Espiral #46: Quantas vezes é possível se reinventar?
Ano novo, Berlim e o ticket de 9 euros, Tiktok e novos gêneros musicais, jabá e leitura.
No domingo eu fiz 49 anos. É assustador demais pensar nesse número. Quando eu me olho no espelho, eu não só encaro um rosto que no meu imaginário não parece ter a idade que tenho, como ao mesmo tempo eu vejo várias vidas vividas que parecem somar muito mais que estas quase 5 décadas.
A inquietude e a curiosidade sempre me fizeram ir mais longe do que parecia ser possível. Nasci e cresci em Perus, bairro periférico e isolado quase na saída de São Paulo, onde para chegar nele é preciso rodar alguns bons quilômetros pela Rodovia Anhanguera.
A literatura, a música e a internet, me mostraram que o mundo era maior que o quadrado onde eu vivia. Vesti as asas de um albatroz errante e decidi voar tão longe quanto fosse possível. Levei muitos tombos, mas que hoje entendo terem sido necessários para formar quem sou. Algumas dores ficarão pra sempre, mas a gente aprender a lidar com elas. Errei e erraram comigo. Aprendi com alívio que perdoar não significa se reconciliar.
Quando a gente acha que chegou ao topo, é difícil querer se mexer. Eu me senti nele algumas vezes. Numa delas, eu trabalhava numa agência de publicidade e estava numa posição muito confortável, tinha um bom plano de carreira à frente, porém me sentia infeliz no dia-a-dia. Numa conversa com o Facundo Guerra, ele me disse: “O pior que pode acontecer ao ser humano é ele ter um bom salário”. Plim! Naquele momento a frase fez todo sentido. Eu não queria sair da agência porque era cômodo demais estar lá. Para que arriscar?
Acabei pedindo demissão e em 3 meses eu começava o meu primeiro negócio. Era 2008 e a social media ainda era apenas rede social. Com a cara e coragem e uma sócia que acreditou na minha ideia, fundamos uma das primeiras agências de social media do Brasil.
Demoramos quase um ano para decolar, mas depois voamos que nem foguete. O negócio chegou a um patamar que eu nunca imaginei que chegaria. Mas 6 anos depois lá estava eu infeliz de novo (maldita inquietude). Eu me sentia presa na área comercial e na parte burocrática do negócio, além de, na época, não acreditar muito no modelo de negócio que tínhamos. Perdi o tesão e me vi num lugar muito difícil de sair. Eu tinha a sensação doída de querer abandonar um filho e um negócio com muito potencial de ascensão. O medo era de me arrepender.
Saí de um jeito brusco, que só fui entender o porquê de ter saído de tal maneira depois de muita terapia. Hoje acredito que não teria sido capaz de ter saído de outro jeito. Eu tinha 41 anos e achei bem ousado querer recomeçar tudo nessa altura da vida. Acabei abraçando diversas coisas, aprendi muita coisa nova e, por fim, me agarrei a um negócio paralelo que começava a decolar.
De repente, eu estava vivendo uma vida de sonhos. Passei os 5 anos seguintes viajando o mundo e ganhando pra isso. Eu viajava, escrevia e quando estava em São Paulo, eu prestava consultoria de ativação para marcas em festivais de música ou produzia festivais. No meio do processo, eu vi a oportunidade de começar um novo negócio, que acabou não decolando como imaginei. Hoje entendo que não rolou porque eu não estava pronta. Eu não queria comprometer a minha vidinha de globetrotter.
Os anos vividos na estrada foram uma boa forma que encontrei para ficar ocupada o suficiente para não ter que lidar comigo e nem com o mundo à minha volta. Eu vivia alheia a tudo. Foi uma intensa e deliciosa válvula de escape. Eu desci do mundo e no fim, quando me cansei de estar fora dele, eu não sabia como subir novamente. Foi necessária uma pandemia para me colocar de volta no mundo.
Como viajar quando o mundo parou? Deu pane no meu sistema e foi ótimo. Às vezes é necessário quebrar de um jeito feio pra gente querer consertar. Rumo à meia década de vida me desencandeou todas as crises possíveis, a de idade, a profissional, a das relações, a familiar, a pessoal.
Na semana passada eu tive um momento muito bonito ao me dar conta de que estou fechando este ciclo de desordem que se iniciou há 7 anos (olha o número mágico aí). Cá estou eu me reinventando de novo. Sorte eu tenho de sempre cruzar com pessoas que me acolhem e acreditam em mim e nas minhas ideias.
