Espiral: Querer ser bonita me custou perder a sensibilidade do queixo
Eu, Aimee Lou Wood e O Mito da Beleza
Oi sumida,
Estou com muita coisa bacana para compartilhar, mas ando em uma fase tão complexa que “escrever” tem sido difícil. Fiz um plano editorial bonito para a Espiral, focado em um dos temas que mais me interessam no momento: viver mais devagar. Mas estou tão devagar que travei em um texto sobre o conceito da slow web – que, em algum momento, sai.
Para mim, não conseguir escrever é desesperador, então busquei ajuda e me matriculei no “Prática de Escrita,” uma oficina liderada por uma escritora que admiro muito, a Ana Rüsche. Nos encontramos online e, por cerca de uma hora, cada uma escreve no seu quadrado. Foram apenas dois encontros, mas o efeito já está sendo melhor do que qualquer descongestionante criativo. Enquanto organizo as ideias e volto às pautas para colocar a Espiral nos trilhos, trago um texto que nasceu em um dos exercícios sugeridos pela Ana.
Trilha sonora para esse texto: MNMT 457: Katatonic Silentio (se prepara porque é climão!)
Entrando na faca… ou melhor, deixando a faca entrar
Quando adolescente, eu sofri muito bullying, que nem esse nome tinha, por conta da magreza desconcertante e por ser dentuça. Os dentes protuberantes e grandes pareciam ocupar todo o meu rosto de tão magro que ele era. Só se viam os dentes. Passei alguns anos usando aparelho ortodôntico, mas mesmo assim, os dentes frontais reinavam absolutos.
Quando comecei a ter um salário possível de fazer planos, passei a cogitar a ideia de bancar uma intervenção. Alguém comentou sobre uma cirurgia chamada ortognática, que diminuía a maxila ou a mandíbula no caso das pessoas "queixudas". O meu caso era complexo: maxila em excesso, mandíbula insuficiente, além de gengivas espalhafatosas.
Era o início dos anos dois mil. Encontrei um especialista no assunto, considerado o melhor em terras brasileiras. Ele se comoveu com o meu caso, com a minha baixa autoestima causada pelo erro de design facial, e ofereceu um valor abaixo do que costumava cobrar, mas que ainda assim era elevado para o meu padrão. Porém, em troca da promessa de ficar gata, topei e passei dois anos pagando em prestações pela minha nova fisionomia. Encarei uma cirurgia tão traumatizante que até hoje eu não sinto uma parte do meu queixo, o que tecnicamente chamam de parestesia. Tem gente que perde a vida, enfim…
Depois de passar quase seis horas numa mesa cirúrgica, dopada por anestesia geral, remover oito milímetros de osso da maxila, reduzir a gengiva superior e aumentar a mandíbula em uns milímetros, lidei com um inchaço descomunal no rosto por algum tempo. Meu nariz ficou arrebitado por meses, como se também tivesse passado por intervenção - o que eu confesso ter apreciado, e emagreci ainda mais pelo simples fato de não conseguir comer. As pessoas me encontravam na rua e passavam batido. Eu estava irreconhecível.
Mesmo diante de tanta dificuldade na recuperação e de enfrentar uma depressão pós-cirúrgica, quando finalmente eu desinchei, eu estava radiante com a possibilidade de finalmente gostar da minha aparência.
Aos poucos tudo se ajeitou, mas ainda precisei usar aparelho ortodôntico, dessa vez transparente, para fixar a nova mordida. Claro que, impaciente como sou, um dia, acreditando que já estava tudo resolvido, peguei o alicate de unha e eu mesma arranquei o aparelho porque o dentista se recusou a fazê-lo. O resultado foi que os meus dentes ficaram tortos, pois ainda não estavam fixados da maneira correta. Seguem assim até hoje.
Ainda assim, uma vida nova se descortinou à minha frente, onde as pessoas passaram a me olhar diferente. Não era mais um olhar de pena ou curiosidade, que às vezes eu achava ser por ser tão dentuça, mas porque eu assumia para mim um posto que nunca ocupei antes: o das bonitas. Pelo menos foi como eu comecei a me sentir e a performar na sociedade, como alguém que se acha bonita.
Entendi também que a minha magreza, outrora escondida em roupas muito largas, era vista com bons olhos pela sociedade. Logo ela que fez minha mãe me carregar para cima e para baixo em consultas médicas porque acreditava que eu tinha alguma disfunção por ser tão esguia. Cortei o cabelo longo como um manto na altura dos ombros e passei a usar roupas justas. Eu estava repaginada.
O trabalho do meu médico foi tão perfeito que as pessoas me encontravam e comentavam que eu tinha ficado ótima com o novo corte de cabelo, sem atentar ao fato de eu ter feito uma mudança mais drástica, que eu enxergava como brutal. Olhava para o espelho espantada para a minha nova imagem.
A minha vida mudou. Eu mudei. O mundo mudou. Para mim, existe o antes e o depois dessa cirurgia. O preço foi alto em vários aspectos, mas não voltaria atrás na decisão.
Desde então, fiz algumas pequenas intervenções, um botox há dez anos que deixou meu rosto mais simétrico e fiz preenchimento duas vezes para levantar a bochecha que teima em cair. Só não fiz mais uns retoques porque o dinheiro não anda sobrando na conta.
Assistindo à série "White Lotus", não consigo parar de olhar para a Aimee Lou Wood, cuja beleza singular, marcada por uma dentição que lembra à minha antes da cirurgia, me fascina. Fico admirada, em especial pelo fato de ela não ter modificado seus dentes após o sucesso com "Sex Education" e, agora com "White Lotus", porque dinheiro na conta não deve faltar.
