Espiral #101: Elisabetta Sirani
A mulher que pintava em público para provar que o trabalho era dela
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
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Trilha sonora para essa newsletter: “Oceans of Time”, Gloria de Oliveira e Dean Hurley
Os dias curtos e gelados andaram me trancando dentro de casa. Falta ânimo para entrar no legging preto, no top colorido e na regata preta, me fazendo adiar minhas saídas como uma gazela, como às vezes faço, para me preparar para o verão brasileiro. Isso porque a academia fica a apenas 100 metros de casa, mas me permiti abraçar a preguiça nos dias solitários que tive sem a presença do marido em casa.
O ritual diário não mudou muito, exceto pelo fato de tomar as rédeas do comando da cozinha pela manhã.
Todo dia o mesmo processo: Pesar 15 gramas de café para 240 gramas de água. Colocar a água para ferver, espirrar água nos grãos para depois o pó não se espalhar pela prateleira. Passar então a água fervida no filtro para que não fique com gosto de papel, como assim ensinou o barista que mora comigo, e então passar o café, contemplar a fumaça se espalhando pela casa e deixar o seu cheiro aromático deslizar macio para dentro das minhas narinas. Nada é um abraço tão gostoso pela manhã como uma xícara de café fumegante acompanhada de uma torrada quente com manteiga. O pijama quentinho faz companhia no corpo sem dele querer sair.
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Escrevo, escrevo, escrevo, mas menos do que nos últimos dois anos. As palavras andam esparramadas e desordenadas dentro de mim. Rodopio por projetos pessoais, procrastino mais do que o normal, penso nos dias animados no verão e gasto mais tempo do que deveria remoendo coisas que me tiraram do prumo no último ano.
2023 tem sido um ano com altos e baixos, mas no geral o resultado segue positivo. Fiz uma limpeza geral em quase todos os meus cantinhos, inclusive alguns que jamais achei que alcançaria. Recuperei a autoestima, a energia boa voltou a girar.
Eu sei que devemos ouvir mais o nosso corpo. Eu ouço menos do que deveria, por isso me sinto derrotada nos dias em que atravessar a rua parece um deus nos acuda, socorro, não vou dar conta, me deixa ficar dentro de casa.
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Um dia desses eu me dei a tarde livre para um passeio no meio da semana. Foi uma vitória porque eu não me permito tempo livre no ‘horário comercial’. É como se eu estivesse falhando. Como assim tá passeando? Não deveria estar produzindo algo útil? Mas ignorei esse meu eu dominado pelo capitalismo e fui viver a vida. Só não tenho repetido o feito porque dentro de casa está mais quentinho.
Passei a tarde toda visitando galerias de arte em Schöneberg, bairro onde David Bowie morava e um dos que menos frequento em Berlim. Não porque não seja interessante, mas porque me tornei uma pessoa bairrista desde que me mudei para Berlim.
Foi nesse passeio que conheci a artista italiana barroca Elisabetta Sirani. Nascida em Bolonha em 1638, ela morreu jovem, aos 27 anos, deixando para trás um belo legado e história. Porém, passou alguns séculos meio desconhecida além do meio acadêmico.
Após passar dias a fio debruçada sobre a Patti Smith, me caiu no colo essa outra mulher, dona de uma história peculiar, vivendo fora do seu tempo. Sigo fascinada.
Vi sua obra "David com a cabeça de Golias" (1655-1660) reluzindo na parede de uma das galerias que visitei. A pintura foi o ponto de partida para uma exposição intitulada 'Sirani', onde 13 artistas contemporâneas recriaram a obra de Elisabetta Sirani. Mas foi a original barroca que me sugou para dentro da tela. A arte tem dessas coisas, e nem sempre conseguimos explicar.
Voltei para casa e corri para pesquisar a respeito dela. Deparei-me com uma artista de talento extraordinário, que já compreendia o papel atribuído à mulher em uma sociedade patriarcal. Ela pintava em público para provar que o trabalho era seu.
Mas afinal, quem é Elisabetta Sirani?
No século XVII, as mulheres eram cidadãs de segunda classe, submetidas ao domínio de seus pais desde o nascimento e mais tarde entregues como propriedade aos maridos. A mulher considerada boa tinha que ser casta, corajosa, paciente, incansável, vigilante, diligente, inteligente, leal, boa vizinha, sábia, mas não falante, discreta em assuntos pessoais, conselheira confortável e habilidosa nas tarefas domésticas.1
Bolonha ia um pouco na contra mão. A cidade era um influente centro cultural com uma vibrante cena artística, intelectual e de inovação.