Não vou voltar para a estrada como achei que voltaria tão logo a pandemia se revolvesse. Eu não quero. Senti saudades da rotina, de fazer planos e de me comprometer. Também não acho saudável para o mundo entrar e sair de um avião o tempo todo. Quero viajar devagar e menos. Quero sentir borboletas no estômago enquanto faço as malas. Quero ter menos, mas histórias melhores para contar.
É muito difícil fazer as pazes com o envelhecimento, que nos acompanha a vida toda, mas chega o momento em que ele se escancara e coloca suas garras nada elegantes para fora. O velho, que sempre é o outro, de repente se torna o “eu”. Como não se assustar com esse novo eu e continuar acreditando que nunca é tarde para se reinventar? Por isso eu fugi por tanto tempo.
“Não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.” - Simone de Beauvouir (Viver sem tempos mortos)
Sou uma sortuda e sei o privilégio que tenho para estar aqui recomeçando pela enésima vez. Mas isso não quer dizer que é fácil.
“E recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só existência.” - Caio Fernando Abreu
Eu adoro a possibilidade de viver quantas vidas diferentes forem possíveis numa vida só. Geminiana, né? E você, me conta, gosta de recomeços ou foge deles?
Funkytown
Aqui em Berlim só se fala de uma coisa: o ticket de transporte público, que nos meses de junho, julho e agosto, custa 9 euros mensais ao invés de 80 euros. A medida foi tomada para aliviar o aumento no custo da energia resultante da guerra na Ucrânia. O diferencial é que ele vale em toda a Alemanha, ou seja, é possível viajar pelo país sem pagar extra usando os trens regionais, mas com muitas baldeações. Ele não é válido nos trens rápidos ou DB. Chegou no aeroporto e vem pra cidade? O ticket vale também e está acessível para os turistas.
O Exberliner fez uma lista de lugares para visitar usando o ticket, mas o meme que rola é que todo mundo vai pra Sylt, uma ilha bem ao norte da Alemanha considerada o refúgio das celebridades. Eu fiquei até com vontade de ir pra lá, mas olha o trem rumo à famosa ilha:
No último fim de semana aconteceu a famosa festa de Ano Novo do Berghain. Mas ano novo? Sim, e não era o meu. Com as festas de 2020 e 2021 canceladas, o club optou por fazê-la fora de época com um evento de 54 horas de festa. Foi uma festa linda, uma vibe ótima e um calor do deserto com muita gente e suor. O line-up era digno de festival de música eletrônica com 50 artistas locais e internacionais e os 5 palcos da “catedral” abriram. Foi uma experiência e tanto para agradar todos os gostos. Quem não estava aqui e perdeu, mas adoraria ter esse rolê único, a dica é que no dia 23 de julho algo similar se repete no Christopher Street Day (ou Berlin Pride Day). Não irá até a terça-feira, mas o club abre duas pistas extras, o Garten e o Lab.
What happens now?
Se tem um momento em que me sinto envelhecendo é quando vejo line-up de festival como o Primavera Sound e Coachella, onde conheço cerca de 20% dos artistas escalados. Se por um lado isso me isenta de FOMO e conflitos na hora de escolher quem eu vou ver, me dá uma agonia em pensar que eu sou a tia do rolê. Faço até um esforço e pesquiso boa parte dos artistas que estão fora do meu radar, mas raramente gosto de algum. “Ah, no meu tempo!” Virei essa pessoa….
Já viu a lista de gêneros musicais que estão em alta em 2022? Alguns deles são Breakcore, eurodance (mas não tinha acabado isso, senhor?), um R&B diferente, shoegaze (preferia o dos 90, sorry!), bedroom pop, k-pop e gengetone. A lista está cheia de referências de décadas passadas, mas com nova roupagem e códigos. Ah lá, a tendência da nostalgia. Notei também que raramente uma música tem mais de 2 minutos e meio. E nem entramos na grande selva musical que é o Brasil, onde também novos gêneros surgiram nos últimos anos.
Estamos na era do “TikTokification” da indústria da música. Deve estar sendo o inferno na terra para mutios artistas terem que se comprometer com seus selos em produzir música que será um grande hit na plataforma. De acordo com o relatório do TikTok 2021, 430 músicas alcançaram 1 bilhão de views. É, se quer fazer sucesso, ficar de fora não é a decisão mais fácil.
