Espiral #100: Patti Smith além do gênero
Feminismo Glitch, Judith Butler e a cabeça explodindo por aqui
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos. Essa é uma edição gratuita.
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Trilha sonora para essa edição: "Horses", Patti Smith.
Viva!
Lancei a Espiral no início da pandemia para ocupar os meus dias de ócio, que eram muitos. Sem trabalho, recém-chegada em Berlim e com projetos trazidos na mala naufragados, eu precisava de algo que me mantivesse em pé.
Debrucei-me em uma terapia tripla: A real, com uma terapeuta que me deu "ghost" - substituída por uma psicanalista que tem me tirado do eixo -, as Páginas Matinais e a Espiral. Foi assim que atravessei quase sã meses a fio sem quaisquer perspectivas para o futuro.
Sobrevivi e mantive os três hábitos. Chegar à 100ª edição é para mim uma vitória. Pensei em desistir dessa newsletter várias vezes, mas nada é tão recompensador quanto mantê-la. São tantas as trocas e aprendizados que, mesmo demandando um esforço enorme, vale a pena o tempo dedicado. Além disso, a Espiral trouxe outras perspectivas para o meu dia a dia e pessoas bem especiais para a minha vida.
Então seguimos juntas com vocês. Obrigada por estarem comigo nessa viagem maluca que é me acompanhar.
"Rimbaud escreve esta carta e ele diz... no futuro, quando as mulheres se libertarem de sua longa servidão aos homens... elas terão nova música, novas sensações, novos horrores, novos surtos..." - Patti Smith
Trouxe para esta edição comemorativa um assunto polêmico: a desconstrução da minha heroína, no caso, Patti Smith, uma artista da qual sou grande fã e celebro aqui a vida e obra, mesmo que de um jeito meio peculiar. Fiquei um tanto insegura com o texto, mas enfim, aqui está e estou aberta a qualquer correção e crítica caso eu tenha divagado alguma bobagem.
Há muito tempo desejo escrever sobre ela e o impacto que teve em minha vida. Quem visita minha casa se depara com uma foto gigante em preto e branco dela, tirada em 1976 pelo fotógrafo Gijsbert Hanekroot. Comprada há muitos anos no MoMa, só em Berlim é que ela encontrou seu lugar na parede.
A mesa de centro da sala está enfeitada com dois livros de fotografia dedicados a ela: "Patti Smith: American Artist”, de Frank Stefanko, e uma edição francesa de "On the Road with Patti Smith", de Michael Stipe. Na estante, todos os seus livros, assim como o álbum "Horses", sua grande obra-prima, são uns dos poucos discos de vinil que trouxe do Brasil.
Não foi através de Patti Smith que cheguei aos escritores malditos, mas tê-los como heróis me aproximou dela. Um caminho inverso. Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Jean Genet e Antonin Artaud. Compartilhamos o mesmo arrebatamento por todos eles. Uma pilha de livros deles e sobre eles ocupa uma velha estante na casa dos meus pais em São Paulo. No cóccix, carrego a única tatuagem que tenho no corpo: "je est un autre", de Arthur Rimbaud, uma frase que nos define tão bem.
Minha formação foi com músicos, poetas, dramaturgos e escritores, todos homens brancos. Não me orgulho disso. Demorou, mas um dia percebi que estava olhando na direção errada e que precisava rever a minha rota para mudar o horizonte. Comecei a prestar mais atenção e a consumir obras escritas e produzidas por mulheres, a ouvir mais mulheres, a ler mulheres e a viver na companhia delas.
O feminismo é um tópico que chegou tarde em minha vida. Já fui acusada pelo meu marido de ser machista. Percebi que, estruturalmente, eu era mesmo. Trabalho todos os dias para desmantelar a base dessa estrutura que ainda resta em mim. Minha nova terapeuta já incluiu o tema "feminino" em nossa agenda, e talvez tenha sido isso que me trouxe até este texto.
Certa vez eu li uma entrevista com a Patti Smith em que ela fez uma afirmação que me incomodou bastante: "A maioria das escritoras não me interessa porque estão obcecadas em serem mulheres, estão obcecadas em serem judias, estão obcecadas em serem alguém ou outra coisa", ela disse. "Em vez de apenas seguir em frente, apenas jorrar, apenas criar. Essas mulheres ficam tão presas à sua herança que nunca conseguem realmente se expandir."
