Espiral: É possível sentir a mesma emoção duas vezes?
Guardando as memórias num potinho e a capacidade da música em nos fazer transcender
Trilha sonora para essa edição: “Atlas”, Laurel Halo.
Há um ano e meio, eu estava no festival Sónar, em Barcelona. Era sexta-feira, fim de tarde, e o sol seguia alto, ofuscando os olhos. Terminei de comer um sanduíche gorduroso, acompanhado de uma taça de vinho laranja natural, que continua em alta tanto em Barcelona quanto em Berlim há anos, e segui para uma tenda escura, onde a noite acorda e dorme por lá sem ver a luz do dia.
Me instalei com meus amigos atrás da mesa de som, que oferecia uma ótima visão do palco. Ryoji Ikeda, artista sonoro japonês radicado em Paris, entrou no palco e, o que veio a seguir, foi uma hora vivendo dentro da Matrix.
Foi um show ruidoso, com sons que pareciam rádios analógicos fora de sintonia e vozes recortadas. Às vezes, os sons lembravam batimentos cardíacos, que nos deixavam na dúvida: batiam lá fora ou aqui dentro de nós? Batidas que iam de quase imperceptíveis a ritmos que “quase” nos faziam dançar, mas no máximo, balançávamos a cabeça.
Os críticos consideram “Ultratonics”, álbum que alterna entre o industrial e o ambiente, a obra mais acessível de Ikeda, mas, ainda assim acho que exige esforço de alguns ouvintes. Foi este trabalho que assistimos ao vivo.
A experiência visual é hipnótica, com dados binários, projeções digitais e instalações de luz que se sincronizam matematicamente com as paisagens sonoras, transformando conceitos científicos em arte. Mas ali, tudo era abstrato e intenso. Efeitos estroboscópicos com flashes de luz, piscando até 100 vezes por segundo, criavam efeitos visuais deslumbrantes.
Li em uma entrevista que Ikeda considera que luz e som são essencialmente as faces inversas das experiências de ver e ouvir, respectivamente. Ele busca criar uma experiência holística que transcende as limitações de cada meio individualmente. Foi o que aconteceu comigo: saí deslumbrada, transcendendo espaço e tempo.
A música — e as artes em geral — têm esse poder de nos transcender. Li essa frase bonita na newsletter
e concordo muito com ela:“a vida é feita de breves instantes de música, intercalados por longos e pesados silêncios.”
A última quarta-feira amanheceu chuvosa e gelada, em contraste absoluto com a sexta-feira ensolarada do Sónar. Peguei o trem, desci duas estações depois e caminhei em passos largos até o Silent Green, uma das minhas casas de shows favoritas em Berlim. Com ingressos esgotados há meses, o lugar estava lotado.
Fui movida por uma busca nostálgica: rever o show que havia me proporcionado uma felicidade rara, daquelas que queremos sentir novamente, o instante em que a música nos faz sair do corpo, transcender. Conseguimos sentir a mesma coisa duas vezes? Não, podemos até sentir de maneira mais intensa, mas não da mesma forma.
Quando o show começou, fui novamente capturada pelo universo hipnótico de Ryoji Ikeda. Luzes piscavam em alta frequência, os sons reverberavam pelo espaço, e eu me deixei levar seduzida pela maneira como ele transforma som e imagem em uma coisa só. Ainda assim, a mágica da tarde em Barcelona não se materializou. Saí contente, até mesmo deslumbrada mas não carregava a mesma emoção que outrora. Foi uma experiência mais visual, sonora e estética, menos emocional.
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No mês passado, fui ao “Tehran Contemporary Sounds”, um festival de música experimental focado em artistas de origem iraniana. Os shows eram, no geral, contemplativos; alguns muito bonitos, outros mais desafiadores em prender a atenção. A audiência era formada, em grande parte, por iranianos que vivem em Berlim.
Um dos shows que assisti, e não estava na minha lista, era do percussionista Naghib Shanbehzadeh, nascido no Irã e, como Ikeda, mora em Paris. Sentado descalço no meio do palco, ele iniciou sua performance tocando diferentes tambores tradicionais da música persa. As batidas começaram espaçadas e, aos poucos, aumentaram em intensidade, com uma agilidade impressionante. Estávamos todos sentados num chão duro e frio. Gradualmente, o ritmo crescente tomou conta de nossos ombros, que já se moviam aqui e ali. Um cara não resistiu: levantou-se e começou a dançar descalço, de um jeito diferente, fazendo movimentos com as mãos e o pescoço. Sua feição era tão alegre que o sorriso ocupava toda a pista.
