Espiral #51: As 5 melhores coisas que eu vi em julho
Joaquim Phoenix, Peaches, Louise Bourgeois, Magda Szabó e Refraction DAO
A trilha sonora de hoje é essa live gótica do Curses fez na rádio HÖR.
O que eu mais consumi em julho foi sol, a companhia de amigos que passaram por Berlim e comida vietnamita que eles queriam comer todos os dias. De bônus, eu fui para o Brasil no fim do mês para visitar o Marte, festival em que sou uma das curadoras, para discutir sobre o futuro da música e os NFTs. Sorte a minha porque, além de ter sido brindada com ótimos shows e conversas, dei um pulo em São Paulo para rever a família, amigos e comer sushi. Por isso, esta newsletter está atrasada. 😵💫
Separei as cinco coisas que fizeram meus olhos brilharem, meus ouvidos dançarem e minha alma feliz em julho:
1) Filme “Sempre em Frente” (C’mon C’mon)
Não sei você, mas ver um filme no avião me sensibiliza muito mais do que fora dele. O filme “Sempre em frente”, dirigido por Mike Mills, narra a história entre Johnny (Joaquin Phoenix) e o seu sobrinho Jesse (Woody Norman) que, numa relação tardia, mas transformadora, passam uma temporada juntos de uma maneira inesperada enquanto viajam pelos Estados Unidos.
Johnny é um jornalista de rádio que está viajando pelo país para entrevistar crianças sobre o que elas acham a respeito do mundo e o seu futuro. De repente, Johnny se vê responsável em cuidar de Jesse, enquanto sua irmã cuida do marido doente. Jesse, um garoto excêntrico (e genial), mostra pro tio uma nova perspectiva do mundo com perguntas e observações peculiares.
O filme é todo em preto e branco resultando numa fotografia linda de morrer. “Sempre em Frente” é um retrato sensível e intimista do processo de aprendizado sobre as nossas relações interpessoais. As atuações de Phoenix e Norman são primorosas, assim como as respostas das crianças que vão sendo entrevistadas por Johnny muitas vezes são de cortar o coração.
Está disponível no Apple TV, Amazon Prime, Google Play e YouTube.
2) Show “The teaches of Peaches”
O álbum “The Teaches of the Peaches”, da Peaches, foi lançado há 22 anos, virou hit no mundo e no Grind, a festa domingueira mais rock’n roll que já rolou em São Paulo, na finada Lôca, e se tornou um dos principais hinos do Electroclash, que me levou a criar uma festa dedicada ao estilo musical no finado Clube Glória. Fecha os olhos e imagina o início dos anos 2000, o mundo ainda mais conservador do que nos dias atuais, e a gente montada na pista cantando juntas:
“Sucking' on my titties like you wanted me
Calling me, all the time like Blondie
Check out my Chrissie behind
It's fine all of the time
Like sex on the beaches
What else is in the teaches of peaches? Huh? What?Fuck the pain away, fuck the pain away
Fuck the pain away, fuck the pain away”
Era puro delírio acompanhado de um sentimento libertador. Para celebrar as duas décadas de lançamento do álbum, a Peaches está em turnê de aniversário com uma banda e dançarinos de cair o queixo de tão escandalosos, belos e elásticos que são. Eu tiro o chapéu (ou a roupa se ele não estiver à mão) para a Peaches. Ela entra no palco como uma idosa se arrastando com um andador, trajada toda de cor-de-rosa, os peitos fugindo do sutiã, na cabeça um chapéu em formato de vulva nos preparando para uma performance extravagante e bem atual.
Aos poucos ela vai se desmontando até ficar seminua no palco. A baixista, que parece uma personagem do “The Rocky Horror Show”, nos hipnotiza com seu corte de cabelo performático e o contorcionismo que faz com seu baixo. Plateia lotada, a maioria mulheres e queers na faixa dos 40/50 anos, cantando todas as músicas a plenos pulmões.
A Peaches se mostra em forma no auge dos seus 55 anos. Ela pula, grita, se joga no chão, troca de figurino várias vezes, anda sob o público e depois mergulha numa camisinha gigante que se estende por cima da plateia. O chão tremeu literalmente a maior parte do tempo e a casa quase cai quando ela entra vestindo um maiô com “Thank God for Abortion”.