Fui então checar a sua famosa lista de livros favoritos e o número de autoras mulheres é pequeno. Sobre uma das suas escritoras favoritas, ela fala: "Agora, eu posso falar sobre algumas escritoras que realmente são fantásticas. Uma delas é Anna Kavan. Ela escreve histórias como a que eu abordei em "Land of a Thousand Dances": ela está envolvida em uma névoa e então uma luz, uma pequena luz, aparece. Essa luz pode ser uma onça ou pode ser um ponto de sangue. Pode ser qualquer coisa. Mas ela se agarra a isso e se expande. E ela faz isso dentro dos ritmos acessíveis da trama, e é realmente emocionante. Ela não fica obcecada em ser uma mulher, ela apenas continua se estendendo, continua telescopicamente a linguagem e a trama."
Além de Anna Kavan, a Patti Smith é fã assumida de Virginia Woolf, Susan Sontag, Georgia O'Keeffe, Sylvia Plath e Frida Kahlo, mas às mulheres ela cede menos espaço em suas obras.
Bem, demorei, mas decidi pesquisar mais sobre o assunto porque sempre pairou a dúvida sobre a relação de Patti Smith com o feminino. A pesquisa me levou a tantos lugares que levei um tempo para formar meu próprio pensamento, se é que tenho um definido, sobre isso. Quando li seus livros, me atentei mais à suas histórias do que qualquer outra coisas.
Encontrei várias entrevistas, artigos e até teses sobre a ambiguidade de gênero encontrada na obra "Só Garotos". Para escrever este texto, baseei-me principalmente no artigo "[…] Patti Smith, uma artista além do gênero" e em diversas entrevistas.
"Não limito minhas ideias sobre mim mesma ao gênero. Sempre lutei contra isso... você não diz artista masculino, pintor masculino, [...] então não gosto de me limitar pelo gênero." - Patti Smith em resposta a entrevistas que a questionaram sobre feminismo ou a questão de gênero.
Ela se mudou para Nova York no final dos anos 1960, onde conheceu Robert Mapplethorpe, e logo se tornaram um casal em uma época em que a cidade celebrava a ambiguidade e a rebelião.
Era uma cena artística difícil de entrar. Protegida por pessoas como Andy Warhol, a cena celebrava a oposição e a exploração dos limites da sociedade de massa, especialmente em relação à construção de gênero. O status social era menos determinado pela riqueza e mais pelo intelecto e pelo estilo artístico vanguardista. Patti encontrou um lugar entre seus ícones, onde tanto sua inteligência e talento como artista quanto suas incertezas de gênero eram admirados.
Victor Bockris afirma em uma biografia não autorizada de Patti Smith que ninguém sabia bem como classificá-la e ao Mapplethorpe no início. Pairava a dúvida se eram amantes, irmãos ou apenas amigos. Eram heterossexuais, bissexuais ou gays? Essa ambiguidade e androginia dos dois se tornaram uma forma de prestígio que os ajudou a se destacar.
Em vez de se identificar como feminista, Patti Smith defendia a liberdade individual e a autoexpressão, desafiando as normas de gênero por meio de sua música, poesia e arte. Na década de 1970, muitas artistas mulheres relutavam em adotar a etiqueta de feminista devido às conotações negativas atribuídas pela mídia e porque sentiam que suas práticas culturais não estavam à altura do radicalismo anterior do movimento de mulheres. No caso de Patti Smith, parece que a dificuldade não foi esse radicalismo, mas sim as dificuldades que ela própria enfrentou para se identificar como mulher.
Durante o primeiro encontro de Patti Smith com Allen Ginsberg, ele perguntou se ela era uma menina. Quando ela respondeu sim, ele se desculpou e disse que pensava que ela era apenas um menino excepcionalmente bonito1.
Como seus ídolos eram na maioria masculinos, ela queria agir e parecer com eles. Por exemplo, Bob Dylan era como um Rimbaud vivo para ela, alguém com quem ela podia se identificar completamente. Ela também admirava Nina Simone e Joan Baez, mas, segundo suas palavras, "quando era adolescente, ouvia Nina Simone, outra mulher forte. No entanto, em termos de mulheres com as quais eu pudesse me relacionar, havia poucas. Eu me identificava com Lotte Lenya, mas minha identificação era ainda maior com Bob Dylan. Eu adorava Billie Holiday, mas como artista, me relacionava mais com Mick Jagger."2.
