Espiral #48: As 5 melhores coisas que vi em Junho
Bieke Depoorter, DAOs, Nadya Tolokonnikova, Shubigi Rao e Alba de Céspedes
Trilha sonora para acompanhar a leitura desta newsletter: When at HOME, criada pela Laima Leyton.
Sempre fui muito fã de listas e adepta a fazê-las nos diversos blogs e diários que tive. Eu costumo ficar obcecada com alguns assuntos novos que surgem à minha frente. Passo dias pesquisando a respeito até que em meio às pesquisas surgem outros novos temas e, assim, uma nova obsessão.
Talvez essa newsletter, filha mais nova da Espiral, seja uma forma de organizar as minhas descobertas e até aprender mais sobre elas, além de, quem sabe, trocar ideias com pessoas que estão interessadas na mesma coisa. Assim aumentamos nossas redes, nossas referências e o nosso conhecimento. Essa primeira edição ficou longa demais, porque eu sou exagerada, mas prometo que as próximas serão mais sucintas e diretas ao ponto.
As “5 dicas bacanas”, sempre ótimas, da newsletter Vou te Falar, da Carol, foi quem me inspirou a criar a minha lista também.
Junho foi um mês de surpresas e muitas delas ao vivo. A Bienal de Arte de Veneza, como escrevi na última Espiral, foi um bálsamo para a minha alma ao vê-la ocupada por mulheres brilhantes. Então, pego essa carona e seleciono aqui mais 5 projetos/temas que envolvem mulheres que me fizeram acreditar que aos poucos vamos ocupando mais espaço mundo afora, porque como diz a rainha Beyoncé, “o poder não nos é dado, a gente precisa pegá-lo.”
1) Bieke Depoorter
O C/O Berlin está com uma belíssima exposição da fotógrafa belga Bieke Depoorter, que eu não conhecia. “Chance Encounter” apresenta Agata e Michael, duas séries que se iniciam a partir de encontros acidentais. O trabalho de Depoorter vai além da fotografia, ela traz consigo a história de quem está retratando, às vezes de maneira obsessiva. Seus personagens no geral carregam estigma social, quebram tabus e incluem pessoas muitas vezes esquecidas na sociedade.
Agata é um projeto que faz mais perguntas do que oferece respostas, primeiro reconhecendo a velha ideia de fotógrafo-testemunha como uma impossibilidade relativa, depois colocando todos os personagens envolvidos num microscópio: fotógrafo, sujeito, público e, claro, a própria forma.
Já no projeto Michael, ela investiga o desaparecimento e a vida de um homem que conheceu nas ruas de Portland em 2015. Depois de dar a ela três malas cheias de álbuns de recortes, notas e livros, ele desapareceu. Saí comovida da exposição, não apenas pelo olhar sensível de Depoorter, mas em especial pelas cartas trocadas entre ela e Agata e os textos da Agata sobre o que achou do resultado de várias fotos. De repente, eu me vi imersa no mundo das duas como uma amiga íntima.
2) DAO - Decentralized Autonomous Organization
As DAOs, organizações decentralizadas autonômas, são um dos assuntos que mais tem atraído a minha atenção no último ano. Mas antes de tudo, o que é essa tal de DAO?
São comunidades sustentadas por seus membros criadas por um interesse e/ou objetivo em comum. É operada de maneira descentralizada, ou seja, não há líderes ou donos ditando decisões. Uma DAO é construída utilizando contratos inteligentes para definir suas regras, que são executadas e validadas pela blockchain. Isso significa que ninguém tem o poder de tomar decisões sem a validação dos membros da DAO.
Muitas DAOs permitem a entrada de novos membros a partir da compra de tokens, que são a criptomoeda criada para gerir a organização. Ou seja, geralmente precisa ter uma carteira de criptomoedas para a transação. É um tipo de clube, por exemplo, que quanto mais restrito, mais difícil e mais caro é para entrar nele.
Numa DAO, os seus membros também podem ganhar criptomoedas/tokens de acordo com as atividades que executam nela e também participarem como investidores.
Eu participo de uma DAO de pesquisa de inovação na indústria da música, a Water and Music. Ela começou como uma newsletter feita pela jornalista Cherie Hu, através de quem eu ouvi falar pela primeira vez sobre NFT dois anos atrás. Com o tempo, ela estendeu a newsletter para uma comunidade fechada para os assinantes no Discord. Após lançar um primeiro relatório colaborativo sobre NFTs na música, acabou se estruturando e se tornando uma DAO.
