Espiral: Eigenzeit - nosso próprio tempo
O que a Índia me ensinou sobre o tempo e o silêncio
Trilha sonora para esta newsletter: “Journey in Satchidananda”, da Alice Coltrane, porque ainda estou sob efeito de uma das viagens mais intensas e bonitas que já fiz.
Esta edição da Espiral faz parte de um amigo-secreto feito em um grupo de escritores do qual participo. A ideia é simples: Temos um sorteio e, posteriormente, dedicamos uma edição à pessoa que tiramos. Foi um ótimo exercício, pois me conectou com o
, que me era desconhecido até então, mas que chamou minha atenção com suas ideias sobre o silêncio e o tempo, dois temas caros para todos nós.Viajei para a Índia na sequência do sorteio do amigo secreto. Foram dezesseis dias percorrendo um país que sempre evitei incluir nos meus roteiros achando que a Índia não era para mim. Não sabia se lidaria bem com a comida sempre apimentada, o caos e o barulho constante. No entanto, como dizer não a um convite de casamento tradicional hindu?
No dia cinco de dezembro, embarquei com uma mala de mão pesada de nervosismo e excitação para Mumbai, a cidade mais barulhenta e caótica que já visitei na vida. Já na chegada, fui presenteada com um casamento que cruzou o meu caminho na rua como um bloco de carnaval. Quando me dei conta, estava dançando com os braços para o alto, rodeada de mulheres curiosas e sorridentes, todas elas de vestidos rodados e coloridos e com uma risca vermelha pintada entre os olhos. Senti naquele momento que a Índia guardava boas surpresas.
Foram duas semanas recebendo novos estímulos e imersa em barulho - muito barulho... muito caos... Me surpreendi por ver um trânsito caótico funcionar tão bem; ele não para. Motos, tuk-tuks, carros e ônibus dividem a mesma faixa da rua com pessoas, vacas e cachorros. Raramente há calçada. As pessoas ocupam as ruas e os veículos que se virem para desviar delas. A buzina é praxe. Uma loucura! As vacas parecem alheias ao caos. Elas caminham devagar, cruzam avenidas movimentadas no tempo delas, o tempo que sonho ter para mim. Eigenzeit: O meu próprio tempo.
No último mês, fui bombardeada com textos sobre brain rot (deterioração cerebral), palavra escolhida para definir 2024 pelo dicionário Oxford. O termo surgiu para descrever a sensação de que nossos cérebros estão se deteriorando e derretendo devido ao consumo excessivo de conteúdo superficial publicado nas mídias sociais. Para mim, brain rot ser escolhida é um diagnóstico óbvio da sociedade em que vivemos: perdemos a capacidade de contemplação, silêncio e foco profundo.
Em nossa sociedade atual, somos vítimas de uma aceleração social impulsionada pelo capitalismo e pela performance, como observam autores como Hartmut Rosa e Byung-Chul Han. Nas mídias sociais, essa aceleração atinge seu ápice: horas voam enquanto nos perdemos num scroll infinito. Ficamos num estado quase hipnótico de consumo passivo de informação. No entanto, não acho que é distração e sim o nosso foco sendo sequestrado, pois o cérebro se engaja completamente, mas nos deixa exaustos e vazios.
Por isso, deletei o Instagram na segunda semana da viagem. A ânsia em compartilhar toda a novidade que eu estava vivendo não me permitia focar na minha experiência. Foi a melhor decisão tomada, a ponto de, por ora, continuar sem ele. A capacidade de contemplação escapa cada vez mais de nós. Estamos sempre na borda da piscina e não era nela que eu queria estar durante minha estadia. Eu queria mergulhar na Índia.