Patti Smith foi influenciada por esses artistas masculinos não devido ao gênero, mas sim devido às qualidades artísticas e estéticas que eles personificavam. Naquela época, essas qualidades estavam, na realidade, mais acessíveis aos artistas homens. Portanto, é questionável se a apreciação dela por músicos do sexo feminino, embora admirasse, mas não se identificasse com elas, estava relacionada à disponibilidade limitada de ícones femininos ou às próprias dificuldades dela em se identificar como mulher.3
Ela quebra todas as convenções ao posar para a capa de "Horses", feita por Robert Mapplethorpe, usando uma camisa branca, uma fina gravata preta, suspensórios e um paletó preto jogado sobre o ombro, evocando um dândi. Em uma entrevista, ela compartilhou que uma de suas inspirações para essa capa foi a figura de Charles Baudelaire, um flâneur.
Em uma entrevista dada em 2015 a Far Out Magazine, ela fala sobre o seu ressentimento que sentia ao ser chamada de feminista.
Elio Iannacci: Você uma vez disse: "Ser qualquer gênero é um fardo."
Patti Smith: Eu me sinto muito confortável sendo uma mulher agora, mas quando eu era criança, eu só queria ser um menino. Eu não queria ser uma menina. Eu não me sentia como um homem por dentro... ser um menino era simplesmente mais legal. Eu vi uma vida inteira de pessoas transgênero, e já era difícil ser gay nos anos 50 e início dos anos 60. Não se podia imaginar a crueldade que as pessoas trans tinham que enfrentar naquela época.
Ela criou um espaço na música que não se tratava de sedução sexual nem de desafio sexual, como as mulheres na música costumavam ser percebidas (e, em muitos casos, ainda são).
O primoroso álbum 'Horses' serviu de inspiração para punks, grrrls, roqueiros e artistas que o ouviram exaustivamente, o analisaram detalhadamente e imitaram tudo o que Patti Smith fazia no palco.
📚 Judith Butler, Legacy Russel e Paul B. Preciado
O estudo que menciono acima usa a performatividade de gênero de Judith Butler como base para sua análise. Não sou especialista no assunto, mas aproveitei a oportunidade para aprofundar meu conhecimento ouvindo alguns episódios de podcasts que discutem esse tema. A partir dos conceitos de Butler, também me lembrei de Paul B. Preciado, que também enxerga o gênero como um ato performático.
Coincidentemente, eu havia retomado a leitura de "Feminismo Glitch", no qual Legacy Russel subverte o sistema por meio do remix digital, já que o que o mundo real oferece não era suficiente para ela. Para Russel, o binarismo de gênero é uma espécie de ficção.
"A construção do binarismo de gênero é, e sempre foi, precária. Aggressivamente contingente, é uma invenção imaterial que, em sua viralidade tóxica, contaminou nossas narrativas sociais e culturais. Para existir dentro de um sistema binário, é preciso assumir que somos imutáveis, que a forma como somos lidos no mundo deve ser escolhida por outras pessoas e não definida - e escolhida - por nós mesmos."4
Russel criou o conceito do feminismo glitch, uma abordagem que desafia as normas de gênero tradicionais e abraça "falhas" ou erros na compreensão convencional do gênero, utilizando a tecnologia e a cultura digital como ferramentas para desconstrução e redefinição.
Em outras palavras, um corpo que se recusa a se conformar com uma atribuição binária é um desempenho glitch. Isso nos coloca no meio-termo como um componente essencial da sobrevivência. O feminismo glitch discorda e se opõe ao capitalismo. Voltando à Judith Butler, ela enfatiza que o gênero é uma performance socialmente construída, onde as identidades de gênero são expressas e reforçadas por meio de comportamentos e representações culturais.
Enquanto para Simone de Beauvoir é "Não se nasce mulher, torna-se mulher", para a Legacy Russel é "Não se nasce corpo, torna-se corpo".
🦄 Geração Z e a questão de gênero
Conversando com a minha terapeuta sobre esse assunto, percebi que a dificuldade em organizar minhas ideias e escrever este texto até uma conclusão ocorre porque minha semelhança com Patti Smith vai além do fato de ambos sermos fãs dos 'malditos'. Durante essa pesquisa, revivi minha adolescência, uma época em que demorei a compreender minha identidade como mulher. Cresci nos anos 1990, quando questões de gênero não estavam presentes nas rodas de conversas, em especial a que eu pertencia, a do rock.
Tive uma fase andrógina, e às vezes volto a ela. Eu era a esquisita da turma e demorei para explorar o meu lado feminino. Passei a adolescência vestindo gandolas de exército e calças largas. Mesmo me sentindo atraída por homens, sempre achei as mulheres seres fascinantes. Tentei até me envolver com elas no passado, mas sem sucesso. Sou mais heterossexual do que eu gostaria de ser.