Os dentes protuberantes da Aimee têm sido alvo de muitos comentários. Como assim ela não paga para "corrigir" o sorriso? Em uma entrevista, ela conta que no início de sua carreira, os dentes eram um ponto vulnerável a ponto de acreditar que eram uma barreira, mas hoje reconhece que, de certa forma, eles ajudaram a impulsionar sua trajetória profissional. Com o tempo, percebeu que os fãs começaram a se identificar com ela. Passou a receber inúmeras mensagens dizendo: "Meu Deus, eu tenho os dentes iguais aos seus. Agora vou para a escola e as pessoas passaram a achar que sou legal porque eu pareço com a Aimee e não mais com o Pernalonga".
Num universo onde a beleza tornou-se commodity, resultando em uma estética pasteurizada, Aimee é considerada uma rebelde por não se render à pressão de modificar seus dentes. Todo mundo ostenta o mesmo nariz, a mesma boca, a mesma mandíbula, o mesmo olhar e o corpo perfeito. Parece uma linha de pessoas fabricadas em série.
Assisti este ótimo vídeo questionando sobre qual será o novo padrão de beleza após a popularização do Ozempic. A busca incessante por corpos cada vez mais magros, rostos cada vez mais simétricos e sorrisos perfeitos nos leva a questionar onde termina a busca por bem-estar e onde começa a obsessão por se encaixar em um ideal de beleza plástica.
Eu fiquei chocada (não sei porquê, mas fiquei) com as pessoas que compram ‘barriga tanquinho’, a lipo LAD. Notei várias fabricadas enquanto via fotos do último carnaval. Você vê o abdômen trincado, mas os braços e o restante do corpo parecem ser de outra pessoa. Não orna. E quando ela engorda que os gominhos continuam no lugar?
A beleza turbinada por cirurgia não é apenas estética, é status. Numa cultura que endeusa a juventude e a perfeição, bancar e sustentar procedimentos estéticos é um tipo de capital social que escancara ainda mais as nossas diferenças de classe.
Em “O Mito da Beleza”, Naomi Wolf mostra que a indústria da beleza não vende só produtos – ela empurra uma economia política inteira, sustentada pela insegurança feminina. O que vivemos hoje é a versão atualizada desse esquema: nos fazem acreditar que procedimentos estéticos são escolhas individuais, um ato de “autocuidado” ou “amor próprio”, quando, na real, estamos jogando um jogo onde beleza é investimento e o retorno vem em status e aceitação social. O mais perverso? A falsa sensação de que tudo isso é acessível. Teoricamente, qualquer um pode ‘escolher’ se transformar, mas as barreiras econômicas escancaram quem de fato pode. No fim, o mito da beleza segue firme, só que agora disfarçado de empoderamento e liberdade de escolha.
Por aqui, torço para que mais ‘Aimees’ surjam, trazendo uma beleza que desafia o status quo e devolve autenticidade a quem a carrega.
This Conversation is Missing your Voice
🎧 Eu adoro participar de podcast. Me convidem! Tive uma conversa ótima com a Nastacha de Avila e Caroline Holder do podcast Salvei, onde nós três compartilhamos o que estamos lendo, assistindo e ouvindo;
🎬 Eu amo que o Flying Lotus dirigiu o sci-fi “Ash”, lançado no SXSW, e produziu a trilha, que pelo single promete ser maravilhosa;
📚 Estou lendo a conta gotas para não terminar: “Stay True”, de Hua Hsu, livro lindíssimo sobre amizade, música, juventude e luto;
📺 Obcecada com a nova temporada “Severance”, que já está prestes a acabar e já sigo sofrendo por antecipação;
🌐 A
sempre aluga um triple na minha cabeça. Recomendo bastante esse texto sobre como analisar que acontece na internet;🧠 Fã que sou de Oliver Sacks, eu delirei com este texto da Letrux sobre ele;
✨ Não fui ao SXSW, mas acompanhei de perto nos grupos de WhatsApp e nas coberturas online. Recomendo muito parar tudo para assistir a palestra do Douglas Rushkoff, além da conversa com a Jay Graver, CEO do Bluesky.
Por hoje é só…. estou aqui me recuperando de uma noite com a Suzanne Ciani na pista do Berghain. Desta vez, assumi a fã que sou e fui conversar com ela logo após ela ter se apresentado. Voltei ainda mais fã dessa senhorinha simpática, que é uma das precursoras da música eletrônica, mas a maioria das pessoas não sabem quem é ela. Para fechar essa newsletter bem relaxa, deixo o álbum dela “Seven Waves” para você ouvir.
Ciao!
Eu amo sex education por muitos motivos e um deles é exatamente mostrar uma diversidade de pessoas incrível (além da história ser sensibilissima). Nunca pensei em fazer cirurgias, mesmo sendo insatisfeita com algumas partes do meu corpo de diferentes maneiras ao longo do tempo. Atualmente percebo que estou <fazendo um download> de um novo rosto que tem quase quarenta anos, que passou por um brusco luto recentemente e que se afasta do suposto <auge aos 30>. É esquisito, por vezes sinto que <a beleza acabou>, mas depois deixo isso pra lá (mais ou menos, rs). Queria era pensar menos na minha aparência, seja pela beleza ou para parecer interessante. Queria só estar, sabe? Enfim, divagando…. Bom te ler novamente. Beijoca
Que bom é te ter de volta, Lalai!
Sobre isso: outro dia eu estava lendo uma entrevista com a Jennifer Grey, a atriz que fez Dirty Dancing, sobre o arrependimento que ela sente por ter operado o nariz. Porque, depois que ela operou, o rosto dela ficou irreconhecível e ela passou a perder papéis em Hollywood. As pessoas não a reconheciam mais como aquela atriz que fez tanto sucesso. O nariz dela era igual o meu (nunca pensei em operar)