Atualmente está em andamento a produção de uma nova pesquisa focada em música e metaverso. Para fazê-la, todos os membros são convidados a colaborar e a participação é recompensada em tokens da DAO e com Ethereum (criptomoeda).
Para participar dessa DAO, eu pago uma mensalidade e tenho acesso à comunidade no Discord, que conta com nomes importantes da indústria da música global e é bem ativa, às pesquisas feitas, aos eventos exclusivos, entre outras coisas, além de poder me envolver na produção dessas pesquisas sazonais e, assim, ter mais participação na DAO. Está sendo interessante acompanhar o potencial que ela tem de crescimento e como ela tem se tornado uma referência no meio da indústria da música.
Há DAOs dos mais variados assuntos e interesses, várias delas já com grandes rodadas de investimentos, muitas fechadas e outras com valores bem altos para entrar nelas.
Eu acredito no futuro descentralizado, por isso sou tão entusiasta da Web3. Tem iniciativas ótimas rolando. Seleciono aqui 2 DAOs focadas no público feminino:
UnicornDAO: Criada pela ativista Nadya Tolokonnikova, do Pussy Riot, conta atualmente com membros como Grimes, Sia e Beeple. Com menos de um ano desde seu lançamento, a DAO já levantou US$ 4,5 milhões de investimento para empoderar artistas que se identificam como mulheres, pessoas não-binárias e da comunidade LGBTQ+, com o objetivo de comprar e mostrar a arte (NFTs) produzidas por essas artistas, financiar negócios liderados por elas, além de descobrir novos talentos e prover mentoria a eles. Um dos pontos que levou Tolokonnikova a criar esta DAO é o fato de que apenas 5% das vendas de NFTs em 21 meses eram de artistas mulheres. Além disso, a DAO tem uma frente para levantar fundos para causas sociais feministas. Recentemente criaram uma campanha LegalAbortion.Eth para arrecadar fundos para organizações de direitos reprodutivos após a Suprema Corte americana derrubar o direito ao aborto.
A DAO BFF foi criada em janeiro para ajudar mulheres e pessoas não-binárias a se conectarem, aprenderem e se empoderem na Web3. Criada por duas empreendedoras e investidoras, Brit Morin e Jaime Schmidt, hoje a DAO tem por trás mais de 100 mulheres líderes nas mais diversas indústrias que estão por trás desta DAO, incluindo nomes como Mila Kunis, Gwyneth Paltrow, Tyra Banks e Kate Hudson. A comunidade no Discord é bem ativa com 26.684 participantes. A DAO tem uma loja online fechada para quem detém NFTs do BFF, que custam a partir de 0.16 ETH (ou cerca de US$ 173). Há produtos, mentorias via Zoom, eventos exclusivos, entre outras coisas disponíveis na lojinha.
3) Nadya Tolokonnikova: mulheres que ajudam a melhorar o mundo
A Web3 conta com 81% de participação masculina, mas alguns dos projetos mais brilhantes que têm surgido são criados por mulheres. Nadya Tolokonnikova tem 32 anos e é uma das mulheres por trás de projetos com impactos reais. Aos 21 anos ela fundou o coletivo ativista e banda punk Pussy Riot, aos 22 foi presa na Rússia pela ação de guerrilha “Punk Prayer”, contra a aproximação do governo com a igreja, realizada numa catedral. Ficou 21 meses presa, o que resultou no livro “Um guia Pussy Riot para o ativismo”. Uma década depois, Nadya está usando o universo cripto para continuar subvertendo o sistema.
Além da criação da UnicornioDAO, ela é um dos nomes da UkraineDAO, que arrecadou o equivalente a US$ 7,1 milhões na época para doar para uso de assistência médica na guerra.
Em junho, ela foi uma das figuras mais disputadas no evento NFT.NYC e o NYTimes fez uma reportagem muito boa sobre ela. No próximo dia 5 de agosto, ela lança a primeira mixtape do Pussy Riot, “Matriarchy Now”, com colaboração de Salem Ilese e produção do Tove Lo.
Como disse o Beeple: “Ela realmente me faz parecer preguiçoso, pois sempre que eu me viro ela começou outra DAO ou uma instituição de caridade que arrecadou, tipo, US$ 10 milhões. E é tipo, 'O que você fez?' Eu desenhei um monte de fotos de salsichas ou algo assim.”
