Espiral #45: Estou positiva e não é com a vida
Covid, As 7 vidas de Léa, Rugido, Amanda Foschini, sonhos, Arcade Fire, Sharon Van Etten
Trilha sonora para esta newsletter: “We”, do Arcade Fire. Que álbum! <3
Eu sabia que esse momento chegaria. Confesso ter ficado ansiosa por ele a ponto de fazer teste rápido quase todos os dias para saber se eu estava “coronada”. Explico: Na Alemanha o teste é gratuito há mais de um ano e tem um “postinho” a cada esquina. Todo lugar, seja café, hostel, padaria, restaurante ou mesmo loja de telefonia celular, tem um canto para testar. Foi um ótimo jeito que os pequenos comerciantes encontraram para ganhar uma grana extra do governo após dois anos de pindaíba.
O dono de um café ao lado da minha casa foi tão esperto, que dividiu o estabelecimento em dois. Entra-se por uma porta lateral, faz o teste e na saída é obrigatório atravessar o café. Não preciso dizer o quanto o movimento deles aumentou desde então. Teve também um importador local de vinhos que montou uma empresa só com coronabikes espalhadas por toda a cidade. O negócio é de fato bem lucrativo.
A loja de eletrônicos colada no meu prédio foi substituída por um posto. Acabei abandonando o café, que era meu postinho favorito, e passei a frequentar o vizinho. Toda vez que saio de casa, eu gasto 5 minutos por lá para sentir a maciez do swab atravessando profundamente as minhas narinas. Eu me acostumei e já quase não me incomoda mais. A moça, que sempre me atende, um dia me perguntou se eu trabalhava com algum grupo de risco. Eu respondi que, apesar de ter tomado as três doses da vacina e trabalhar em casa, eu provavelmente sou uma coronofóbica.
“Corona Kostenlose Bürgertests” - ou teste de corona gratuito para cidadãos, é hoje um dos poucos conjuntos de palavras presente no meu paupérrimo vocabulário alemão.
Não fui uma pessoa muito ousada durante a pandemia. Ao contrário, segui as regras na maior parte do tempo. Cheguei a ter crises de não querer sair de casa mesmo quando podia e entrei em pânico num supermercado na Suécia porque ninguém usava máscara. Mas quando a poeira baixou, a vacina chegou e a situação pareceu melhorar, eu relaxei. Então não foi um problema voltar a frequentar festas, shows e lugares lotados. Continuei testando, claro, já que o risco passou a ser mais iminente. Na verdade, testar virou parte da minha rotina, tanto que em novembro passado cheguei em São Paulo com cerca de 100 testes rápidos na mala.
Voltei a frequentar a missa dominical mais famosa de Berlim sem parcimônia. Mas desde então, o meu app Corona Warn só esteve verde durante a minha viagem pra Suécia há duas semanas.
Se ficamos 15 minutos ao lado de alguém com COVID, recebemos do aplicativo um alerta vermelho de risco: Erhöhtes Risiko! No início, eu respeitava o aviso. Testava na sequência, que por neurose continuei testando, avisava todo mundo que tinha encontrado nos dias anteriores, esperava pelos sintomas, sentia vários deles e evitava sair de casa. De repente, o app congelou no vermelho, então para obedecê-lo só se rolar um novo lockdown. Eu voei como um passarinho.
A semana que antecedeu a minha vinda à São Paulo foi puxada e não só de trabalho.
Na sexta-feira eu fui ao show do Dengue Dengue Dengue, no Gretchen, club covidário como todos os outros em Berlim. Na hora do show, com um vinho ruim subindo à cabeça e um soundsystem deixando a desejar, eu colei na frente do palco e fiquei lá rebolando cumbia eletrônica por uma hora enquanto dezenas de pessoas animadas e suadas grudavam em mim.
No sábado, passei a tarde numa festinha no Tempelholf e estiquei a noite no Monom, num show sinestésico, onde dividi um colchão com um estranho.
O domingo foi dia de festejar o 1º de maio, um dia muito importante em Berlim, quando as ruas são tomadas por manifestações, festas, quebradeiras e, às vezes, carros em chamas e fachadas de lugares considerados burgueses apedrejadas. Foi meu primeiro “May Day” na cidade, já que nos dois últimos anos eu estava trancada em casa tentando dar conta dos 453 cursos online que me inscrevi porque as festas seguiam canceladas.
Eu estava super animada com o frisson que toma conta da cidade neste dia. Começamos na casa de uma amiga em Kreuzberg, num terraço com todo mundo acotovelado tentando um lugar ao sol. Drinks, cigarros, falação, risada altas e muitos fluídos rolando solto no ar.