Foi justamente ao me afastar das mídias sociais que senti o tempo passar de maneira diferente. Tive a sensação de ter passado um mês na Índia, não apenas dezesseis dias. Aproveitei a elasticidade do tempo, saboreando com calma a culinária indiana, participando de cerimônias em templos hindus, contemplando o pôr do sol todos os dias, assistindo a lua cheia surgir atrás das montanhas e iluminar o Ganga, observando como as pessoas vivem. Passei horas no trânsito, atravessando as cidades em tuk-tuks, conversando com locais ou tentando barganhar objetos que eu não precisava comprar.
Essa experiência me fez refletir sobre a minha ideia de silêncio. A artista Jenny Odell1 sugere que a desconexão não é uma fuga, mas uma reorientação da atenção - uma mudança de foco da constante busca por produtividade e consumo para uma atenção mais consciente e dirigida. Enquanto corremos desesperadamente atrás do silêncio através de aplicativos de meditação, aulas de yoga e retiros silenciosos, a Índia parece carregar em seu DNA uma sabedoria paradoxal: a capacidade de encontrar quietude no meio do caos.
A dualidade indiana - o caos externo versus sua tradição contemplativa - nos convida a repensar nossa própria relação com silêncio, tempo e aceleração. Não se trata de fugir do mundo acelerado, mas de encontrar, como os indianos parecem ter descoberto há milênios, uma forma de habitar o caos sem se perder nele.
Leon, você me fez pensar sobre como a experiência do tempo e do silêncio é profundamente pessoal a partir da sua condição neurodivergente. Quando você escreve "FazFavôDePararDeFalarFazFavôDe…", sinto a urgência de um corpo que processa os estímulos de maneira diferente do meu. Enquanto encontrei paz em meio ao caos, seja nos cânticos hindus em templos que visitei, no retiro que fiz ou nas caminhadas pela beira do movimentado Ganga, entendo que para você o silêncio é uma necessidade vital, física, quando "os ouvidos doem e a cabeça arde".
Talvez seja isso que a Índia e você me confirmam: que não existe uma forma única de experimentar o tempo ou o silêncio. O silêncio que eu encontrei em meio ao caos da Índia é diferente do silêncio que seu corpo pede quando tudo é inflamante. Entendi que, diferentemente de você, o silêncio que eu buscava não era a ausência de sons, mas a sensação de paz, o silêncio interior.
"O ruído nos leva a esquecer quem somos, e o silêncio nos revela. Tentamos mudar o mundo com ruídos e convulsões, mas só o salvaremos com a silenciosa entrega à vida." - Juan Arias
Entendi que a paz não é ausência de perturbação, mas a capacidade de permanecer centrado apesar dela.
Silence y otras cositas
🎁 O meu presente de amigo secreto: Permissão para tristeza concedida, por
;🧏🏻♀️ Exercício para escutar o silêncio;
📱 Tentei viver, mas me distraí (em inglês);
🏃🏻♀️ Perdi o meu próprio ritmo;
🥱 Você sabe lidar com o tédio?
🌟 Movimento de volta ao básico que funciona;
💆🏻♀️ Desintoxicação Digital: A Revolução Silenciosa do Nosso Tempo;
🔌 Desconectar não é a solução que você quer (em inglês);
𑁍 Presente de natal da
, uma lista de vídeos, livros e filmes para conhecer o Dharma;🤫 Vipassana: o que aprendi em dez dias de meditação & silêncio & compaixão & desespero;
࿊ Me emocionei com este texto sobre a Matilde Campilho;
📚 Minha leitura do mês foi "De Quatro", da Miranda July, que tem a menopausa como tema central da história. Não fui fisgada de início, mas no fim, eu amei o livro. Temos agora o gênero romance estrogênico.
Obrigada por me acompanharem. Boas festas para todos! Nos falamos no próximo ano. ♡
Adorei! "A silenciosa entrega à vida ou como vc mesma disse: habitar o caos sem se perder nele... é isso. E resistir à histeria das redes sociais. Meu exercicio diário. Happy new Year, Lalai! Que seja leve.
Eba! Quero ir à Índia.