Sob o domínio papal, a cidade prosperou economicamente e se destacou por permitir às mulheres estudar e seguir carreiras, ao contrário do restante da Europa (e do mundo?). Abrigava desde 1088 a Universidade de Bolonha, onde além de estuarr, as mulheres também ensinavam, mesmo que de maneira restrita e para uma classe mais privilegiada.
Foi nesse berço de inovação e arte que Elisabetta Sirani nasceu. Sob as asas de seu pai, o merchand de arte e artista Giovanni Andrea Sirani, ela descobriu muito cedo sua afinidade com pincéis e tintas, revelando um talento excepcional para a pintura.
Com apenas 17 anos, ela mergulhou na carreira artística, tendo uma carreira prolífica por uma década até a sua morte. Suas mãos deram vida a cerca de 200 telas, desenhos, dos quais 149 foram preservados, e 14 obras feitas em colaborações. Influenciada por nomes como Guido Reni, Caravaggio e Carracci, Elisabetta desafiou as noções de gênero em sua arte, explorando cenas tradicionalmente reservada aos artistas masculinos, como na pintura histórica. Muitos diziam que ela ‘pintava como um homem’.
Elisabetta, versátil em sua arte, não se limitava à pintura. Ela dominava o latim, a arte das gravuras e a poesia, sendo uma das primeiras mulheres em Bolonha a publicar um livro de poesia. Seu trabalho abrangia retratos, cenas religiosas, mitológicas e naturezas-mortas. Também pintou sua própria imagem por meio de autorretratos altamente valorizados por seus patronos, nos quais se transforma em Circe, uma santa, chegando a usar seu próprio rosto para uma pintura de Cristo.
O seu estúdio era movimentado funcionando quase como um salão, com relatos descrevendo visitantes - especialmente as nobres bolonhesas que foram suas primeiras patronas - observando Elisabetta em ação, discutindo arte e literatura ou apenas fofocando.
Aos 20 anos foi uma das 7 artistas comissionadas, a mais jovem e única mulher, para decorar a Certosa de Bolonha. Foi lá que produziu sua obra mais conhecida, 'O Batismo de Cristo', uma pintura de grande escala.
Elisabetta alcançou fama internacional, foi celebrada ainda em vida e atendeu clientes da alta nobreza, incluindo a família Médici.
Ela era também bem esperta, evitando assim que sua história fosse esquecida. Ela documentou meticulosamente suas obras, assinando e detalhando cada pintura, além de sempre convidar pessoas para vê-la pintar em seu estúdio.
Aos 24 anos, ela assumiu a liderança da oficina de seu pai quando este adoeceu e ficou incapaz de trabalhar. Embora ela fosse o sustento da família, era o pai quem gerenciava o dinheiro. Isso levanta suspeitas de que Elisabetta possa ter criado obras sem registrá-las para contornar o controle financeiro do pai.
Não deixa de ter sido uma feminista para a sua época. A sua versão de "Timoclea de Tebas" (1659), por exemplo, retratada por vários artistas antes dela, traz uma cena que ninguém ainda tinha pintado.
Timoclea era uma nobre que foi estuprada por um dos capitães de Alexandre, o Grande, durante o saque de Tebas. O estuprador exigiu o dinheiro e as joias de Timoclea, então ela o levou a um poço onde disse estarem escondidos. Quando ele espiou para dentro, ela o empurrou no vazio e depois o apedrejou até a morte. Ela foi levada perante Alexandre para ser punida, que a perdoou ao reconhecer sua integridade moral e dignidade.
Diferente de todos os artistas que representaram a história, Elisabetta não apresenta a cena do estupro e nem a do perdão. Ela pintou Timoclea se vingando pela primeira vez na história.
Chamou a minha atenção também o seu lado empreendedor. Elisabetta criou a primeira escola de arte na Europa, fora de um convento, dedicada exclusivamente às mulheres. Nela, ensinava jovens meninas a pintar, compartilhando técnicas que de outra forma elas não aprenderiam.
A sua história foi resgatada há pouco tempo em uma biografia escrita pela historiadora de arte Adelina Modesti. Ela faz parte da série "Illuminating Women Artists da Lund Humphries", que busca resgatar artistas mulheres na história da arte e lançar luz sobre carreiras singulares e esquecidas como a de Elisabetta.