Sua colaboração mais recente foi se juntar à cantora pop Salem Ilese para criação de um conjunto de NFTs da canção “Crypto Boy”, que arrecadou US$ 170 mil que foi destinado ao Center for Reproductive Rights. Cola nela!
4) Shubigi Rao: artista e devota aos livros
Eu visitei o Pavilhão de Singapura por acaso e foi uma grata surpresa, já que sou apaixonada por livros e o projeto apresentado é dedicado a eles.
A artista e escritora Shubigi Rao estuda diversos temas relacionados aos livros, bibliotecas e sistemas de arquivos. A sua conexão com os livros vem desde a infância. Quando era criança, ainda em Nova Deli, sua casa foi assaltada. Como nada tinha de valor na casa, levaram uma grande coleção com centenas de livros da casa. Após o incidente, a família passou a visitar feiras de livros usados para tentar recuperá-los.
Esse amor precoce pela leitura e pela violência foi a semente para o projeto “Pulp”, um filme, três livros e um projeto de arte visual produzido em 10 anos sobre a destruição de livros e o livro como um símbolo de resistência. Para a Bienal de Veneza, ela escreveu o terceiro livro da série, “Pulp III”, que teve 5 mil cópias impressas e têm sido distribuído gratuitamente no pavilhão e disponível para baixar em pdf.
O filme “Talking Leaves” (90 min) mostra sua odisseia por bibliotecas, coleções de livros privadas e públicas mundo afora. Bósnia, Índia, Coréia do Sul e diversas cidades da Europa estão presentes no documentário, com conversas sobre livros raros e sua preservação e, consequentemente, da história, e das línguas que estão desaparecendo. Também há curiosidades como um bairro português na Malásia, uma biblioteca em Berlim só com livros proibidos e banidos escritos em árabe, alimentada por doações feitas pela comunidade local.
Rao é também a primeira mulher em 10 anos a representar Singapura na Bienal de Arte de Veneza.
5) Alba de Céspedes e seu caderno proibido
Eu ando dedicada à literatura produzida por mulheres na primeira metade do século 20. O livro “Caderno Proibido”, de Alba de Céspedes, não tinha passado pelo meu radar. Livrarias são sempre espaços para descobrirmos novas leituras que vão além do hype. As livrarias oferecem oportunidades da gente viajar por outros mundos além da lista dos mais vendidos, fugir do algoritmo e furar a bolha.
Foi assim na minha visita à Livraria da Vila, na Vila Madalena, na minha última passagem por São Paulo. Fiquei conversando com uma vendedora que me apresentou diversos livros que não estavam no meu radar. A italiana Alba de Céspedes caiu na boca do povo após ter sido redescoberta por conta de ser uma das grandes influências literárias de Elena Ferrante, mas na minha roda ainda não tinha aparecido. Trouxe-a para casa e foi o primeiro livro que li de uma pilha gigante de livros que eu trouxe na mala.
Filha de um diplomata cubano em Roma, Céspedes nasceu na capital italiana em 1911. A história se passa em 1950 e apresenta uma dona de casa, casada, com dois filhos, que sai de casa para comprar cigarros e volta com um caderno, que o transforma num diário secreto. Nele, ela mergulha num auto-conhecimento e descobre um mundo totalmente novo. O livro tem uma escrita simples e cativante. A personagem, Valéria, retrata com intimidade a história de uma mulher bem comum no mundo pós-guerra.
Recentemente, a Revista Gama publicou uma ótima matéria sobre a importância de manter um diário, que ajuda na manutenção da saúde mental, que me remeteu ao livro de Céspedes, em que a protagonista ao escrever diariamente sobre seu dia-a-dia, vai se transformando e se redescobrindo como mulher, com desejos e não idosa como ela se sentia no auge dos seus 43 anos.
Volto na semana que vem. Tchau :)
Eu não sou fã, sou devota!
Queria dizer que aguardo ansiosamente cair a newsletter na minha caixa de entrada. Obrigada por compartilhar, obrigada pela escrita. Me sinto imersa em universos que não conhecia. Amo! Adorei saber mais das DAOs. Já tinha ouvido falar bem superficialmente. Amei saber da Bienal de Veneza, com esse viés.