Recentemente, Patti Smith foi questionada sobre quantas versões de si mesma coexistem. Sua resposta foi uma citação de Walt Whitman: "Contenho multidões". Desde 2007, tenho a seguinte frase em minha biografia no Twitter (ou em X, se preferir): 'Sou várias e, às vezes, todas estão no mesmo lugar.'
Ao analisar o período desde os anos 1970 até o momento atual, considero Patti Smith uma artista de vanguarda não apenas por tudo o que criou e ainda cria, mas também por sua expressão de gênero não-binária.
Assumir um gênero fluído hoje é cada vez mais comum. Nos EUA, mais de dois em cada cinco jovens da Geração Z se identificam como neutros na escala masculina e feminina e 75% dos jovens pertencentes à Geração Z esperam que a diversidade e a inclusão sejam temas obrigatórios nas escolas.
Mais da metade dos estadunidenses da Geração Z não se definem como heterossexuais, mas eles também não se identificam como gays ou bissexuais. Em vez disso, cada vez mais os jovens adotam um termo mais abrangente para representar suas jornadas de autoexploração, descoberta e receptividade. Muitos jovens sentem que o termo "queer"define melhor seus caminhos de introspecção, exploração e aceitação.5
Patti Smith desempenhou um papel crucial na abertura de caminho para mulheres na música, sendo a primeira a ter uma banda com seu próprio nome. Transformou sua poesia em música de maneira avassaladora e é considerada a primeira punk da história, mas detesta o título de 'artista feminina' que lhe dão. Patti Smith é uma artista, ponto final.
Todos os textos e estudos que li a respeito de gênero e da Patti Smith estão salvos nesta pasta.
Extra
🎤 Entrevista com Patti Smith: "Eu sempre viverei como o Peter Pan";
📺 Patti Smith Dream of Life Documentary;
🦋 É preciso dar muitos passos para conseguir ser livre;
⏳ Patti Smith’s Journey to Horses: A Timeline;
🌎 O mundo é meu trauma por Jota Mombaça;
🚪 Alana Portero: “Todos têm um armário do qual sair”;
👩🏻💻 Quero fazer todos esses cursos na área das artes. De graça e online;
♡ Umas das minhas grandes musas, a Beth Gibbons, de volta aos palcos. Estou desde ontem ouvindo esse álbum que marcou uma fase bem importante da minha vida.
Por hoje é só! Vou adorar 'ouvir' de vocês sobre essa edição de hoje. Não deixem de ouvir o álbum "Horses", da Patti Smith, na íntegra. Eu fico sempre sem fôlego quando o ouço. 📻
Beijos e até muito breve ✨
Só Garotos, Patti Smith
Fricke, David 2007. “Patti Smith”. In Jann S. Wenner & Joe Levy (ed.) The Rolling Stones Interviews.
"[…] Patti Smith, an artist beyond gender", Maija Nieminen
Feminismo Glitch, Legacy Russel
WGSN: Sexualidade da Geração Z: Identidade LGBTQ+ (06.13.22)
Que texto pertinente! Esse ano li Só Garotos e Linha M e criei na Patti uma amiga imaginária, companheira de cafés. E nunca tinha me dado conta dessa essa faceta dela pouco afeita ao feminismo. Tinha reparado que ela era pouco referencial à mulheres, de fato, ao citar as obras que consome. Mas o jeito manso e pouco combativo dela me fez passar direto por isso.
Há muito deixei de acreditar que para ser mulher é preciso se encaixar em performance de gênero. Ser mulher é muito mais do que usar vestido e maquiagem ou gostar de cabelos compridos e brincos. Então a androginia da Patti me parecia uma afirmação do mulherão que ela é, que vai além do que se impunha sobre o que deveria ser o seu papel como mulher. Agora vejo que vem de um lugar de apagamento de luta, talvez de vontade de não embate, que é bem complexo e perigoso. Sigo amando a Patti, mas achei bem pertinente essa camada que você adicionou com suas reflexões.
Me pegou isso. Tenho essa de achar que mulheres que não se assumem feministas são aliadas da opressão da própria classe. Como podem fingir que não percebem que mundo limita fêmeas humanas se desejam ser um menino na infância/adolescência? Aproveitam-se para agradar os homens e ter algum benefício? A militância não precisa ocupar a arte, mas é esquisito não colocar no discurso. Enfim, me pegou. Estou digerindo.
Espiral sempre maravilhosa :)