Shanbehzadeh levantou-se e foi para trás da mesa. Começou a tocar sintetizadores, controladoras e tambores, tudo ao mesmo tempo, fazendo a sala tremer. Todos nos levantamos, e o show se transformou em uma grande festa. A calmaria que havia se instalado nos dias anteriores já não existia mais. Me senti em comunhão com aquelas pessoas à minha volta, um momento ‘estamos juntos, ninguém solta a mão de ninguém’ ao lembrar que o mundo lá fora não está bonito:
Fui tomada por uma energia e emoção raras. Dançava enquanto contemplava, extasiada, aquela cultura tão distante da nossa, celebrando de uma forma que eu ainda não tinha tido a chance de ver. Pensei em como nós, brasileiros, somos prepotentes ao achar que somos os mais animados na pista. 🫠
Mais uma vez, me vi imersa no estado de felicidade que a música tem a capacidade extraordinária de proporcionar. Foi uma verdadeira catarse coletiva que há muito tempo eu não vivia.
Fui embora tão logo o show terminou. Sabia que o que estava sentindo naquele momento não se repetiria tão cedo. Quis então prolongar essa sensação o máximo possível.
Guardá-la num potinho.
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Assim como a música, a escrita nos dá também o poder de reviver emoções. Embora eu não tenha sentido exatamente a mesma coisa vivida no dia 16 de junho de 2023 e no último dia 27, revivi um pouco ao escrever esta edição. Lembrei da leveza que senti, do sorriso bobo no rosto e da sensação de flutuar.
Escrever sobre elas é como guardá-las numa cápsula do tempo, acessível sempre que precisamos reviver os momentos tão formidáveis que vivemos. Eles não retornam, mas seguimos capazes de sentir outras emoções igualmente boas e poderosas. E, quando não estamos na nossa melhor fase, é bom lembrar delas.
E o seu potinho de emoções, como anda?
Tenho usado duas táticas para escapar da tristeza que os dias curtos e escuros são capazes de nos fazer sentir: frequentar shows e a sauna. Esta semana eu fui a um festival de órgão de tubos - amo a variedade de festivais que tem em Berlim. Há muito tempo eu queria ver o órgão da Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche, a igreja memorial construída ao lado da que foi destruída na guerra, em ação. Perdi o show da compositora e organista Kali Malone tocando nesse belíssimo órgão o seu último álbum, “All Life Long”, obra tão exuberante e melancólica que chega a doer de tão bela. Fiquei imaginando como foi ter ouvido ao vivo.
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Estou trabalhando em um texto sobre a música como literatura, ou seja, ouvir um álbum como se lesse um livro. Dois bons exemplos são: “The Wall”, do Pink Floyd, e “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, de David Bowie. Caso tenha exemplos por aí, compartilha comigo?
𖦹 Possibility 𖦹
📚 Terminei de ler “V13: O julgamento dos atentados de Paris”, de Emmanuel Carrère. É uma leitura pesada como o tema anuncia, mas a abordagem de Carrére é muito humana e reflexiva de uma maneira muito sensível sobre o terror e a perda;
📖 Estou lendo “Argonautas”, da Maggie Nelson, e “O cérebro e a menopausa”, da Lisa Mosconi, este último, com certo assombro devido a diversas descobertas, e ambos em uma leitura prazerosa e lenta;
🫙 Memórias que serão o nosso aconchego no futuro;
♡ Dajana Roncione & Thom Yorke;
🎬 Assisti e gostei bastante de “Motel Destino”, do Karim Aïnouz; e “O Quarto ao lado”, do Pedro Almodóvar. As atuações, a sintonia mágica que rolou entre Juliane Moore e Tilda Swinton e a estética do filme já fazem valer a pena assisti-lo;
🛜 Tá todo mundo tentando odiar a internet conversa bem com uma pessoa desconfiada, que me conectou com a vontade de viver outras vidas que às vezes bate forte. Por aqui, o máximo que tenho conseguido é diminuir drasticamente o uso do Instagram;
⛵ Tamara Klink sobre viver outras realidades;
♥️ Por que Fandoms? para ler e A Era dos Fandoms para escutar;
💔 O lado negativo dos Fandoms de acordo com Alan Moore;
✂ Está sendo assustador acompanhar essas notícias aqui na Alemanha, além do fato do país ter feito um corte orçamentário enorme na cultura. Os museus, por exemplo, que oferecem entrada gratuita no primeiro domingo do mês desde 2021, perdeu o benefício.
✈️ Tendências no turismo para 2040.
Antes de ir deixo aqui um álbum alto-astral do MonoNeon e o dream-pop Feel Better, de Odd Beholder.
Até a próxima. 😘
Muitos anos atrás uma galera criou uma série de livros com esse foco: em geral pequenos contos baseados em discos.
Alguém (não sei se o próprio time responsável) juntou tudo aqui: https://mojobooks.siteguy.dev/
Amiga, se vc curte "consumir música como literatura", eu recomendo muitíssimo o álbum El Mal Querer da Rosalía, que foi criado tendo um livro como base. É um dos meus favoritos, e a forma como ela constrói o relato com a música e os clipes é incrível.