O álbum é tocado na íntegra e a esperada “Fuck the pain away” só surge no bis. Neste momento o Huxleys Neue, o local onde rolou o show, tremeu a ponto de eu achar que a construção, datada de mais de um século, cederia de maneira apoteótica levando-nos todos para o inferno. Seria esse o fim da nossa dor?
Retomando o fôlego e arrumando os cabelos, a Peaches, que não pára de surpreender, começa a cantar um cover de “It's All Coming Back to Me Now”, da Céline Dion. Foi puro regozijo. Isqueiros acesos, braços para o alto cantando junto:
“It's so hard to resist
And it's all coming back to me
I can barely recall
But it's all coming back to me now”
Foram quase 2 horas lavando a alma com a Peaches e seu grupo voador. Então, a minha dica é: se for rolar show dela próximo de onde você está, apenas vá, mesmo que não a conheça o suficiente ou nem goste tanto assim da música dela. É impossível não se render ao divertido espetáculo que ela entrega. É puro rock’n roll.
Peaches continua tão atual, que a série “Education” nos fez deleitar com esta cena.
3) Exposição “Louise Bourgeois: The Woven Child”
O Gropius Bau, em Berlim, está com a exposição “Louise Bourgeois: The Woven Child” em cartaz. Bourgeois é conhecida por suas aranhas em grande escala (tinha uma no MAM-SP, que agora segue viajando o Brasil) e instalações, onde explora temas como solidão, ciúme, raiva e medo. Já a retrospectiva do Gropius Bau foca nas obras feitas com tecidos nos seus últimos 20 anos de vida.
“Sou prisioneira das minhas memórias e meu objetivo é me livrar delas”, afirmou a artista, que disse transformar ódio em amor. Era o que a fazia vibrar. A retrospectiva traz à tona temas como memória, sexualidade, identidade, trauma e reparação. Algumas obras são perturbadoras, como cabeças cortadas, orifícios corporais expostos, bonecas desmembradas, uma mulher que se torna um inseto violento enquanto espera o marido voltar para casa.
Sua infância conturbada e cheia de traumas impactou toda sua produção artística. As famosas aranhas que, para Bourgeois, representavam a figura de sua mãe. Elas eram vistas como tecelãs, provedoras, protetoras e, ao mesmo tempo, temidas.
A infidelidade do pai, que levou a amante para morar com a família por anos, enquanto esta fazia as vezes de tutora de Bourgeois, se transformou num dos maiores traumas da artista ao longo de sua vida. A história pode ser lida em “Child Abuse”, carta publicada na ArtForum, em 1982.
Suas obras são potentes e feministas, refutando a visão clássica do corpo feminino como uma musa passiva. Nelas, Bourgeois distorce, reflete e escancara tudo que a afetava. Há em sua obra uma ambiguidade implacável traduzida de maneira visceral que questiona as profundezas desconhecidas da psique humana.
Além dos tecidos, a exposição traz também as imensas celas que carregam suas histórias e memórias transformando-se em um ambiente de enorme ressonância emocional.
Ela, que aos 8 anos já ajudava a família numa loja de tapeçaria, resgatou ao trabalhar com tecidos uma forma de transformar e, ao mesmo tempo, preservar o seu passado. Uma das obras que mais me sensibilizaram na exposição foi “Eternity”.
Como ouvi neste mini doc, “Louise Bourgeois é a artista a qual todo mundo já ouviu falar, mas ninguém a conhece”. Eu não conhecia absolutamente nada e estou fascinada pelo trabalho dela.
Para quem quiser se aprofundar um pouco mais, indico o documentário “Louise Bourgeois: The Spider, the Mistress and the Tangerine”, o episódio do podcast GRIFA019 “Louise Bourgeois e os modos feministas de criar”. O MoMa tem uma playlist com diversos vídeos sobre a artista, incluindo talks promovidos pelo museu.