Eu me prometia ingenuamente que voltaria cedo para casa, mas o diabo já estava à minha espreita. Quando me dei conta, eu estava na fila da missa dominical para afastar o pecado. Achei o lugar perfeito para encerrar as celebrações do “May Day”, considerando que o homem mais rico do mundo, o showman do capitalismo, foi barrado neste mesmo lugar.
Na quarta-feira, antes de vir para São Paulo, eu fiz o teste antígeno como de costume. Negativo. Fui para o aeroporto, que virou uma zona livre, leve e solta, como outrora. Máscara agora só na hora de entrar no avião. Eu tossia um pouco, mas nada alarmante, já que eu costumo ter crises de tosse constantes. Por via das dúvidas, mantive o protocolo anterior e fiquei com a máscara na cara.
Quando cheguei na minha escala em Paris, eu estava com um leve mal-estar. Nesse momento eu tive dúvida se deveria voar para São Paulo, mas decidi continuar, afinal eu tinha testado há poucas horas com resultado negativo. No voo tive febre e o alarme vermelho tocou. Como a cada duas semanas eu achava que estava com COVID, cheguei a cogitar que era a ansiedade e a somatização andando de mãos dadas, o que não é raro no meu caso.
Logo que cheguei na casa dos meus pais, corri abrir o pacotinho de plástico branco, peguei o swab e o enfiei no nariz esfregando sem dó enquanto suava frio de tão ansiosa que estava. Pinguei o soro na régua e pah, POSITIVO na hora. Parecia que eu estava olhando para um teste positivo de gravidez tamanho foi o pânico que tomou conta de mim. Piorei no mesmo momento.
Meu mundo caiu. Chorei como criancinha, porque vim celebrar o Dia das Mães com a minha mãe, festejar o aniversário de um dos meus melhores amigos, conhecer a bebê de uma amiga-irmã e trabalhar num projeto em que estou envolvida. Tomei café, caí de cama e passei umas 18 horas imprestável, isolada num quarto da casa, onde permaneço até agora.
Não sei onde peguei o coronavírus, mas isso só é útil agora para saber há quantos dias estou com o vírus dando rolê no meu corpo. Talvez ele tenha se animado com a cumbia e está bailando até agora.
Eu achei que era uma Highlander e seria convidada para participar do grupo para testar pessoas que não pegam COVID. Rodei e tive a cabeça decepada. O universo mandou seu recado no meu da minha fuça: você não é imortal, garota! Agora estou aqui com a frase, que uma amiga soltou quando soube que eu estava “positivada”, ressoando na cabeça: “Bem vinda ao mundo dos mortais com 3 pontos de QI a menos” (e se for severo pode chegar a uma queda de 10 pontos).
Então fica o aviso: se a newsletter piorar, é porque o COVID me emburreceu.
Give it Away
A série “As 7 vidas de Léa”, no Netflix, é uma viagem fantástica ao início dos anos 90, mais especificamente 1991. Partindo de uma premissa não muito nova, Léa vai dormir em 2021 e acorda num outro corpo 30 anos atrás quando seus pais namoravam. O fato se repete por 7 dias e a cada noite Léa acorda num corpo diferente. Além do roteiro ser envolvente, a série retrata muito bem o quanto a nossa sociedade evoluiu desde então (e olha que sabemos que ainda falta muito) e tem uma trilha sonora fantástica.
Eu sou uma grande fã de séries antológicas, por isso ontem na minha convalescência eu maratonei a ótima “Rugido” (Roar), na Apple TV, baseada no livro homônimo de contos (feministas) de Cecelia Ahern. São 8 episódios, cada um com uma história de uma mulher normal numa situação extraordinária, narrados de maneira cômica e ácida com tramas que vão do realismo fantástico ao terror psicológico. Elenco impecável contando com a Nicole Kidman, que estrela um dos episódios mais melancólicos “A mulher que comia fotografias”.
Rêve
Uma das coisas boas de chegar na casa dos meus pais é me deparar com os livros que comprei. O mais esperado da temporada era o “Surtada, porém inteira”, da Amanda Foschini. Quando o li há uns 2 anos, ele me comoveu, fez rir, chorar, olhar para o espelho, reconhecer amigas e eu mesma várias vezes, pois ela compartilha suas histórias pessoais mais caras e dolorosas com toda a coragem do mundo. Desnuda-se descrevendo sua depressão de maneira singular. Eu a conheci no meio de uma das crises descritas no livro e fico feliz em ver que ela saiu do buraco em que se encontrava, se levantou e transformou sua tragédia numa obra-prima. Apesar do tema pesado, o livro é leve, porque a Amanda tem essa proeza. Como a atriz Maria Ribeiro diz no prefácio “Amanda é ajuda e é piada”. Estou ansiosa para ler a edição final.