Como bem resume essa thread, os músicos agora precisam ter criadores de conteúdo ao seu lado antes de ter um burn out para tentar atender essa nova demanda.
Por essas e outras que enquanto o mundo está abraçando a nova rede sensação Be Real, eu estou quase cogitando comprar um dumb phone, que custa 40 euros na lojinha aqui do lado de casa.
Aproveito para compartilhar um momento cheio de déjà vu, um b2b da Kittin (que tirou o “Miss” do nome) e do The Hacker, no último Nuits Sonores, e um texto ótimo do Ted Gioia sobre “What is music like in heaven?”.
Good Times
Neste fim de semana eu estarei no Primavera Sound Barcelona. É o meu primeiro festival grande desde o início da pandemia e estou animadíssima. Sei que vai estar transbordando de gente, vai ter caos no aeroporto, filas para tudo, mas estou empolgada em ver tudo rolando de novo. Quatro shows que eu não vou perder de jeito nenhum: Yeah Yeah Yeahs (vou rever após 16 anos desde o primeiro show que vi no saudoso Tim Festival), Bicep, Ride e Gorillaz. Se estiver por lá, nos vemos na pista?
Ah, as leituras andaram mais devagar por conta do excesso de trabalho que rolou no último mês, mas recomendo muito o “Caderno Proibido”, da italiana Alba de Céspedes, uma das referências literárias da Elena Ferrante. O livro é um clássico redescoberto cheio de sutilezas ao retratar a intimidade de uma mulher comum e as mudanças da sociedade italiano no pós-guerra. Também gostei bastante do “Coadjuvantes”, da Clara Drummond de Andrade, um retrato melancólico e cruel que coloca em pauta as contradições da sociedade brasileira. Impossível não reconhecer alguém que a gente conhece nos personagens.
Good bye (e dois jabás)
Este ano fiz pouco, mas projetos incríveis. Um deles foi participar da criação da campanha Des.a.fio, para a Malwee, focada em economia circular. Foi meu primeiro projeto com o Studio Nama, com uma equipe metade em Berlim, metade em São Paulo. Levamos as ideias mais malucas e o cliente topou nosso desafio! :)
O segundo projeto foi a produção do NFT Berlin, que marcou o início do meu novo negócio por aqui, a Órbita Berlin, ao lado da minha parceira de crime e pista, Raquel Fedato. Foi intenso, mas o resultado foi uma lindeza só. O conteúdo foi primoroso e foi a primeira exposição de NFT que eu vi que tirei o chapéu. Em breve compartilho o link das palestras, que contou com muita mulherada no palco (uhu!).
O nosso próximo projeto é a produção do CODESS, que acontece no Halle (Berghain), entre 15 e 17 de julho, e marca o 8º aniversário da marca de moda UY. Se estiver pela cidade, bora lá porque vai ser majestoso.
Hoje vou embora sem rapidinhas, porque me alonguei muito e “I gotta go”. Estou cheia de dicas, mas ficam para a próxima Espiral, senão essa newsletter não sai e eu não chego em Barcelona para as minhas merecidas férias. \o/
que delícia de leitura! Tenho reflexões similares; quero viajar menos, e melhor. A reabertura de tudo me trouxe certa ansiedade, mas estou convivendo bem com o JOMO - acho.
Adoro quando fala sobre a questão de envelhecer "na pista", pois é também uma questão sobre a qual reflito bastante. Outro dia pensei que parte de mim não quer aceitar que meu comportamento pode estar seguindo uma trajetória "padrão": cheguei aa uma certa idade e não tenho mais tanta paciência para eventos. Quero ficar mais quieta, não vejo muita graça em muitas das coisas consideradas "jovens". Reluto em aceitar que estou seguindo uma trajetória "típica".
Também amo escrever, mas as redes sociais e distrações do dia-a-dia muitas vezes me deixam com muitos proto-textos que poderiam ser lindos, mas nunca vêem a luz do dia.
Ler sua newsletter me traz algum alívio e inspiração. Obrigada!
Pera aí...deixa eu respirar. "Cheirando florzinha e apagando velinhas" Foi necessário essa manobra, quando a realidade dessa escrita bateu a minha porta. Sou daquelas que vive recomeçando, seja um novo trajeto (pois nasci sem bússola) enquanto sigo um roteiro que eu mesmo tracei, ou mesmo quando preciso chacoalhar a areia, numa praia sob lua nova, dedilhando para onde ir, depois de um tombo daqueles. Essa introdução foi apenas para dizer que, adorei.