a dica do livro “Desconstruindo a ansiedade”, do psiquiatra Judson Brewer, que estou devorando por aqui já cheia de aprendizados. Gostei que ele desmitifica a teoria de que levamos 21 dias para criar um novo hábito, que sempre me deixou frustrada por não funcionar comigo. Ele deu um ótimo TED em 2016 sobre como quebrar um mau hábito que dá um teaser sobre o livro.
Como a internet tem nos tornado máquinas de gerar conteúdo:“Sabemos que o que publicamos e consumimos nas redes sociais parece cada vez mais vazio e, no entanto, somos impotentes para pará-lo.”
Descript é um novo editor de vídeos com recursos alimentados por inteligência artificial. Criadores de conteúdo se emocionarão!
Mal posso esperar para assistir esse doc sobre a Nan Goldin.
Alma repleta de chão: Milton, Gal e olhar com o passado com graça.
Todos os jovens que completarem 18 anos em 2023 na Alemanha ganharão uma ajuda do governo de 200 euros para serem gastos com cultura. <3
Eu fui conferir uma prévia do Spatial Sound Festival, que rola no MONOM neste próximo fim de semana e a dica é: se estiver em Berlim, não deixe de ir. A programação está bem especial.
A era da descentralização está chegando: uma análise muito além do universo cripto.
Uma lista com 12 livros para as crianças sobre racismo.
Quais são as oportunidades de trabalho na Economia de Criadores.
Estou fascinada com o universo de pessoas surdas que são streamers nas redes sociais.
A arte do Refik Anadol no MoMa.
David Hockney faz exposição imersiva em Londres a partir de janeiro.
A Geração Z não vai salvar o mundo, um estudo caprichado sobre a geração “Contr+Z”.
A Woo é uma plataforma de mídia digital global que quer redefinir o bem estar e o autocuidado para a Geração Z com conteúdo editorial com temas bem atuais.
Um projeto lindíssimo que transformou nossos gestos do dia-a-dia em arte.
Usar o futuro para meditar sobre o presente.
Mulheres que devem ser vistas: Uma história sobre Maria Firmina, a autora que será homenageada na FLIP que começa na próxima quarta-feira. Aliás, a programação desta edição está um puro deleite e ainda tem a presença da Annie Ernaux. <3
Uma aula sobre inteligência artificial e o imaginário (pós)apocalíptico.
Meu novo vício.
Também estou viciada em ficar desenhando aqui (dica do Tira do Papel)
Lula explained para os amigos gringos.
A Anna Delvey foi solta recentemente e disse numa entrevista que está vivendo muito melhor que nós. Pelo jeito o crime compensou no caso dela.
Estou de malas prontas para viajar para São Paulo então na próxima semana eu estarei numa mini férias. Nos vemos em breve. 🙃 Tchau!
*Se você é novo/nova por aqui, me dê um alô para contar como me achou, onde você está, deixe suas críticas, dicas e sugestões. E, se gosta da newsletter, envie ela para os amigos.
Aliás, esqueci de comentar um item que me leva ainda mais para a minha vida no interior: o café da tarde acompanhado sempre de bolinho. <3
Eu não conheço nem perto do que tu conhece da cidade, mas uma coisa que você falou e que me chamou atenção foi a ideia de pagar fiado, algo que me levou para a infância cheia de ingenuidade. Mas arrisco acrescentar algo aí: Berlim foi o local em que eu comecei a não me importar se saía maquiada ou não, se saía bonita ou não, se meu look tava legal ou não. Eu podia abdicar da vaidade, o meu pecado pessoal, e isso foi libertador. Um aprendizado que levo para sempre, e passo me vestir com preguiça se to a fim, me depilar só se estiver disposta, aceitar os dias em que ser feia tá tudo bem. Obrigada, Berlim, pela lição.