4) Livro “A Porta”, Magda Szabó
A frase “A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.” do Carlos Drummond de Andrade traduz bastante bem a relação que se desenrola ao longo dos anos entre as duas personagens centrais do livro “A Porta”, da escritora húngara Magda Szabó. O livro foi lançado originalmente em 1987 e ganhou tradução para o português no ano passado.
Magda, uma escritora renomada, contrata Emerenc, uma senhora já idosa, para ajudar nos afazeres domésticos e com o tempo, criam uma relação de afeto e até mesmo de dependência. Enquanto Magda faz de tudo para agradar e ganhar o respeito de Emerenc, esta a desdenha por não considerar digno o trabalho intelectual. Para Emerenc, é o trabalho manual que tem valor. Gosto da comparação feita pela Camila von Holdefer com a “Amiga Genial”, de Elena Ferrante:
“Na raiz das divergências entre as duas personagens há diferenças de classe e de instrução —bem mais gritantes no livro de Szabó.
Ainda que as duas pertençam a diferentes gerações, é Emerenc, que deixou a escola cedo, a "amiga genial" de inteligência e firmeza incomuns. No lugar da Camorra e das particularidades do tecido social em um bairro de Nápoles, há as atribulações políticas e a coexistência em um microcosmo de Budapeste.”
Meio autobiografia, meio ficção, “A Porta” é uma história sobre amizade, aceitação, dignidade e envelhecimento. Magda Szabó oferece uma visão generosa sobre táticas de sobrevivência, sobre tudo o que pode ser dito no silêncio e sobre o papel da autenticidade na arte e na vida.
O livro foi adaptado para o cinema em “Atrás da porta”, de Istvan Szabo, em 2012, com Helen Mirren no papel de Emerenc.
5) Refraction DAO
Na lista de junho eu falei um pouco acerca das DAOs, as organizações autônomas descentralizadas. Durante as pesquisas que fiz para a mesa sobre NFTs que mediei no festival Marte, eu conheci a Refraction DAO, comunidade que tem como objetivo fomentar a cena de festivais de música e celebrar a música com foco nas comunidades BIPOC e LGBTQ+.
Tendo o Refraction Festival como espinha dorsal, a DAO tem realizado eventos em diversas cidades do mundo, como São Paulo, NYC e Berlim. A arrecadação de dinheiro para apoiarem projetos ao redor do mundo vem através da venda de NFTs. No momento, estão com o segundo e terceiro open calls abertos para projetos relacionados à música, desde editoriais e podcasts a eventos no metaverso ou físicos.
Criado por diversos artistas visuais e produtores musicais, o Refraction DAO conta com vários coletivos e festivais renomados como parceiros: Nyege Nyege, de Kampala, Rainbow Disco Club, de Tóquio, MUTEK, de Montreal, e o Panke, de Berlim, só para citar alguns.
Recomendo a leitura deste artigo caprichado que o Resident Advisor publicou sobre como a Web3 pode deixar a cena noturna mais inclusiva, com exemplos de algumas DAOs, incluindo a Refraction, criadas com este objetivo.
Burning (my notes)
Dancei um bocado com este set maravilhoso do OMOLOKO no Boiler Room do Dekmantel 2022;
Viajei com o Röyksopp nesta experiência sonora e visual;
Me emocionei (e ri) com o flime “The Duke”;
Duas newsletters para quem ama música #temqueassinar: Boombop Indica, que traz uma curadoria primorosa da Bárbara Scarambone de álbuns que provavelmente nunca ouvimos falar; e a Semibreve, newsletter quinzenal com tudo que você precisa (ou não) saber sobre música escrita de maneira divertida pela Dora Guerra;
Estou lendo (e devorando) “Flâneuse”, de Lauren Elkin, com histórias de mulheres que caminham por grandes cidades;
Estou assistindo a série “Sandman”, no Netflix;
Estou empacotando as coisas para ir ao WHOLE Festival, no fim de agosto, na Alemanha.
E eu que cliquei despretensiosamente no "Burning" e descobri q YYY lançou música nova em 2022? Obrigado por isso :)
Seu relato do show da Peaches me fez lembrar da banda que mais tenho curtido ultimamente, Amyl and the Sniffers. Conhece? https://www.youtube.com/watch?v=A6fWdJM7y7Q