O conto inédito “A Morte”, da Lygia Fagundes Telles, me tocou de maneira especial, pois me lembrei de um sonho em que também morri e a sensação que senti foi muito similar a que ela discorre no conto, inclusive, assim como ela, eu fui parar na água. Eu sonho bastante de maneira muito criativa. Tento sempre anotá-los e a codificar os seus símbolos, que me trazem ótimos insights para a minha vida.
O Sidarta Ribeiro, o homem dos sonhos no Brasil, lançou um novo livro sobre o assunto, o Sonho Manifesto, e bateu um papo a respeito com o Ilustríssima.
A Gaía Passarelli sempre atenta ao seu redor, acertou em cheio na sua reflexão feita na última newsletter “Está todo mundo tentando: fingir que está tudo bem”. Me conta, você está bem?
The book is on the table
Vi um relatório do WGSN sobre o renascimento da leitura durante a pandemia. Se tem uma coisa boa pelo menos que as redes sociais trouxeram, foi o incentivo a ler livros. Eu estou no grupo das pessoas que retomaram o hábito da leitura neste período. Li muito na minha vida anterior até o foco que tinha nos livros ser substituído pelo blur da internet.
O mercado literário brasileiro andou numa fase crítica por alguns anos, mas a pandemia aqueceu o mercado e as vendas voltaram a subir. É só conferir quantas livrarias novas surgiram só em São Paulo no último ano. A Av. Paulista ganhou em 2022 a Livraria Drummond e a Livraria no Reserva, e no ano passado, a Livraria da Vila, no Shopping Paulista. Os clubes de assinaturas de livros também floresceram e é até difícil escolher em qual deles se associar.
A hashtag #BookTok tem mais de 55 bilhões de visualizações no TikTok e #BookTokBrasil, 2,5 bilhões. Ou seja, as pessoas estão voltando a ler! Aleluia! Em Berlim onde quer que você vá, vai ter sempre alguém com um livro de papel nas mãos sendo lido. Tem várias livrarias de bairro independentes e uma dedicada só aos livros escritos por mulheres, assim como São Paulo tem a Gato Sem Rabo.
Eu entrei numa corrida maluca de querer devorar o máximo de livros possíveis, como se quisesse recuperar todos os anos perdidos, até ler essa reflexão da Ariela K., da ótima newsletter A Diletante, sobre a verocidade que levamos também para a leitura, que não nos permite digerir as obras que lemos. Eu até peguei leve no “Memórias de uma moça bem comportada”, da Simone de Beauvoir, que estou lendo no momento.
Leaving
Eu uso o app Grammarly como suporte para aprimorar os meus textos em inglês. Uma amiga me indicou o Word Tune dizendo ser superior ao primeiro. Eu fiz um teste e achei o AI dele realmente muito superior ao Grammarly (e é mais barato). Fica a dica para quem utiliza apps para ajudar a ajeitar textos em inglês e acertar no tom de voz.
O MAP Academy Encyclopedia of Art, lançado pelo Museu de Arte e Fotografia de Bangalore, é uma plataforma que visa centralizar a história da arte na Índia e Sul da Ásia, da pré-história aos dias atuais, além de contar com vários cursos online. Bora escapar um pouco da arte ocidental.
Abri esta newsletter com o novo álbum do Arcade Fire, que eu achei tão atual e está aqui no repeat. Valeu a espera de 5 anos. Para quem quiser espiar, tem dois shows recentes da banda disponíveis no YT, um em Londres e outro em New Orleans (qualidade melhor). Quem estiver em Berlim no dia 29 de setembro e quiser curti-los ao vivo comigo, coloca na agenda e me dá alô!
Encerro com duas crushes, a pianista Eydís Evensen, que me fez “Dagdraumur”, e a eterna maravilhosa, Sharon Van Etten, que sempre me emociona com sua voz, que atravessa a minha alma, e acabou de lançar seu sexto álbum “We’ve been going about this all wrong”. Obedece e o ouça na ordem.
Desejo um Feliz Dia das Mães para todas as mães guerreiras deste mundo, porque admiro cada uma de vocês, e compartilho esse artigo “Quem cuida das mães solo?”, publicado pela Elástica. <3
Alô da astrologia para você: os céus mandam dizer que Mercúrio entra retrógrado semana que vem, e já está na sua fase sombra, ou seja, situação típica ter pego COVID bem quando chegou em SP. Como dizem os cosmos: as above, so below. Cuide-se!
Puxa! Melhoras pra você. Quando peguei, também entrei em pânico. Passou rápido e até que foi leve. A melhor parte de pegar COVID é que depois você já pegou. Que seja rápido e leve 🙏🏻