“Seu ensino e sucesso foram extremamente influentes para as futuras gerações de mulheres artistas em Bolonha. Elisabetta nunca se casou, e não está claro se foi por escolha ou circunstância. Ela optou por uma carreira nas artes ao invés de matrimônio e filhos, representando assim uma nova categoria social de feminilidade: a mulher solteira e profissional", destaca Modesti. "Ela foi também a primeira artista mulher a ser comparada positivamente a artistas masculinos por seus contemporâneos.”2
Elisabetta morreu aos 27 anos em circunstâncias controversas, com muitas pessoas acreditando que ela teria sido envenenada por algum desafeto.
Ela começou a ter dores de estômago, perdeu peso e teve mudanças drásticas de humor. Com o tempo, a dor se intensificou até se tornar insuportável. Elisabetta não respondia a nenhum tratamento, e em agosto de 1665 ela faleceu. Historiadores modernos acreditam que é mais provável que ela tenha morrido de peritonite. Os sintomas que sentia são similares à de uma úlcera perfurada.
De acordo com os relatos contemporâneos, a cidade de Bolonha decretou luto com a sua morte. A Igreja de São Domingos foi envolta em pano preto bordado com seda dourada, elegias escritas para a ocasião pendiam de suas colunas, e uma liturgia, composta pelo diretor musical da capela, foi cantada pelo coro da Universidade de Bolonha, após o que "soluços e suspiros ressoaram pelo templo". No centro de um enorme tablado colocaram uma efígie esculpida em tamanho real: uma mulher trabalhando, sentada no ato de pintar. "O melhor pincel de Bolonha", o orgulho da cidade, estava morta.3
É impossível pesquisar sobre Elisabetta e não cair na história igualmente fascinante de Artemisia Gentileschi (1593-1656), a artista mais famosa da era barroca. Artemisia explorou predominantemente temas como empoderamento feminino, justiça (ela foi vítima de estupro quando jovem por seu tutor Agostino Tassi, um pintor e amigo de seu pai) e vingança.
Existem aproximadamente 57 obras reconhecidas como sendo de Artemisia Gentileschi, das quais 49 apresentam mulheres como protagonistas ou iguais aos homens. Coincidentemente, eu vi no mês passado a sua obra 'Suzana e os Anciãos', que foi sua primeira criação quando tinha 17 anos, em uma exposição que visitei.
Agora me conta quando foi a última vez que uma obra de arte mexeu com você e qual obra era essa?
Eat Liquid: Mulher nas artes
🌊 Piscina: Plataforma para mulheres artistas incluindo a produção de uma revista. O Women on Walls também foca em mulheres e pessoas não-binárias na arte. Já Artistas Latinas, como o próprio nome diz, compartilha histórias sobre mulheres nas artes visuais.
🌀 Gosto muito do trabalho da Isabel Carvalho, que mantém o IG “Um teto seu” e ministra cursos sobre mulheres na arte.
📖 Recomendo a leitura do artigo “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, de Linda Nochlin. Publicado em 1971, virou livro e tem uma edição traduzida para o português disponível aqui.
💌 “The Great Women Artists” é uma newsletter de Katy Hessel, que escreveu o livro homônimo e tem sempre boas aulas de história da arte.
Futuro Fluxo
🔺 Como a modernidade nos tornou alérgicos.
🇿🇦 Li: Coisas que Quero Saber, de Deborah Levy, uma verdadeira aula de escrita. O livro narra a história da autora durante sua infância no Apartheid, na África do Sul, em que seu pai foi preso por se opor ao regime.
🐕 Lendo: A Cachorra, Pilar Quintana; e A Criação da Narração, de Byung-Chul Han.
📽️ Fiquei sem fôlego assistindo A anatomia de uma queda, Justine Triet.
📺 Viciada em Round 6: O Desafio, na Netflix. Achei genial transformarem a série em um reallity show. É tão ruim, que é bom. Também estou terminando de assistir a série alemã Terapia, de Sebastian Fitzek, na Amazon Prime. Bem dramalhão alemão com apenas uma temporada em 6 episódios.
🎞️ Assisti Infinity Pool, de Brandon Cronenberg (filho do David). É uma espécie de White Lotus com uma viagem ruim de ácido. Bem malucão e lisérgico.
𐂺 Documentário sobre o Tresor, o club de techno mais antigo de Berlim, o qual provavelmente você viu cenas em algum filme e/ou série gravados na cidade.
🤖 O que a inteligência artificial nos ensina sobre a boa escrita.
🗞️ Estou apaixonada pela revista Piseagrama.
Por hoje é só e retorno ainda essa semana com uma edição exclusiva aos pagantes.
Boa semana. :)
Não conhecia a Elisabetta Sirani e adorei a edição!
Facinada por ambas junto com você. Obrigada por compartilhar essas histórias!